A luta antimanicomial e a questão racial no Brasil: cuidado, resistência e ancestralidade
Heloísa Gusmão – Militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira em Curitiba
No Brasil, a luta antimanicomial não se resume à crítica aos hospitais psiquiátricos. Ela é, antes de tudo, uma trincheira contra a herança colonial que associa corpos negros à loucura, ao descontrole e à exclusão. Por trás da ideia de “cura” psiquiátrica, muitas vezes esconde-se um dispositivo de controle social que, historicamente, confinou pessoas negras, pobres e periféricas em instituições destinadas não ao cuidado, mas ao silenciamento.
Para compreender a profundidade dessa intersecção entre racismo e saúde mental, é essencial ouvir vozes como as de Neusa Santos Souza, Lélia Gonzalez e Isildinha Baptista. Essas pensadoras negras revelam que o racismo não apenas estrutura a sociedade brasileira em suas bases econômicas e políticas, mas também permeia as práticas de cuidado e os saberes médicos. Assim como Angela Davis denuncia que prisões e manicômios operam como tecnologias de dominação racial, essas autoras brasileiras mostram que a psiquiatria, em sua história nacional, frequentemente foi cúmplice da exclusão de corpos considerados “indesejáveis”.
Em Tornar-se negro (1983), Neusa Santos Souza descreve os efeitos subjetivos da violência racial sobre a saúde mental da população negra. Ela cunha a ideia de uma “depressão vital” que não pode ser explicada apenas por categorias clínicas, pois está profundamente enraizada na experiência histórica de rejeição e subalternização. Para Neusa, a psiquiatria tradicional, ao ignorar o contexto social, transforma a resistência em patologia — um equívoco que, em termos práticos, resulta em medicalização e internações de sujeitos cujo sofrimento é socialmente produzido. O Hospital Colônia de Barbacena, onde milhares de pessoas foram institucionalizadas sob justificativas frágeis e racistas, simboliza esse modelo perverso em que a pobreza e a negritude eram tratadas como doenças.
Lélia Gonzalez, por sua vez, amplia a crítica ao denunciar a “psiquiatrização da questão racial”. Em seus escritos, ela aponta como a medicina do século XIX racializou corpos negros e associou a negritude à irracionalidade, à inferioridade moral e ao desvio comportamental. Essa lógica, travestida de neutralidade científica, se manteve viva por meio do mito da democracia racial, que nega o racismo enquanto naturaliza a marginalização da população negra. Ainda hoje, jovens negros das periferias são frequentemente vistos como ameaças à ordem e, por isso, são medicalizados ou internados compulsoriamente sob o pretexto de distúrbios psiquiátricos — quando, na verdade, apenas expressam modos de existir que rompem com os padrões brancos e elitistas.
Essa realidade é aprofundada por Isildinha Baptista, que investiga como o racismo institucional molda os serviços públicos de saúde mental. Apesar dos avanços legais da Reforma Psiquiátrica e da criação da Rede de Atenção Psicossocial, a estrutura do cuidado continua a reproduzir desigualdades históricas. Nas periferias, os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) operam com recursos escassos, equipes sobrecarregadas e pouca formação para lidar com as singularidades culturais e sociais de seus usuários. A maioria dessas pessoas é negra, e os sofrimentos que as atravessam têm relação direta com a precariedade, a violência policial e o apagamento sistemático de suas histórias e subjetividades.
Diante desse quadro, torna-se evidente que a luta antimanicomial precisa ser também abolicionista, antirracista e anticapacitista. Como já advertia Neusa Santos Souza, a saúde mental da população negra não será alcançada por meio de remédios ou diagnósticos descontextualizados, mas sim pela transformação das estruturas que geram sofrimento. Desmantelar o manicômio não é apenas fechar um prédio: é questionar toda uma lógica que autoriza o Estado a decidir quem pode viver com dignidade e quem deve ser silenciado.
Lélia Gonzalez oferece, nesse sentido, caminhos de reconstrução. Ela propõe uma visão de cuidado enraizada na cosmovisão afrodiaspórica, onde comunidade, território e ancestralidade ocupam o centro do processo terapêutico. Práticas como rodas de jongo, oficinas de capoeira, grupos de autocuidado entre mulheres negras ou espaços de escuta conduzidos por lideranças comunitárias exemplificam uma outra forma de cuidado: aquela que reconhece a cultura negra como potência, e não como desvio.
Cuidar, neste contexto, é um gesto radical de humanidade. É reconhecer que a loucura, no Brasil, tem cor e endereço. Que o sofrimento psíquico não nasce no indivíduo, mas nas violências históricas que atravessam corpos racializados. É recusar, como diziam nossas ancestrais, a cura que adoece. A luta antimanicomial, quando silencia sobre o racismo, incorre no erro de reproduzir a exclusão que afirma combater. Para ser justa, ela precisa incorporar a memória das benzedeiras, das rezadeiras e dos quilombos — formas de saber que historicamente cuidaram onde o Estado apenas puniu.
Como escreveu Lélia Gonzalez, “o que está em jogo é a nossa humanidade”. E é em nome dessa humanidade que afirmamos: a luta antimanicomial será antirracista — ou não será.
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