Reportagem da Pública - Agência de Jornalismo Investigativo
Clarissa Levy
Como agências de publicidade a serviço do app de delivery criaram perfis falsos em redes sociais e infiltraram agente em manifestação para desmobilizar movimento de entregadores
De colete preto e calça verde-escura no estilo militar, um homem de cerca de 40 anos perambulava em frente ao estádio do Pacaembu, em São Paulo, ao redor de um grupo de entregadores que protestava contra as condições de trabalho dos aplicativos de delivery, no dia 16 de abril de 2021. Carregando uma faixa de cerca de 3 metros, o homem exibia dois adesivos que pediam “vacina pros entregadores de aplicativo já”: um colado no boné, outro no face shield. Nas mãos, carregava pacotes com adesivos iguais para distribuir na manifestação. Parecia ser um entregador que levava suas reivindicações para o movimento. Mas, de acordo com a apuração da reportagem, não era.
Documentos, fotos e relatos obtidos pela Agência Pública indicam que o homem seria um funcionário de uma agência de inteligência e monitoramento digital que prestava serviços em uma campanha contratada pelo iFood. A presença do funcionário teria como objetivo implantar a pauta da vacinação prioritária para motofretistas, como uma estratégia de esvaziamento da narrativa de greve — indicam as fontes ouvidas e relatórios consultados com exclusividade pela reportagem. Durante o ato, o homem dos adesivos divulgou um abaixo-assinado que pedia a vacinação prioritária. A petição online havia sido criada sete dias antes pela equipe da agência de publicidade que o contratou.
Naquele abril de 2021, os adesivos e a faixa que pediam “vacinação já” no estádio do Pacaembu, na zona oeste de São Paulo, vieram acompanhados pela disseminação de posts e comentários de usuários falsos, que teriam sido criados por agências de publicidade a serviço do iFood no Twitter e Facebook. Em paralelo, as agências contratadas teriam criado duas páginas que deram suporte à narrativa: a fanpage de conteúdo político Não Breca Meu Trampo e a página de memes Garfo na Caveira.
A Pública acessou mais de 30 documentos das campanhas — entre relatórios de entrega, cronograma de postagens, vídeos, atas de reuniões e trocas de mensagens —, além de conversar com pessoas que trabalharam nas agências e acompanharam a campanha desenvolvida para o iFood durante pelo menos 12 meses. As pessoas entrevistadas serão mantidas em anonimato nesta reportagem por temerem represálias profissionais após a publicação da denúncia.
Marketing 4.0: “para que ninguém desconfie”.
A situação, descreve uma das fontes que afirma ter trabalhado nas campanhas contratadas pelo iFood, “é o que chamam de marketing 4.0”. “Você posta memes, piadas e vídeos que promovem uma marca ou ideia, mas sem mostrar quem está por trás. Sem assinar”, explica. “É aquele tipo de conteúdo que te deixa em dúvida: você não sabe se foi um meme, uma coisa que surgiu na internet ou se teve alguém por trás”.
Segundo os relatos, o objetivo da publicidade não assinada era disseminar ideias e opiniões em um formato que imitasse a forma dos entregadores de se comunicarem, simulando que as postagens e narrativas vinham de verdadeiros entregadores. Um documento acessado pela reportagem descreve: “Toda vez que trabalhamos com o iFood criamos estratégias para o ‘LADO B’. Essas estratégias têm como objetivo criar um leve rumor nas redes sociais sobre o assunto que queremos abordar no momento”.
O documento, que seria usado como guia pelas agências de publicidade, explica a tática: “Usamos Páginas de Facebook, Perfis do Instagram, Perfis de Twitter, Perfis de Facebook, criados por nós para gerar esses rumores. Como? Comentamos em publicações que falam do assunto, vamos em perfis que abordam o assunto e comentamos de forma indireta […], mas NUNCA assinado como iFood para que ninguém desconfie”.
“O modelo era o de propaganda lado B. Tipo o que o Bolsonaro faz com o gabinete do ódio, mas que as agências já fazem há muito tempo”, diz uma das fontes. No universo da propaganda política, esse tipo de ação é comum, explicou uma especialista ouvida pela reportagem. “O lado B é uma prática de campanha política, eles sempre fazem. Toda campanha grande tem uma equipe lado B que basicamente faz conteúdo sobre um inimigo. Sempre sem assinar.”
O conjunto de documentos e os relatos indicam que, entre julho de 2020 e, ao menos, novembro de 2021, a agência Benjamim Comunicação e depois também a agência Social Qi (SQi) monitoraram greves de entregadores. A documentação indica que até, pelo menos outubro de 2021, as agências teriam produzido conteúdo para redes sociais e feito campanha pela vacinação prioritária dos motofretistas a serviço da empresa de delivery.
O início: nasce uma página para desmobilizar entregadores
No dia 1o de julho de 2020, entregadores de aplicativos paralisaram as atividades em 13 estados do país e no Distrito Federal, em uma mobilização nacional que ficou conhecida como o primeiro grande “Breque dos Apps”. Com a greve, os entregadores reivindicavam aumento no valor pago por entrega, medidas de proteção contra a covid-19 e melhores condições de trabalho.
Durante aquele dia, comentários sobre a paralisação inundaram as redes sociais e o “Breque” foi o assunto mais falado no Twitter durante cinco horas. Com mobilização online e nas ruas, a greve se estendeu de manhã até o final da tarde, simultaneamente em capitais e cidades do interior.
À noite, poucas horas depois do “Breque”, o iFood lançou uma carta e um site para rebater críticas, divulgando em horário nobre da TV aberta um anúncio que destacava que a empresa “oferece seguro contra acidentes pessoais e que a maioria [dos entregadores] valoriza o fato de ter flexibilidade de horário e liberdade para compor sua renda”. Começava ali uma campanha da empresa contra as manifestações dos entregadores.
Com a visibilidade alcançada pela greve, a estratégia de comunicação do iFood não se limitaria a comerciais na TV que defendessem a reputação da empresa. Oito dias após o “Breque dos Apps” foi criada a página Não Breca Meu Trampo no Facebook. “O objetivo era suavizar o impacto das greves e desnortear a mobilização dos entregadores”, explicou à reportagem uma pessoa que afirma ter acompanhado o trabalho desenvolvido pelas agências de publicidade.
A descrição da página dizia: “A gente quer melhorar de vida e ganhar mais. SEM patrão e salário mínimo. No corre bem feito a gente tira mais e não tem chefe pra encher o saco. A gente quer liberdade pra trampar pra quem a gente quiser!”.
De colete preto e calça verde-escura no estilo militar, um homem de cerca de 40 anos perambulava em frente ao estádio do Pacaembu, em São Paulo, ao redor de um grupo de entregadores que protestava contra as condições de trabalho dos aplicativos de delivery, no dia 16 de abril de 2021. Carregando uma faixa de cerca de 3 metros, o homem exibia dois adesivos que pediam “vacina pros entregadores de aplicativo já”: um colado no boné, outro no face shield. Nas mãos, carregava pacotes com adesivos iguais para distribuir na manifestação. Parecia ser um entregador que levava suas reivindicações para o movimento. Mas, de acordo com a apuração da reportagem, não era.
Documentos, fotos e relatos obtidos pela Agência Pública indicam que o homem seria um funcionário de uma agência de inteligência e monitoramento digital que prestava serviços em uma campanha contratada pelo iFood. A presença do funcionário teria como objetivo implantar a pauta da vacinação prioritária para motofretistas, como uma estratégia de esvaziamento da narrativa de greve — indicam as fontes ouvidas e relatórios consultados com exclusividade pela reportagem. Durante o ato, o homem dos adesivos divulgou um abaixo-assinado que pedia a vacinação prioritária. A petição online havia sido criada sete dias antes pela equipe da agência de publicidade que o contratou.
Naquele abril de 2021, os adesivos e a faixa que pediam “vacinação já” no estádio do Pacaembu, na zona oeste de São Paulo, vieram acompanhados pela disseminação de posts e comentários de usuários falsos, que teriam sido criados por agências de publicidade a serviço do iFood no Twitter e Facebook. Em paralelo, as agências contratadas teriam criado duas páginas que deram suporte à narrativa: a fanpage de conteúdo político Não Breca Meu Trampo e a página de memes Garfo na Caveira.
A Pública acessou mais de 30 documentos das campanhas — entre relatórios de entrega, cronograma de postagens, vídeos, atas de reuniões e trocas de mensagens —, além de conversar com pessoas que trabalharam nas agências e acompanharam a campanha desenvolvida para o iFood durante pelo menos 12 meses. As pessoas entrevistadas serão mantidas em anonimato nesta reportagem por temerem represálias profissionais após a publicação da denúncia.
Marketing 4.0: “para que ninguém desconfie”
A situação, descreve uma das fontes que afirma ter trabalhado nas campanhas contratadas pelo iFood, “é o que chamam de marketing 4.0”. “Você posta memes, piadas e vídeos que promovem uma marca ou ideia, mas sem mostrar quem está por trás. Sem assinar”, explica. “É aquele tipo de conteúdo que te deixa em dúvida: você não sabe se foi um meme, uma coisa que surgiu na internet ou se teve alguém por trás”.
Segundo os relatos, o objetivo da publicidade não assinada era disseminar ideias e opiniões em um formato que imitasse a forma dos entregadores de se comunicarem, simulando que as postagens e narrativas vinham de verdadeiros entregadores. Um documento acessado pela reportagem descreve: “Toda vez que trabalhamos com o iFood criamos estratégias para o ‘LADO B’. Essas estratégias têm como objetivo criar um leve rumor nas redes sociais sobre o assunto que queremos abordar no momento”.
O documento, que seria usado como guia pelas agências de publicidade, explica a tática: “Usamos Páginas de Facebook, Perfis do Instagram, Perfis de Twitter, Perfis de Facebook, criados por nós para gerar esses rumores. Como? Comentamos em publicações que falam do assunto, vamos em perfis que abordam o assunto e comentamos de forma indireta […], mas NUNCA assinado como iFood para que ninguém desconfie”.
“O modelo era o de propaganda lado B. Tipo o que o Bolsonaro faz com o gabinete do ódio, mas que as agências já fazem há muito tempo”, diz uma das fontes. No universo da propaganda política, esse tipo de ação é comum, explicou uma especialista ouvida pela reportagem. “O lado B é uma prática de campanha política, eles sempre fazem. Toda campanha grande tem uma equipe lado B que basicamente faz conteúdo sobre um inimigo. Sempre sem assinar.”
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O conjunto de documentos e os relatos indicam que, entre julho de 2020 e, ao menos, novembro de 2021, a agência Benjamim Comunicação e depois também a agência Social Qi (SQi) monitoraram greves de entregadores. A documentação indica que até, pelo menos outubro de 2021, as agências teriam produzido conteúdo para redes sociais e feito campanha pela vacinação prioritária dos motofretistas a serviço da empresa de delivery.
O início: nasce uma página para desmobilizar entregadores
No dia 1o de julho de 2020, entregadores de aplicativos paralisaram as atividades em 13 estados do país e no Distrito Federal, em uma mobilização nacional que ficou conhecida como o primeiro grande “Breque dos Apps”. Com a greve, os entregadores reivindicavam aumento no valor pago por entrega, medidas de proteção contra a covid-19 e melhores condições de trabalho.
Durante aquele dia, comentários sobre a paralisação inundaram as redes sociais e o “Breque” foi o assunto mais falado no Twitter durante cinco horas. Com mobilização online e nas ruas, a greve se estendeu de manhã até o final da tarde, simultaneamente em capitais e cidades do interior.
À noite, poucas horas depois do “Breque”, o iFood lançou uma carta e um site para rebater críticas, divulgando em horário nobre da TV aberta um anúncio que destacava que a empresa “oferece seguro contra acidentes pessoais e que a maioria [dos entregadores] valoriza o fato de ter flexibilidade de horário e liberdade para compor sua renda”. Começava ali uma campanha da empresa contra as manifestações dos entregadores.
Com a visibilidade alcançada pela greve, a estratégia de comunicação do iFood não se limitaria a comerciais na TV que defendessem a reputação da empresa. Oito dias após o “Breque dos Apps” foi criada a página Não Breca Meu Trampo no Facebook. “O objetivo era suavizar o impacto das greves e desnortear a mobilização dos entregadores”, explicou à reportagem uma pessoa que afirma ter acompanhado o trabalho desenvolvido pelas agências de publicidade.
A descrição da página dizia: “A gente quer melhorar de vida e ganhar mais. SEM patrão e salário mínimo. No corre bem feito a gente tira mais e não tem chefe pra encher o saco. A gente quer liberdade pra trampar pra quem a gente quiser!”.
Reprodução Facebook
Reprodução Facebook
“As páginas foram feitas para interagir com os entregadores, para entender eles. Mas também para ajudar o iFood no seguinte sentido: as pessoas querem fazer greve, mas o iFood não quer greve, então, ao invés de cancelar a manifestação e soltar um monte de fake news, nós usávamos a inteligência [digital] para entender como é que poderíamos esvaziar a narrativa da greve”, contou uma fonte que também afirmou ter trabalhado no projeto por meses.
Nas primeiras semanas, a página se concentrou em hostilizar a mobilização dos entregadores, acusando o movimento de “fazer politicagem”. Nos meses seguintes, além de atacar as manifestações, fez oposição a projetos de lei que visavam regulamentar o trabalho dos entregadores e previam benefícios para a categoria.
De colete preto e calça verde-escura no estilo militar, um homem de cerca de 40 anos perambulava em frente ao estádio do Pacaembu, em São Paulo, ao redor de um grupo de entregadores que protestava contra as condições de trabalho dos aplicativos de delivery, no dia 16 de abril de 2021. Carregando uma faixa de cerca de 3 metros, o homem exibia dois adesivos que pediam “vacina pros entregadores de aplicativo já”: um colado no boné, outro no face shield. Nas mãos, carregava pacotes com adesivos iguais para distribuir na manifestação. Parecia ser um entregador que levava suas reivindicações para o movimento. Mas, de acordo com a apuração da reportagem, não era.
Documentos, fotos e relatos obtidos pela Agência Pública indicam que o homem seria um funcionário de uma agência de inteligência e monitoramento digital que prestava serviços em uma campanha contratada pelo iFood. A presença do funcionário teria como objetivo implantar a pauta da vacinação prioritária para motofretistas, como uma estratégia de esvaziamento da narrativa de greve — indicam as fontes ouvidas e relatórios consultados com exclusividade pela reportagem. Durante o ato, o homem dos adesivos divulgou um abaixo-assinado que pedia a vacinação prioritária. A petição online havia sido criada sete dias antes pela equipe da agência de publicidade que o contratou.
Naquele abril de 2021, os adesivos e a faixa que pediam “vacinação já” no estádio do Pacaembu, na zona oeste de São Paulo, vieram acompanhados pela disseminação de posts e comentários de usuários falsos, que teriam sido criados por agências de publicidade a serviço do iFood no Twitter e Facebook. Em paralelo, as agências contratadas teriam criado duas páginas que deram suporte à narrativa: a fanpage de conteúdo político Não Breca Meu Trampo e a página de memes Garfo na Caveira.
A Pública acessou mais de 30 documentos das campanhas — entre relatórios de entrega, cronograma de postagens, vídeos, atas de reuniões e trocas de mensagens —, além de conversar com pessoas que trabalharam nas agências e acompanharam a campanha desenvolvida para o iFood durante pelo menos 12 meses. As pessoas entrevistadas serão mantidas em anonimato nesta reportagem por temerem represálias profissionais após a publicação da denúncia.
Marketing 4.0: “para que ninguém desconfie”
A situação, descreve uma das fontes que afirma ter trabalhado nas campanhas contratadas pelo iFood, “é o que chamam de marketing 4.0”. “Você posta memes, piadas e vídeos que promovem uma marca ou ideia, mas sem mostrar quem está por trás. Sem assinar”, explica. “É aquele tipo de conteúdo que te deixa em dúvida: você não sabe se foi um meme, uma coisa que surgiu na internet ou se teve alguém por trás”.
Segundo os relatos, o objetivo da publicidade não assinada era disseminar ideias e opiniões em um formato que imitasse a forma dos entregadores de se comunicarem, simulando que as postagens e narrativas vinham de verdadeiros entregadores. Um documento acessado pela reportagem descreve: “Toda vez que trabalhamos com o iFood criamos estratégias para o ‘LADO B’. Essas estratégias têm como objetivo criar um leve rumor nas redes sociais sobre o assunto que queremos abordar no momento”.
O documento, que seria usado como guia pelas agências de publicidade, explica a tática: “Usamos Páginas de Facebook, Perfis do Instagram, Perfis de Twitter, Perfis de Facebook, criados por nós para gerar esses rumores. Como? Comentamos em publicações que falam do assunto, vamos em perfis que abordam o assunto e comentamos de forma indireta […], mas NUNCA assinado como iFood para que ninguém desconfie”.
“O modelo era o de propaganda lado B. Tipo o que o Bolsonaro faz com o gabinete do ódio, mas que as agências já fazem há muito tempo”, diz uma das fontes. No universo da propaganda política, esse tipo de ação é comum, explicou uma especialista ouvida pela reportagem. “O lado B é uma prática de campanha política, eles sempre fazem. Toda campanha grande tem uma equipe lado B que basicamente faz conteúdo sobre um inimigo. Sempre sem assinar.”
Seja aliada da Pública
Todos precisam conhecer as injustiças que a Pública revela. Ajude nosso jornalismo a pautar o debate público.
O conjunto de documentos e os relatos indicam que, entre julho de 2020 e, ao menos, novembro de 2021, a agência Benjamim Comunicação e depois também a agência Social Qi (SQi) monitoraram greves de entregadores. A documentação indica que até, pelo menos outubro de 2021, as agências teriam produzido conteúdo para redes sociais e feito campanha pela vacinação prioritária dos motofretistas a serviço da empresa de delivery.
O início: nasce uma página para desmobilizar entregadores
No dia 1o de julho de 2020, entregadores de aplicativos paralisaram as atividades em 13 estados do país e no Distrito Federal, em uma mobilização nacional que ficou conhecida como o primeiro grande “Breque dos Apps”. Com a greve, os entregadores reivindicavam aumento no valor pago por entrega, medidas de proteção contra a covid-19 e melhores condições de trabalho.
Durante aquele dia, comentários sobre a paralisação inundaram as redes sociais e o “Breque” foi o assunto mais falado no Twitter durante cinco horas. Com mobilização online e nas ruas, a greve se estendeu de manhã até o final da tarde, simultaneamente em capitais e cidades do interior.
À noite, poucas horas depois do “Breque”, o iFood lançou uma carta e um site para rebater críticas, divulgando em horário nobre da TV aberta um anúncio que destacava que a empresa “oferece seguro contra acidentes pessoais e que a maioria [dos entregadores] valoriza o fato de ter flexibilidade de horário e liberdade para compor sua renda”. Começava ali uma campanha da empresa contra as manifestações dos entregadores.
Com a visibilidade alcançada pela greve, a estratégia de comunicação do iFood não se limitaria a comerciais na TV que defendessem a reputação da empresa. Oito dias após o “Breque dos Apps” foi criada a página Não Breca Meu Trampo no Facebook. “O objetivo era suavizar o impacto das greves e desnortear a mobilização dos entregadores”, explicou à reportagem uma pessoa que afirma ter acompanhado o trabalho desenvolvido pelas agências de publicidade.
A descrição da página dizia: “A gente quer melhorar de vida e ganhar mais. SEM patrão e salário mínimo. No corre bem feito a gente tira mais e não tem chefe pra encher o saco. A gente quer liberdade pra trampar pra quem a gente quiser!”.
Reprodução Facebook
Reprodução Facebook
“As páginas foram feitas para interagir com os entregadores, para entender eles. Mas também para ajudar o iFood no seguinte sentido: as pessoas querem fazer greve, mas o iFood não quer greve, então, ao invés de cancelar a manifestação e soltar um monte de fake news, nós usávamos a inteligência [digital] para entender como é que poderíamos esvaziar a narrativa da greve”, contou uma fonte que também afirmou ter trabalhado no projeto por meses.
Nas primeiras semanas, a página se concentrou em hostilizar a mobilização dos entregadores, acusando o movimento de “fazer politicagem”. Nos meses seguintes, além de atacar as manifestações, fez oposição a projetos de lei que visavam regulamentar o trabalho dos entregadores e previam benefícios para a categoria.
Quando a “Não Breca Meu Trampo” apareceu nas redes, um alerta acendeu na cabeça de entregadores que acompanhavam as mobilizações. “A gente suspeitava que era um conteúdo pago por empresa, porque veio do nada e cheio de postagem, mas ficava no boato”, conta Edgar Silva, presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMA-BR). Paulo Lima, o Galo do Movimento dos Entregadores Antifascistas, lembra que assim que a página surgiu “os motoboys vieram trazer pra mim perguntando quem será que estaria por trás”. Galo conta que as suspeitas sobre a autoria da página cresceram, mas ninguém tinha evidências que comprovassem quem estaria por trás da “Não Breca Meu Trampo”.
Quando a “Não Breca Meu Trampo” foi criada, um grupo com o mesmo nome foi aberto por Moriael Paiva, também no Facebook. Marqueteiro conhecido no universo da propaganda política, Paiva coordenou as campanhas de Gilberto Kassab em 2008 e José Serra em 2010. Em seu perfil no LinkedIn, descreve-se como consultor em gestão de crise e posicionamento digital.
“A gente matou o Galo”
Um vídeo obtido pela Pública mostra publicitários da Benjamim Comunicação falando da criação da página. Adriana Souza, sócia da agência, rememora no vídeo durante uma reunião no dia 7 de julho de 2021: “A gente, quando fez essa página, tinha uma situação emergencial para resolver”. E afirma: “O próprio manifesto da Não Breca [Meu Trampo] é um pouco mais aberto. A gente, quando fez, não queria uma identificação tão rápida”.
A Benjamim Comunicação, agência que não possui site nem redes sociais ativos, tem como sócio e administrador Luiz Flávio Guimarães Marques — mais conhecido como Lula Guimarães no universo do marketing político-eleitoral. Lula foi o responsável pela propaganda da campanha presidencial de Eduardo Campos e Marina Silva (2014), de Alckmin à Presidência (2018) e de João Doria à prefeitura de São Paulo, em 2016. Nos arquivos do projeto para o iFood, aos quais a Pública teve acesso, Lula é mencionado como diretor da Benjamim e pessoa para quem se apresentavam os relatórios para aprovação.
No vídeo acessado pela reportagem, coordenadores da Benjamim Comunicação avaliam a incidência da página “Não Breca Meu Trampo”. Mencionam que a fanpage “cumpriu uma missão”, mas “contaminou” e deveria ser suspensa. Na análise dos publicitários, a narrativa disseminada pela página teria sido responsável por enfraquecer a liderança de Paulo Lima, o Galo, líder do Movimento dos Entregadores Antifascistas, que tinha grande popularidade na época.
A página “Não Breca Meu Trampo” postou ativamente entre julho de 2020 e junho de 2021. Segundo os relatos e documentos obtidos pela reportagem, a Benjamim teria contratado entregadores para gravar vídeos periódicos para as páginas, seguindo roteiros elaborados pelas equipes de redatores. Durante uma das discussões sobre formato do conteúdo, no grupo de WhatsApp, um dos coordenadores do projeto escreveu: “Ficar atento com o principal, que é jamais saberem que tem uma agência por trás disso”.
Em uma das postagens da página, um vídeo gravado por um suposto entregador diz: “Nossa briga é contra o governo. Nossa luta é contra o governo para que o governo nos olhe, nos dê atenção”. Já em outro vídeo, de junho de 2021, um suposto entregador se opõe à regulamentação do setor, dizendo: “Vários perdeu emprego, a única solução que nos teve foi os aplicativos, se não nós estaria até passando fome. Pra nós o jeito que está tá bom”. E conclui: “Quem levanta cedo e corre atrás do seu tá garantido”.
De acordo com o levantamento da reportagem, a responsável pela “Não Breca Meu Trampo”, a Benjamim Comunicação, teria sido contratada pelo iFood pelo setor de políticas públicas da empresa, ao menos entre 2020 e 2021. Além da página “Não Breca Meu Trampo”, a agência teria coordenado a criação de outras duas páginas e ao menos oito perfis falsos que serão detalhados ao longo desta reportagem.
De acordo com os documentos obtidos pela Pública, em janeiro de 2021 uma outra agência especializada em monitoramento e marketing digital entrou como um braço da Benjamim no projeto. A SQi passou a administrar a página “Não Breca Meu Trampo”, além de criar outras páginas e usuários falsos no Facebook e Twitter.
A SQi é uma agência focada no gerenciamento de crises, campanhas políticas e monitoramento de redes para entes públicos e privados — segundo seu site. Ela trabalha com base em programas de monitoramento de redes sociais — conhecidos como softwares de “big data” por terem a capacidade de obter informações a partir de conjuntos muito volumosos de dados. A empresa foi contratada por João Doria para fazer monitoramento de suas redes, segundo publicação da BBC Brasil. Atualmente, também cuida do monitoramento de redes e marketing digital do Corinthians.
Na imagem acima, o primeiro arquivo mostra o que seria uma apresentação de slides com planejamento de posts desenvolvidos pela SQi e enviados para aprovação. O segundo arquivo exibe a peça publicitária aprovada e postada na página “Não Breca Meu Trampo”. Os relatórios e arquivos acessados pela reportagem mostram que antes da publicação cada conteúdo passava pela aprovação da equipe da Benjamim — a agência que teria a conta direta com o iFood.
O esquema se amplia: humor e memes
De acordo com a documentação obtida, com a entrada da SQi no projeto em janeiro de 2021, o conjunto de temas e formatos das postagens se ampliou. Em 19 de janeiro de 2021, a equipe de criação da agência lançou uma nova página, focada em memes. A “Garfo na Caveira” — página que segue ativa — posta piadas com temas de interesse dos entregadores e enaltece o trabalho de entrega via aplicativos, no Facebook e Instagram. Durante oito meses, especialistas em monitoramento de redes sociais, redatores e diretores de arte, elaboraram as publicações sob a coordenação de Roberto Marques, cofundador da agência.
“A orientação era fazer conteúdos engraçados, que gerassem engajamento. Podia falar mal do Rappi ou Uber Eats, mas não do iFood”, disse à Pública uma pessoa que afirmou ter prestado serviços às agências no projeto iFood. Segundo ela, o conteúdo, estética e vocabulário utilizados nos posts eram embasados em relatórios de monitoramento de redes e pesquisas sobre o universo dos entregadores. A equipe da SQi teria se infiltrado em 15 grupos no WhatsApp e analisou mais de 19 mil mensagens, segundo consta em um relatório de junho de 2021, obtido pela reportagem.
“Através do monitoramento, a gente coletava o que os entregadores estão falando, quais eram os assuntos populares, e usava esse insumo para preparar nossa narrativa”, comentou uma fonte que também teria trabalhado na campanha. “Também usamos pesquisas quantitativas e qualitativas que analisavam o perfil dos entregadores. Aí, pudemos entender, por exemplo, qual a importância do aplicativo na vida deles.”
Um dos levantamentos consultados pelos redatores teria sido realizado pela Locomotiva Pesquisas e Estratégia, sob encomenda do iFood, em março de 2021. A pesquisa, que teve uma amostra de 1.484 entrevistados, indica que o delivery é a fonte principal de renda para cerca de 89% dos entregadores, sendo responsável por cobrir despesas como comida, água e luz. Entre os mais pobres, 94% dos entregadores declararam depender das entregas como principal fonte de renda para os gastos cotidianos.
A equipe da SQi teria se aproveitado das estatísticas para calibrar o tom dos posts da página “Garfo na Caveira”, apontam as fontes. Em meio a piadas sobre o preço da gasolina, memes que brincam com as condições de trabalho viralizaram.
Segundo a mesma pesquisa do perfil do entregador, a maioria dos entregadores (61%) trabalha sete dias por semana para o aplicativo. O levantamento aponta ainda que 47% trabalham mais de 10 horas diárias, e 17% passam mais de 12 horas fazendo entregas. A margem de erro declarada na pesquisa é de 2,5 pontos percentuais.
Outros estudos apontam para a mesma realidade: uma pesquisa da Universidade Federal da Bahia (Ufba) revela que a jornada de trabalho ultrapassa 10 horas entre os entregadores que têm os aplicativos como principal fonte de renda.
A jornada de trabalho extensa aparece nas postagens de “Garfo na Caveira” em formato de memes ou posts motivacionais. Intercalando postagens engraçadas com peças mais sérias, a página foi conquistando engajamento em posts que exaltavam o trabalho no modelo imposto pelos aplicativos.
Em junho de 2021, as páginas “Não Breca Meu Trampo” e “Garfo na Caveira” teriam alcançado 3,16 milhões de pessoas, com 181 novos posts criados. A informação consta em um relatório semestral apresentado pela SQi para os clientes. Segundo o documento, a agência conquistou 21.029 novos seguidores no período.
Além de contar com o trabalho da equipe de cerca de 12 pessoas, os publicitários contrataram anúncios do Facebook para aumentar o alcance das páginas. Entre abril e agosto de 2021, foram investidos R$12.232,73 no impulsionamento de posts na plataforma, aponta um relatório obtido pela reportagem.
De acordo com os documentos, em paralelo aos memes e postagens de humor, o projeto conduzido pelas agências Benjamim e SQi ampliou a atuação online para além das fanpages. A reportagem identificou que foram usados oito perfis de usuários falsos no Facebook e Twitter para engajar em outra missão: implantar a reivindicação pela vacinação prioritária da covid-19 entre os motofretistas.
O marketing digital chega às ruas: “missão vacina” e agente infiltrado
“Nessa de esvaziar a narrativa das greves, a inteligência [digital] e o monitoramento indicaram uma nova pauta. E sabe qual foi a pauta que eles descobriram? A vacina”, revelou uma fonte ligada ao projeto. Por mais de três meses, o arsenal de fanpages e perfis de usuários fake pautou a vacinação prioritária dos entregadores, reivindicando o imunizante em publicações de políticos e divulgando posts em grupos de entregadores.
“A estratégia era passar a ideia: ‘Brecar não está com nada. A gente quer vacina para trabalhar’ ou ‘A gente quer vacina para continuar trabalhando feliz’. Aí começaram a usar isso como narrativa”, contou à Pública uma das fontes que disse ter trabalhado por meses no projeto.
O objetivo era mobilizar entregadores em torno da aprovação do Projeto de Lei (PL) 1.011/2020, que previa a inclusão de entregadores na fase IV do Plano Nacional de Imunização. Um documento obtido pela reportagem mostra o planejamento tático desenvolvido pela SQi em abril de 2021, com o passo a passo da campanha, que incluía mobilização de políticos, utilização de usuários fake para disseminação da pauta, postagens nas páginas e um abaixo-assinado.
Fontes ouvidas pela Pública contam que a vacinação apareceu como pauta estratégica para esvaziar a narrativa das greves e paralisações. O passo a passo previsto no planejamento tático, conforme demonstram os documentos acima, foi seguido e, durante meses, contas nas redes sociais administradas pela agência disseminaram a pauta.
O tema da vacinação prioritária não era inédito para o iFood. No final de janeiro, a empresa anunciou uma doação de R$ 5 milhões para a construção de novas instalações do Instituto Butantan. Segundo noticiou a Folha de S.Paulo, a doação gerou críticas e desconforto no setor após o presidente da empresa, Fabrício Bloisi, ter postado em suas redes sociais um pedido de vacinação dos entregadores. Meses depois, as páginas administradas pelas agências de marketing digital ecoaram o mesmo pedido — sem a assinatura oficial da marca.
Mas a campanha de marketing pela vacina não ficou restrita à atuação online. Em abril de 2021, os entregadores organizavam mais uma sequência de greves na capital paulista e a SQi decidiu enviar um funcionário para a manifestação.
Relatos e documentos indicam que, no dia 16, um funcionário da agência foi até a entrada do estádio do Pacaembu, ponto de encontro dos grevistas, durante a paralisação. Fingindo ser um entregador, pendurou ao lado do ato uma faixa que pedia “Vacina para os entregadores de aplicativo já” e distribuiu adesivos com a mesma frase. A ação foi considerada um dos principais casos de sucesso da campanha e inserida em um relatório elaborado pela SQi para o cliente.
A defesa da vacinação prioritária, que teria sido levada à manifestação pelo funcionário infiltrado, atraiu a atenção da mídia, que repercutiu a reivindicação como uma demanda real dos entregadores. No dia da paralisação, a Folha de S.Paulo, o Yahoo Notícias e um programa da Band inseriram em suas manchetes que durante a paralisação “entregadores pedem vacina contra covid-19”.
Conforme relatado à reportagem, a ação foi também postada em outra página criada por funcionário da SQi, a “Motofrete de App” — atualmente inativa. Simultaneamente, de acordo com o que foi apurado pela Pública, as páginas “Não Breca Meu Trampo” e perfis falsos disseminaram o abaixo-assinado criado pela equipe da SQi, pedindo a vacinação. Vídeos com supostos entregadores contratados também foram postados pelas páginas, pedindo atenção para a pauta. Seguindo roteiros previamente estabelecidos pela agência, os vídeos repercutiam a mesma mensagem.
No Twitter, perfis de usuários falsos que seriam administrados pelas agências de publicidade também postaram sobre a vacinação dos entregadores. “Porque nois motoca precisa ser vacinado, ajuda a aprova o PL1011 e aprova nossa classe q ta mais de um ano ae na linha de frente”, tuitou uma das contas.
No vídeo acima, uma das coordenadoras da campanha fala sobre uma terceira página que seria criada na nova etapa de campanha focada na defesa de um marco regulatório para o trabalho via aplicativos. A publicitária menciona a possibilidade de ter mais vídeos gravados em primeira pessoa por supostos entregadores contratados pela agência na nova página, que seria dedicada às mudanças legislativas apoiadas pela empresa. Diz: “Trabalhar narrativas sempre pontuais com os vídeos dos meninos [entregadores que gravam vídeos para a agência], talvez inovar em formato. A gente pode trazer eles pra uma reunião e dizer que precisamos que eles mostrem um pouco de flagrante, coisas que possam viralizar”.
Após os meses de trabalho conjunto da Benjamim e SQi, a ação digital e presencial na pauta da vacinação foi considerada um caso de sucesso pela equipe das agências e pelo cliente final, segundo os documentos e relatos. Em agosto de 2021, ao falar sobre uma possível próxima etapa da campanha, os resultados alcançados com a pauta da vacina foram elogiados. A estratégia utilizada no “vacina para entregadores já” foi citada como referência para a atuação focada no marco regulatório para trabalhadores de aplicativo.
Os documentos internos da campanha obtidos pela reportagem indicam que havia uma expectativa dentro da empresa de delivery de que avançasse em Brasília a proposta de regulação do setor apoiada pelo iFood. Em paralelo, as agências de publicidade se preparavam para despejar na rede menções indiretas ao marco regulatório. A Benjamim e a SQi planejaram a produção de conteúdos específicos que defendessem o “MRP” — sigla utilizada internamente para o marco regulatório.
Em 23 de julho de 2021, o presidente do iFood havia publicado um artigo na Folha de S.Paulo em que sinalizava o interesse de a empresa “abrir caminho para construir, coletivamente, um marco regulatório”. No mesmo dia e também nas semanas seguintes, o assunto pipocaria no cronograma de postagens das agências.
A reportagem não localizou a nova página que seria criada para defender a pauta do marco regulatório.
O apoio para todo o esquema: perfis falsos e nanoinfluenciadores
Durante os meses em que a SQi e a Benjamim produziram conteúdo não assinado para o iFood, foram criados perfis de usuários no Facebook e Twitter para engajar posts e repercutir narrativas. A criação de perfis falsos, que se passavam por entregadores, teria sido uma das estratégias usadas para aumentar o alcance da propaganda “lado B” — indicaram as fontes entrevistadas.
“Os app de entrega trouxe oportunidade de emprego e renda pra quem não tem trampo. Tuitar por breque vai contra nois motoca que precisamo levar o sustento pra casa.” Os 162 caracteres foram postados no Twitter no dia 23 de julho de 2021, em resposta a um post que defendia o #ApagãodosApps — um boicote organizado pelos entregadores para pressionar as plataformas de delivery por melhores condições de trabalho. Naquele dia, a conta @MiiFerreira6 respondeu a outros 23 tuítes sobre o #ApagãodosApps, repetindo o mesmo discurso: defendendo as plataformas de entrega e argumentando que a mobilização online, na verdade, prejudicava os entregadores.
Em um tuíte em que o jornalista Xico Sá sinalizou apoio à causa dos entregadores, a conta escreveu: “Se não fosse os app nois motoca tava tudo passando fome na pandemia”. Em outra postagem, que veiculava uma fala do entregador Galo pedindo apoio dos consumidores ao boicote, a mesma conta tuitou: “Nois q é motoca não ajuda não! Sexta feira é dia q os corre bomba, bora acelera e mete marcha”.
Sempre escrevendo em primeira pessoa, os posts de @MiiFerreira6 no dia da mobilização contêm a expressão “nois motoca”, para sinalizar que a opinião ali exposta vinha de um entregador. Mas não. Os tuítes que a conta @MiiFerreira6 postou em 23 de julho haviam sido escritos, revisados e aprovados em um cronograma de postagens produzido pelas agências de marketing digital, ao qual a reportagem teve acesso.
Segundo os documentos e relatos obtidos pela Pública, dentro das agências os usuários falsos utilizados para disseminar e engajar a narrativa da campanha eram chamados de “VIPs”. A base para as postagens vinha de documentos chamados “FAQs” — perguntas e respostas — elaborados pela equipe de criação. “Era definida narrativa que nós temos que construir e a partir disso escreviam, por exemplo: se alguém falar que o iFood paga mal, vamos responder que na verdade o iFood paga x% a mais que os outros aplicativos e y% a mais que cooperativa. A equipe formulava essa resposta de três maneiras diferentes e postavam”, explicou uma das fontes ouvidas.
Naquela sexta-feira de inverno, dois redatores e um gestor de equipe contratados pela SQi tinham começado a trabalhar cedo para produzir os posts que tentariam deslegitimar a mobilização online organizada por entregadores. Usando gírias e fugindo da norma ortográfica formal, os tuítes haviam sido redigidos com uma escolha minuciosa de palavras e abreviações, para fazer parecer que quem estava por trás das postagens eram verdadeiros entregadores, ou, como escreviam, verdadeiros “motocas”.
No mesmo dia, outras contas no Twitter repetiram a mesma estratégia. As contas @EdmarSa62856378 e @HenriAlcantara2 postaram juntas outros 59 tuítes ecoando a narrativa elaborada pela equipe das agências para esvaziar a mobilização do #ApagãodosApps. Em uma resposta, a conta @HenriAlcantara2 escreveu “q apoia a tropa mano nao fala besteira na rua nao temos como levar o dinher pr casa e como q fas?????”.
Em outra resposta, os perfis apontados como fake tuitaram: “pelo menos o iFood garante o nosso sustento, tu n sabe o q é passa fome e n te o q da para os nossos filhos…Se não fosse os apps das bag vermelha nas costas aí sim vc ia ver o que é fome meu truta. eles a cada dia criam alternativas pra melhorar o dia a dia dos entregadores”. Além das postagens durante o tuitaço #ApagãodosApps, as mesmas contas no Twitter foram utilizadas para disseminar outras narrativas a serviço do aplicativo de entrega.
Os perfis falsos foram mobilizados também para minar outras manifestações organizadas por entregadores. No dia 14 de outubro de 2021, os motofretistas organizaram uma greve para cobrar aumento nos valores das entregas e mais transparência sobre as regras de bloqueio de entregadores. Em Jundiaí (SP), dezenas de entregadores paralisaram as entregas, atraindo atenção da mídia e de usuários nas redes sociais. Novamente, as páginas falsas entraram em campo para tentar enfraquecer o movimento.
“Quer dizer q Jundiaí ta botando banca e incentivando breque? Jundiai virou nova iorke? Só tem bacana, que não precisa dos corre pra ganhar a vida?”, debochou um tuíte da conta @HenriAlcantara2. “Será q vcs não tem compaixão com os pai de família, que vao ficar sem sustento pra levar comida pra casa? os cara não tem escolha, tem q trampar pra família comer, simples irmão”, apelava em outro post. Em outros tuítes, a estratégia era tentar deslegitimar os grevistas que faziam a paralisação.
A Pública constatou, com base na documentação obtida, que ao menos cinco usuários do Twitter que escreviam se passando por entregadores foram criados pela equipe da SQi em janeiro de 2021, quando a agência foi contratada pela Benjamim Comunicação. Ao longo dos meses, os usuários falsos @Claudio94887053, @MotocaSincerao, @MiiFerreira6, @VickSan71574301 e @HenriAlcantara2 variaram a quantidade de respostas em tuítes, mas sempre mantiveram seus posts dentro das estratégias de narrativa definidas pela SQi e Benjamim Comunicação.
Objetivo alcançado: “esvaziar o discurso“
Entre as páginas administradas pela campanha “lado B”, a “Garfo na Caveira” continua ativa e postando conteúdos. Já a página “Não Breca Meu Trampo” parou de ser alimentada em julho de 2021. Em um registro acessado pela reportagem, um dos coordenadores da campanha resume o trabalho: “Coisas assim que vão tirando o foco. Como a gente fez, por exemplo, com a greve geral. O Garfo [página “Garfo na Caveira”] abriu um território importante, de chegar de igual pra igual. E depois isso serviu pra gente ir esvaziando o discurso”.
Em outubro de 2021, a SQi parou de prestar o serviço de criação de conteúdos para as campanhas coordenadas pela Benjamim — a reportagem não conseguiu apurar quais seriam os motivos do fim do contrato. No entanto, a SQi continuou monitorando as redes e enviando informações para a agência contratada pelo iFood, até novembro de 2021.
Em dezembro, no final do ano que foi marcado pelas greves e pelo trabalho oculto das agências, o iFood selecionou 23 entregadores para participarem de um fórum organizado pela empresa. Segundo a divulgação, a iniciativa serviria para ouvir os trabalhadores e dialogar sobre melhorias para a categoria. Paulo Galo, líder dos Entregadores Antifascistas e uma das lideranças do “Breque dos Apps”, disse à Pública que não foi convidado. Edgar Silva, presidente da AMA-BR, comentou que não compareceria ao evento. “Isso de diálogar com a categoria é mentira, fazem esse evento só pra ouvir o que queremos e colher mais informações pra jogar contra nós. A nossa principal reivindicação, que é aumentar o preço das taxas, eles sabem bem qual é, mas não escutam.”
O fórum, feito a portas fechadas com os entregadores selecionados, rendeu uma carta de compromissos assinada pela empresa no dia 15 de dezembro de 2021. No documento, o iFood se comprometia a reforçar a transparência com entregadores e rever as suspensões de contas daqueles que foram bloqueados. No LinkedIn, o gerente de políticas do iFood, Pedro Prochno, escreveu sobre o evento: “[Somos] a primeira empresa a fazer algo deste tipo no país”. Sobre um aumento na remuneração dos entregadores, durante o fórum o iFood se comprometeu a analisar a possibilidade de um ajuste anual, até março de 2022.
Em 18 de março, duas semanas antes de uma greve de entregadores convocada para dia 1o de abril, o iFood divulgou um reajuste na taxa de entrega repassada aos entregadores. Segundo comunicado oficial da empresa, a taxa mínima por rota passará de R$ 5,31 para R$ 6, e o valor mínimo por quilômetro rodado aumentará de R$ 1 para R$ 1,50 a partir do dia 2 de abril.
Um dia antes da divulgação do reajuste, foi publicado pela primeira vez no Brasil um estudo sobre as condições de trabalho em plataformas digitais, coordenado pelo Oxford Internet Institute e pelo WZB Berlin Social Science Centre. A pesquisa, feita em 27 países, estabelece cinco critérios para mensurar o “trabalho decente”. Na análise, em uma escala que vai de 0 a 10, o iFood tirou nota 2.
Outro lado
A reportagem procurou todas as empresas e pessoas citadas na reportagem, se colocando à disposição para ouvi-las por meio de entrevista, nota ou ligação telefônica. Luís Flávio Guimarães respondeu que os esclarecimentos em seu nome seriam feitos por representante da Benjamim Comunicação. Moriael Paiva foi procurado por telefone, mensagens instantâneas e email mas não retornou à reportagem.
As agências Benjamim Comunicação e Social Qi foram procuradas via telefone e email. Por telefone, André Pontes, representante da Benjamim afirmou à reportagem que a agência possui contrato de monitoramento de redes com o iFood desde setembro de 2020. “O nosso trabalho com iFood — e aí eu posso falar até certo ponto, porque existe uma cláusula de confidencialidade com o iFood, justamente por causa de concorrentes deles como rappi, loggi, etc…Pro iFood nós temos um monitoramento, que a gente monitora todas as redes que dizem respeito ao cluster deles”.
Em nota, a Benjamim Comunicação declarou: “A Agência de Comunicação Benjamim foi contratada pelo iFood para realizar pesquisa de opinião e monitoramento de postagens nas redes sociais e tem em seu escopo ouvir assuntos ligados ao ecossistema do food delivery.
A Agência de Comunicação Benjamim recebe constantemente propostas solicitadas e não solicitadas de diferentes agências de comunicação e não aprovou junto ao iFood ideias ou campanhas propostas pela Social QI, sua subcontratada por um curto período em 2021 para monitoramento de redes sociais para diversos clientes. A reportagem da Agência Pública não permitiu acesso aos supostos documentos que foram oriundos da Social QI. Estranhamos uma reportagem que não tenha uma checagem dupla, com várias fontes, para autenticidade de supostas denúncias.
A Benjamim não concorda com práticas como produção de fake news, uso de bots ou perfis falsos para interações ou compra de likes e seguidores, sempre realizando seu trabalho dentro da legalidade.”
A agência Social Qi retornou à reportagem via nota, copiada na íntegra: “A Social QI é uma agência de marketing digital que faz monitoramento de redes sociais e ações de comunicação para clientes em todo o país. É prática do mercado fazer propostas para clientes atuais ou em prospecção, sugerindo ações, sempre respeitando os limites legais, que podem ou não serem aprovados ou realizados pelos clientes.
Como a reportagem não disponibilizou o acesso requisitado aos materiais mencionados, não pudemos sequer verificar sua autenticidade, muito menos tecer comentários sobre seu suposto teor, que pode ter sido alvo de edições, manipulações e adulterações de um ex-funcionário, por exemplo.
No desenvolvimento de nossos negócios, realizamos diversos trabalhos em parceria com a Agência Benjamin, inclusive propondo possíveis ações de comunicação para seus clientes. Nesse contexto, fomos contratados pela Benjamin em 2021 para realizar monitoramento de redes sociais sobre o mercado de entrega de refeições no Brasil, e apresentamos propostas de trabalho, que não necessariamente foram aprovadas pela agência.
Baseado apenas pelas perguntas enviadas pela reportagem, supomos que a Agência Pública esteja fazendo referência a uma possível proposta de trabalho que a Social QI sugeriu à Benjamin sobre a criação de um “marco regulatório”, a qual não foi aprovada pela agência e, portanto, não foi realizada.”
A reportagem também buscou contato com o iFood, que retornou via nota, reproduzida na íntegra: “A respeito da solicitação da Agência Pública, o iFood informa que não teve acesso aos documentos mencionados e, portanto, não pode opinar sobre o conteúdo destes. A empresa recebe regularmente abordagens e propostas de campanhas de diversas agências de comunicação, porém nunca teve relação comercial com a empresa SocialQi.
A atuação do iFood nas redes sociais se dá estritamente dentro da legalidade, não compactuando com o uso de perfis falsos, geração de informações falsas, automação de publicações por uso de robôs ou compra de seguidores.
O iFood realiza suas comunicações institucionais apenas por seus canais oficiais e contrata agências, como a Benjamim Digital, especializadas em pesquisa de opinião, campanhas de comunicação e monitoramento de redes sociais que acompanham temas em diferentes plataformas.”
A Agência Pública se mantém aberta a receber novos esclarecimentos dos citados na reportagem.
Reportagem originalmente publicada no link: https://apublica.org/2022/04/a-maquina-oculta-de-propaganda-do-ifood/
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