A Palestina também é aqui
Luiz Francisco Osorio - historiador e militante da célula do PCB de Curitiba
Um importante catalizador da comoção diante do genocídio Palestino é o fato de que, pela primeira vez na longa história dos crimes inumanos, as vítimas não podem ser silenciadas. Mesmo durante o maior massacre de jornalistas já registrado, somando mais de 160 profissionais mortos em pouco mais de dez meses, o povo palestino se recusa a morrer em silêncio, lutando com as ferramentas que lhes sobraram em meio aos escombros e aos corpos: as imagens e os relatos. Observamos, em tempo real, o crime contra a humanidade mais televisionado da história, no qual jornalistas – categoria supostamente protegida pelas leis internacionais – se tornaram alvos prioritários, e civis, por necessidade, se tornaram jornalistas. A abundância de imagens escabrosas, de registros inegáveis da dor e sofrimento de todo um povo, despertou em grandes parcelas da população mundial os mais profundos sentimentos de repulsa, quebrando o véu de indiferença com o qual tantos de nós contamos para proteger-nos das consequências inumanas dessa era de hegemonia do capital predatório.
Cada vez mais, porém, fica claro que esse levantar do véu está se dando de forma seletiva. Nem todos que se comovem pelo sofrimento de um povo colonizado, segregado e constantemente martirizado no outro lado do Atlântico parecem estar preparados para enfrentar a realidade desta mesma colonização na porta de suas casas. Mesmo entre os círculos mais progressistas, o olhar para fora se prova muito mais confortável do que o olhar para dentro – uma seletividade que podemos facilmente observar no descaso com o qual boa parte da classe política de esquerda trata, e vem tratando, o sofrimento e a luta dos povos indígenas dentro do nosso próprio país. Na verdade, a pauta indígena parece encaixar-se perfeitamente dentre aqueles temas que se destacam nas campanhas eleitorais a cada quatro ano, mas que são logo esquecidas a partir do momento em que já não trazem tantos benefícios políticos, uma realidade de desilusões com a qual as entidades indígenas já estão mais do que familiarizadas. Não à toa viralizou nas redes sociais nesta semana a fala da escritora e militante Yakuy Tupinambá, criticando a inação do governo Lula perante as pautas indígenas e expondo as raízes da indiferença na institucionalidade política e insistência do governo em priorizar seus conchavos com o latifúndio.
A violência nas periferias e no interior do Brasil, muitas vezes perpetrada pelo próprio Estado brasileiro ou sob a sua chancela, não pode ser entendida fora do prisma das relações de exploração colonial. É da união do interesse privado, do capital industrial e agrário, com a instrumentalização racista da violência estatal, que nasce o colonialismo, e é apenas na quebra entre estes dois atores que podemos encontrar o seu fim. A inação da guarda nacional durante os ataques de ruralistas e seus capangas às retomadas Guarani e Kaiowá, Kurupa Yty e Pikyxyin no mês passado ilustram bem essa instrumentalização das instituições que, em teoria, deveriam garantir os direitos indígenas. No Supremo Tribunal Federal e na Câmara dos Deputados, dois ruralistas – Arthur Lira e Gilmar Mendes – têm em mãos as vidas e os futuros de centenas de milhares de indígenas na forma da inconstitucional tese do “marco temporal”. Enquanto Lira, que luta na justiça pelo direito de apossar-se de parte da Terra Indígena Kariri-Xocó sobreposta a seis de suas fazendas, atua como “elo mais forte” dentre os mais de 300 deputados da “Bancada Ruralista”, o Ministro Gilmar Mendes presidiu sob a farsa jurídica de uma “Câmara de Conciliação” criada para negociar o inegociável. Estamos observando dois dos três pilares de sustentação da República enquanto oficializam um novo passo na direção de um projeto de extermínio que já dura quinhentos anos, e mesmo assim, este é um tema que sofre de uma negligência generalizada por parte da mídia e do debate político em geral.
Talvez a dificuldade de mobilizar a população brasileira em torno das pautas indígenas venha de uma aversão em apontar culpados. Admitir que o que ocorre na Palestina também acontece aqui significa ter que procurar os algozes no nosso próprio meio, admitir que diferentes lideranças políticas deram e dão continuidade a uma violência que nunca foi política de governo, mas sim de Estado. Principalmente, significa ter de combater um tumor alojado no coração da nossa identidade nacional, presente antes mesmo do que a própria ideia de “Brasil” – um câncer que se enraizou em cada instituição e burocracia dos diferentes governos brasileiros desde a colônia até os dias de hoje. Na Palestina, a invasão colonial se deu muito recentemente, o que torna óbvio para qualquer observador honesto quem é o agressor e quem é o agredido, quem é o colonizador e quem é o colonizado. Aqui, onde quinhentos anos de genocídio e assimilação forçada se misturam com as mais brutais opressões de raça, classe, sexo e gênero, criminosos processos de colonização nos são ensinados como um mito heroico de fundação nacional. Por isso, boa parte da população brasileira tem dificuldade em aceitar que a questão indígena não está resolvida, ou que sequer é uma questão. O processo de tomada e substituição que observamos em tempo real nestes últimos 76 anos de Nakba, o “desastre” Palestino, já está muito mais avançado em nosso continente – afinal, foi por aqui que as estratégias e métodos implementados por lá foram desenvolvidos e aperfeiçoados. O que ocorre como violência excepcional na Faixa de Gaza hoje não se contrapõe à paz, mas a uma violência “do dia-a-dia”, normalizada pela sua prevalência tanto na Palestina quanto no interior do Brasil. Assistimos então, tanto lá quanto aqui, a duas faces do mesmo processo de extermínio, e a sua manutenção diária.
Mesmo com os registros inegáveis do assassinato em série de lideranças indígenas e quilombolas nos últimos anos, não é difícil observar a má vontade generalizada em encarar a condição indígena hoje pelo que ela é: um longuíssimo processo de genocídio que continua em marcha. A crítica para com os meios hegemônicos de comunicação é, claro, a mais óbvia; uma ampla divulgação da luta e das pautas de interesse indígenas nunca foi de interesse para os poderosos anunciantes que mantêm os impérios midiáticos brasileiros. Afinal, são esses mesmos anunciantes os maiores beneficiários do silêncio. Se o Agro é Tudo, então tudo que se põe no seu caminho deve ser nada. Mas não se pode explicar o descaso com o sofrimento e com a luta indígena somente pelo boicote midiático; o sionismo, assim como a retórica neoliberal e os discursos extremistas da nova-velha direita neofascista, foram e são normalizados e legitimados pelo tempo de tela que ocupam nos principais canais de transmissão de notícias. Mesmo assim, no último ano, as articulações pela Palestina se espalharam como fogo por todo o mundo. Por que então a causa indígena não gera a mesma mobilização?
Com exceção de alguns movimentos sociais mais próximos das questões ambientais, agrárias, e de moradia, como o MST e o MTST, e alguns poucos partidos políticos que tendem a se aproximar e se afastar das pautas indígenas em ciclos intermitentes, as ideias, necessidades, vontades e a luta indígena ficam relegadas aos seus próprios meios de comunicação e divulgação dedicados, propositalmente isoladas pela mídia e convenientemente ignoradas pela maioria das pessoas que não nutrem interesse direto na sua resolução. Essa dificuldade dos apelos das organizações indígenas em “quebrar a bolha” não é, de forma alguma, culpa das próprias articulações indígenas; além do boicote midiático, o desinteresse popular pelas pautas indígenas está também enraizado nas instituições que formam o Estado brasileiro e nas mentes formadas por este sistema.
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