
POR Hamza Shehryar - Tradução Pedro Silva - Revista Jacobina
Tupac Shakur foi assassinado há 29 anos. Seu status como ícone cultural é indiscutível, mas a lenda construída em torno de sua vida tragicamente curta muitas vezes ofuscou a perspectiva política radical que moldou sua obra.
Tupac Shakur foi tudo para todos. Um mártir. Um bandido. Um poeta. Um gênio que eclipsou o próprio estrelato. Quase três décadas após sua morte prematura, ele perdura, com sua imagem estampada em murais, pôsteres e camisetas no mundo todo — assim como um certo médico argentino.
No entanto, embora o legado de Tupac persista, ele também é, como o de Che Guevara, frequentemente despojado da política radical que definiu sua vida. Seu semblante desafiador e sua tatuagem “Thug Life” foram imortalizados como uma marca, enquanto sua linhagem revolucionária e suas críticas ao capitalismo, ao racismo e ao império estadunidense foram soterradas por camadas de mito cultural.
Na morte, como na vida, Tupac resiste a classificações fáceis. Mas, por trás de suas contradições, havia uma clareza política que o tornava perigoso, não apenas para a indústria musical, mas também para a ordem dominante que ele denunciava. Ele era filho de Panteras Negras e prisioneiros políticos que rimavam sobre a luta de classes direto do ventre da besta. Ele condenava o Estado policial, o complexo industrial-prisional e o abandono das comunidades negras sob o capitalismo.
No aniversário de seu assassinato, é importante revisitar Tupac não apenas como artista, mas também como revolucionário. Para refletir sobre as influências políticas que o moldaram, a música que transmitiu sua mensagem, a vigilância e a violência que tentaram destruí-lo e o legado que ainda pulsa no hip-hop e nas tradições radicais hoje.
Com a revolução no sangue
Tupac Amaru Shakur nasceu em uma família revolucionária. Sua mãe, Afeni Shakur, era membra proeminente do Partido dos Panteras Negras e uma das ativistas dos “21 Panteras” acusados de conspirar para bombardear pontos turísticos de Nova York.
De fato, foi durante a gravidez de Tupac que Afeni se representou habilmente no julgamento dos 21 Panteras. Em 12 de maio de 1971, ela e seus companheiros foram absolvidos de todas as 156 acusações a eles imputadas. Um mês depois, Tupac nasceu, em 16 de junho, na cidade de Nova York.
Ao nascer, ele foi chamado de Lesane Parish Crook. No entanto, alguns dias depois, Afeni o renomeou em homenagem a Tupac Amaru II, o líder indígena peruano do século XVIII que liderou uma revolta contra os colonizadores espanhóis. “Eu queria que ele soubesse que fazia parte de uma cultura mundial e não apenas de um bairro”, disse Afeni. “Eu queria que ele tivesse o nome de um povo indígena revolucionário no mundo.”
“Muito antes de pegar um microfone, Tupac já estava imerso na linguagem da libertação, da solidariedade e da luta socialista.”
Muito antes de pegar num microfone, Tupac estava imerso na linguagem da libertação, da solidariedade e da luta socialista — não em termos abstratos e acadêmicos, mas como parte de um movimento vivo e pulsante. Sua vida se desenrolou dentro de uma tradição marxista negra militante, forjada sob a repressão policial, a vigilância do FBI e a sobrevivência da comunidade.
Essa herança também era profunda em sua extensa família. Sua madrinha, Assata Shakur, também era ex-Pantera Negra e membra do Exército de Libertação Negra, condenada pelo assassinato de um policial estadual de Nova Jersey em 1973, antes de escapar da prisão e receber asilo em Cuba. Em 2013, Assata se tornou a primeira mulher a ser incluída na lista de Terroristas Mais Procurados do FBI. Sua autobiografia é uma leitura essencial.
O padrasto de Tupac, Mutulu Shakur, um benzedeiro e acupunturista revolucionário, ajudou a planejar a fuga de Assata da prisão, antes de ser preso posteriormente. Mutulu passou mais de 36 anos na prisão e foi finalmente libertado em dezembro de 2022 em liberdade condicional devido à deterioração de seu estado de saúde. Ele morreu oito meses depois.
Nesse ambiente, condenado à repressão ao longo da vida, a educação política e a consciência de classe fluíram nas veias de Tupac. Inspirado por Malcolm X, ele ingressou na Liga dos Jovens Comunistas na adolescência, enquanto se deixava absorver pelas humilhações cotidianas da cidadania de segunda classe. Essa base definiu sua música. Em “Words of Wisdom” [Palavras de Sabedoria], de seu álbum de estreia de 1991, 2Pacalypse Now, ele canta:
Não há Malcolm X no meu livro de história, por quê?
Porque ele tentou educar e libertar todos os negros
Por que Martin Luther King aparece no meu livro toda semana?
Ele disse aos negros que, se fossem espancados, deveriam dar a outra face.
Tupac viu em primeira mão como o governo dos EUA criminalizou o radicalismo negro. Ele conhecia os nomes e os destinos daqueles que ousaram sonhar com a libertação. Sua música, mais tarde celebrada por sua profundidade emocional e por um realismo das quebradas, foi uma continuação dessa linhagem revolucionária para a era da Reaganomics, do encarceramento em massa e do abandono neoliberal.
Antes da fama e do espetáculo, Tupac era filho do movimento. Afeni e Mutulu lhe ensinaram que o sistema fora criado para matá-lo. Posteriormente, ele viu sua mãe sucumbir ao vício em crack, enquanto seu padrasto foi preso. Esse legado de socialismo radical negro e perdas seria a base de tudo o que se seguiu.
A música como luta de classes
Se Tupac herdou uma visão de mundo revolucionária de sua família, sua arma para expressá-la foi a música. Uma faixa como “Brenda’s Got a Baby” [Brenda Tem um Bebê], também de 2Pacalypse Now, é um comentário direto sobre como o capitalismo e o patriarcado abandonam as mulheres negras da classe trabalhadora. A história de uma menina de doze anos engravidada pelo primo, forçada a dar à luz e eventualmente morta é uma história sobre racismo estrutural.
“Se Tupac herdou uma visão de mundo revolucionária de sua família, sua arma para expressá-la foi através da música.”
Nesta balada, Tupac é explícito sobre a pobreza de Brenda, sua falta de acesso a recursos e a insensibilidade de uma sociedade que vira as costas para os mais vulneráveis. A acusação não é dirigida contra Brenda, mas contra a sociedade que a abandona e a deixa morrer: “Prostituta, encontrada morta, e Brenda é o nome dela. Ela tem um bebê.”
Da mesma forma, “Keep Ya Head Up” [Mantenha a Cabeça Erguida], de seu segundo álbum, Strictly 4 My NIGGAZ, insiste na dignidade das mulheres negras diante da misoginia e do abandono. Tornou-se um hino geracional.
Essas músicas revelam a agudeza da percepção de Tupac e a compaixão com que ele escrevia. Ele foi uma força pioneira, inspirando dezenas de rappers a compor músicas igualmente cruas e socialmente sintonizadas. “Acho que as merdas que eu digo, ninguém mais diz”, disse ele em uma entrevista de 1995 ao LA Times. “Quem escrevia sobre mulheres negras antes de ‘Keep Ya Head Up’? Agora todo mundo tem uma música sobre mulheres negras.”
Ele destilou sua visão de mundo de forma direta, com a clareza e a fúria que o caracterizavam. “Não tem como essas pessoas [celebridades] possuírem aviões quando há pessoas que não têm casa”, observou ele em sua famosa frase:
Você só precisa de uma casa. E se você só tem dois filhos, consegue se contentar com apenas dois cômodos? Por que ter 52 cômodos e saber que tem alguém sem espaço? Simplesmente não faz sentido para mim.
Em meados da década de 1990, mesmo com sua vida entrelaçada com o espetáculo da indústria musical e a violência da política de rua, a análise de Tupac se aprofundou. Em “White Man’z World” [Mundo do Homem Branco], de seu álbum de 1996, The Don Killuminati: The 7 Day Theory — gravado apenas um mês antes de sua morte —, Tupac se dirige a prisioneiros negros e a todos os homens e mulheres que lutam contra a desigualdade sistêmica.
“Tupac retornou repetidamente aos temas de desigualdade de classes, redistribuição de riqueza e falência moral do capitalismo.”
Ele retornou repetidamente aos temas da desigualdade de classes, da redistribuição de riqueza e da falência moral do capitalismo. Descreveu a polícia como um exército de ocupação em bairros negros, falou das prisões como plantations modernas e denunciou os horrores aos quais o imperialismo estadunidense submeteu o Sul Global. Apesar de sua popularidade, ele permaneceu irado, impaciente e implacável em sua crença de que outro mundo era possível.
Talvez a destilação mais clara de sua política de classe tenha surgido postumamente, com “Changes” [Mudanças], uma de suas músicas mais conhecidas, construída em torno de uma amostra assombrosa de “The Way It Is” [O Jeito que Isso É], de Bruce Hornsby. Tupac rima sobre a brutalidade policial, a guerra às drogas, o racismo sistêmico e a desigualdade de riqueza:
Em vez de guerra contra a pobreza
Eles fizeram uma guerra contra as drogas para que a polícia possa me incomodar
“Changes” é uma reivindicação por solidariedade entre raças e classes, e um chamado para direcionar a energia da sociedade da guerra e da repressão para a justiça e a igualdade. É o socialismo refletido através do hip-hop, e um hino apropriado para relembrar o espírito revolucionário de Tupac.
O que o tornou radical foi sua capacidade de chegar àqueles que nunca tinham lido Karl Marx ou Frantz Fanon. Suas canções não apenas registravam injustiças; elas também mobilizavam raiva, consciência e esperança para milhões de pessoas, do Harlem a Soweto, que tiveram a educação negada por uma ordem supremacista branca. Para muitos, Tupac foi o primeiro encontro com uma política de resistência.
Preso no espetáculo
À medida que Tupac ascendia à fama, ele herdava não apenas o legado revolucionário de sua família, mas também a estrutura repressiva que os perseguia. Para ele, isso se materializava em “forças-tarefa do hip-hop”, dossiês policiais e vigilância constante. Ao mesmo tempo, Tupac também estava sendo atraído para outra armadilha: o espetáculo midiático do rap da Costa Leste versus o rap da Costa Oeste.
“A maneira mais fácil de desarmar Tupac era criminalizá-lo, deslegitimá-lo politicamente, retratando-o como uma figura imprudente, violenta e autodestrutiva.”
O que era, em essência, uma pequena disputa industrial com Notorious BIG e a Bad Boy Records tornou-se uma distração letal, reenquadrando Tupac não como uma figura política, mas como uma caricatura de gangster. A mídia obcecou-se com seus problemas legais, seus conflitos com Notorious BIG e sua suposta decadência ao niilismo. O que desapareceu da cobertura foi sua mensagem radical sobre pobreza, racismo e o Estado prisional.
Assim como aconteceu com os Panteras antes dele, a maneira mais fácil de desarmar Tupac foi criminalizá-lo, deslegitimar suas políticas, retratando-o como uma figura imprudente, violenta e autodestrutiva. A indústria musical corporativa fez a sua parte, amplificando o sensacionalismo enquanto lucrava com sua imagem. Quando ele foi morto a tiros em Las Vegas, em 1996, a história de Tupac, o revolucionário, havia sido quase inteiramente eclipsada pelo espetáculo de Tupac, o fora da lei. Para muitos, isso continua sendo verdade até hoje.
No entanto, para aqueles que ouviram atentamente, o núcleo político nunca desapareceu. Suas músicas, entrevistas e afiliações apontavam para um jovem artista negro que entendia as regras do sistema e lutava, muitas vezes desesperadamente, contra ele. Essa luta continuou a definir os últimos anos de sua vida.
De muitas maneiras, as palavras, a imagem e o espírito de Tupac só se tornaram mais fortes após sua morte. Murais com sua imagem adornam paredes por todo o mundo. Suas letras continuam dialogando com milhões, frequentemente ressurgindo em momentos de protesto. Apesar da frequente deturpação de sua vida, para inúmeras pessoas no Sul Global, bem como nos Estados Unidos, Tupac é lembrado não apenas como um rapper, mas como uma voz revolucionária.
No hip-hop, sua influência também é imensurável. O rapper peruano-estadunidense Immortal Technique canaliza a urgência e a militância política de Tupac em suas duras acusações ao capitalismo e ao imperialismo. Kendrick Lamar o invoca explicitamente, inclusive em “Mortal Man”, a faixa final de To Pimp a Butterfly, que termina com um diálogo imaginário entre Kendrick e Tupac, criado a partir de uma entrevista de 1994.
Para esses artistas, assim como para inúmeros outros que cresceram ouvindo-o expressar raiva e amor em igual medida, Tupac tornou-se uma referência política. Quando o Dead Prez declarou: “It’s Bigger Than Hip-Hop” [É maior que o hip-hop], em 1999, eles ecoavam a convicção de Tupac de que a música era uma ferramenta poderosa para a educação política.
Um camarada na luta
A indústria tentou transformá-lo em mercadoria, convertendo-o em um pôster, um holograma, uma marca. Mas os inúmeros artistas que Tupac inspirou mantêm sua chama acesa, lembrando-nos de que ele não era apenas um ícone, mas um companheiro de batalha, alguém que se posicionou no nexo entre arte e luta, demonstrando como a cultura pode dar voz aos que não têm voz, ao mesmo tempo em que acusa os que estão no poder.
“Os inúmeros artistas inspirados por Tupac mantêm sua chama acesa, nos lembrando que ele não era apenas um ícone, mas um companheiro de batalha.”
Suas palavras continuam urgentes. “Eles têm dinheiro para a guerra, mas não conseguem alimentar os pobres”, ele cantou em “Keep Ya Head Up”, um verso que toca profundamente hoje, quando os Estados Unidos fornecem bilhões em ajuda militar a Israel para seu ataque genocida contra mulheres, crianças e jornalistas de Gaza, enquanto mais de trinta milhões de estadunidenses vivem na pobreza.
Não se engane, Tupac estava longe de ser perfeito. Sua vida também foi repleta de contradições. Seu alinhamento com Suge Knight e a Death Row Records o atraiu para o espetáculo tóxico da rivalidade entre a Costa Leste e a Costa Oeste, onde posturas e ciclos de violência frequentemente ofuscavam os compromissos revolucionários que um dia o definiram.
O mesmo homem que escreveu “Keep Ya Head Up” também era capaz de produzir letras que recaíam na misoginia. Ele também já foi condenado por abuso sexual e, embora afirmasse inocência, admitiu sentir vergonha das circunstâncias que levaram a essa condenação.
Se quisermos honrar seu legado, não devemos fazê-lo com meras banalidades, nem canonizando-o como um santo que não poderia ter feito nada de errado. Em vez disso, devemos abraçar o fervor revolucionário que definiu sua vida e música: a demanda incansável por libertação.
Hamza Shehryar
é escritor e jornalista. Ele cobre a indústria do entretenimento, cultura e política global, com foco em perspectivas interseccionais e do Sul Global.
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