A Violência de Gênero nas Esquerdas
Por Natália Silva – Secretária Política Nacional do CNMO
O terreno político formado pelas organizações de esquerda, inclusive a socialista, ainda é muito fértil para que homens possam violentar mulheres. Inicio esse texto me referindo ao nosso campo como algo plural, justamente como uma tentativa de descentralizar o debate da disputa entre as organizações. O toma lá dá cá sobre a presença de agressores de mulheres em organizações de esquerda não parece me fazer sentido, pois, infelizmente, nenhuma organização está apartada das opressões e dinâmicas do próprio capitalismo.
Também não escrevo esse texto para reafirmar visões idealizadas sobre organizações de esquerda que acreditam ser um ponto fora da curva a existência dessas violências nesses espaços. Isso é sim digno de total desprezo mas, para mim, o que está em questão não é o acontecimento em si, mas como as organizações têm construído as suas políticas de combate às opressões para prevenir, mitigar e lidar com esses casos. Além disso, nós também precisamos conversar sobre os homens cis que se utilizam da posição de militantes para poder nos silenciar. É fato que todos os violentadores contam com o nosso silêncio, mas é importante um debate sério sobre a utilização da postura militante, principalmente de dirigentes e/ou figuras públicas, como um escudo para esses homens cis.
Defendo os dois pontos citados no último parágrafo porque além de não ser possível que uma organização política se proteja completamente das dinâmicas de opressões existentes no capitalismo, também é difícil perceber durante os recrutamentos ou filiações, quem são os oportunistas que buscam as nossas organizações para violentar mulheres e não para construir esse novo mundo que a gente tanto sonha. Dito isso, eu acredito que a visão idealista, ao tratar o repúdio à violência de gênero como algo óbvio e previsível dentro das esquerdas, na realidade, reforça uma visão ruim sobre camaradagem e dinâmica das opressões, além de se esquivar do enfrentamento de um problema que deve ser debatido coletivamente para que possamos compreender as origens, estímulos e os porquês da permanência dele.
Feito esses apontamentos iniciais, quero deixar claro que o objetivo desse texto é contribuir com esse debate. Embora ele possua caráter organizativo e prático, ele não é uma solução pronta e fechada. Então, esse texto está aberto para críticas, principalmente as que estarão partindo do real compromisso de aprimorar esse debate a fim de criarmos um espaço de luta acolhedor para nós mulheres e demais minorias. Nesse sentido, deixo claro que acredito que esse debate possui caráter suprapartidário, quem sabe até pensando, a construção de plenárias feministas, vide a urgência de criarmos ferramentas que nos ajudem a pausar ou ao menos diminuir, as violências que sofremos dentro dos espaços de militância.
Infelizmente, da mesma maneira que eu conheci homens estupradores, agressores e abusivos na esquerda, eu também conheci muitas mulheres que recorreram ao antipunitivismo para se poupar do reconhecimento de um trauma. Isso é muito violento e doloroso. Essa é uma das razões para eu estar convencida de que um dos alicerces centrais para solucionarmos esse problema, passa pela construção de um debate teórico de qualidade e pela construção de uma autoestima militante para as mulheres. Sobre o primeiro alicerce, me parece ser suficiente reforçar as contribuições do marxismo sobre a importância da teoria: conhecer e formular sobre a nossa realidade, compreender as relações históricas implicadas sob um fenômeno, destrinchar sobre suas contradições e desvendar o que não enxergamos de imediato. Essa é a possibilidade de não cairmos em debates rasos e que deturpam o tema em questão, o que resulta em linhas argumentativas ruins e prejudiciais para o conjunto da militância.
Num geral, esse texto defende uma perspectiva que eu venho abordando há um tempo e que pode ser sintetizada na frase: mulheres ficam, machistas saem. Ao menos até termos as condições necessárias para tratarmos a questão de forma mais qualificada. E sim, eu sou antipunitivista. Tão antipunitivista que venho dedicando boa parte da minha vida à construção do socialismo para que possamos, enfim, iniciar a materialização de uma política antipunitivista verdadeira e eficaz. Até lá, o que teremos serão ações que irão flertar com o antipunitivismo e que lidarão com as limitações de uma sociedade pautada, justamente, pelo oposto do que acreditamos: a criminalização de corpos racializados e pobres, bem como, a legitimação de violências que reafirmam opressões basilares para a permanência do capitalismo. Nesse sentido, existe um perigo claro que uma política antipunitivista tocada sem a estrutura necessária pode cometer: reforçar essas opressões.
Para que esse debate teórico ocorra com qualidade, é importante recorrer ao básico: ler, ouvir e aprender com mulheres que produzem sobre o tema. Essa será a forma mais eficaz de minar o protagonismo dos homens brancos cis na construção dessas reflexões. Como sabemos, nenhuma teoria é neutra e precisamos considerar a possibilidade dessa construção teórica masculina, que irá reverberar em nossa prática, contar com um processo de defesa que grupos sociais dominantes realizam entre si. Eu acredito que o movimento negro acerta ao debater o pacto narcísico da branquitude e, por ignorância minha ou ausência de conteúdo, eu não conheço um debate dentro do campo feminista que vá pelo mesmo caminho. Caso exista, ele certamente será valoroso para nós.
Cabe dizer aqui, que a utilização desse falso antipunitivismo não se dá apenas pelos homens, como citado, nós mulheres também nos deparamos com situações onde recorremos ao antipunitivismo para lidar com aqueles que nos violentam. Seja pelo cuidado que exercemos insistentemente ou por consequência dessa formação política ruim que muitas vezes deriva de uma performance de radicalidade que não está preocupada com a práxis. A caricatura do militante radical, embora esteja centrada em um estilo de vida, vestimenta e consumo, também passa pela reafirmação de posicionamentos políticos esvaziados. Nesse sentido, se autoafirmar como antipunitivista parece ser um dos acessórios teóricos necessários para ser radical, mesmo que isso não seja acompanhado de um debate teórico que respeite todo o acúmulo de movimentos populares e antipunitivista sobre o tema, tão pouco, a construção de uma prática política pautada, por exemplo, na aproximação política com os setores da nossa classe que são diretamente afetados pelo punitivismo e criminalização de pessoas pobres, negras e indígenas. Inclusive, são essas construções práticas que me auxiliam a estabelecer as prioridades que cito aqui.
De toda forma, o que eu quero indicar nesse texto, é a instrumentalização do antipunitivismo como uma ferramenta de autodefesa que reafirma a possibilidade dos homens cis praticarem a violência de gênero, bem como, o sentimento de total impunidade sobre suas ações. Com uma frequência preocupante, militantes de esquerda utilizam o antipunitivismo como uma carta na manga para que nada seja feito com os violentadores de mulheres, como se todo um campo de debate e proposta de um novo mundo se tratasse de um jargão vazio. Também existem os que defendem um processo de responsabilização pautado pelo afastamento temporário ou pela inserção de agressores de mulheres em grupos de estudo sobre gênero. Essas são ações válidas e acredito que o processo de reeducação é importante, porém, muitas outras devem vir acompanhadas e, dada as limitações organizacionais ao qual a esquerda se encontra hoje, é necessário sim, elencar as nossas prioridades. A realidade tem nos mostrado que ainda não conseguimos fazer tudo o que é necessário para avançarmos com a luta socialista brasileira e isso nos limita a fazer escolhas. Por isso, as mulheres devem ficar e os machistas devem sair. Entre perder as militantes mulheres que foram violentadas ou expulsar homens que violentaram porque não temos as ferramentas para reeducá-los, eu fico com a segunda opção sem pensar duas vezes por diversas razões, entre elas, a possibilidade de elencar prioridades, sem retirar do nosso horizonte o que idealizamos.
Nesse momento, a prioridade deve ser a criação de uma política antipunitivista que consiga, antes de tudo, formar os espaços políticos necessários para acolher as vítimas dessas violências. A formação de uma frente de atendimento psicológico ou encaminhamento para profissionais adequados, canais de denúncia que garanta a não exposição das vítimas e rodas de diálogo sobre os casos, são ações possíveis de serem construídas para reafirmarmos os laços de companheirismo e camaradagem com mulheres que são violentadas por militantes. Também é importante a formação de um debate coletivo para cada caso onde será questionado quais foram as brechas existentes para que a violência em questão ocorresse a fim de evitarmos que haja incidência. Além disso, devemos pautar a inserção desse tema na nossa agenda de debates, seja nas formações, mesas ou pautas congressuais. É essa coletividade feminista que será o nosso contra ataque à individualização neoliberal que nos obriga a sofrer sozinhas e caladas sem a possibilidade de enxergarmos a necessidade de entendermos o porquê dessas violências ocorrerem com tanta incidência.
Daqui, nós seguimos tentando construir uma esquerda socialista que esteja comprometida a olhar para essas nuances, mesmo com todas as dificuldades que um debate de qualidade apresenta — parece ser uma realidade distante as pessoas considerarem que os militantes da esquerda radical também estão inseridos na realidade do capitalismo dependente latino americano, inclusive as dirigentes. É por isso que eu falo com firmeza sobre a construção da nossa autoestima militante. É esse debate que passa pelo íntimo, o que nos possibilitará a formação de uma clareza onde saberemos que ser vítima não é motivo para sentir vergonha. Que errados são os que nos agridem. E, acima de tudo, a formação da certeza de que são os próprios violentadores os responsáveis pelo fim de suas trajetórias militantes, não nós.
Aos militantes que não respeitam as mulheres: ainda é cedo, mas nós estamos construindo uma cultura política que irá afirmar por si só que vocês não são bem vindos aqui por uma razão simples: homem que não respeita mulher não é e jamais será companheiro ou camarada. E às mulheres que já foram violentadas: toda a dureza da trajetória de nos reconstruirmos após passarmos por essas situações apresenta um grau de sensibilidade que só quem já viveu sabe. Felizmente ou infelizmente, essa sensibilidade se fará presente na construção da política que me referi algumas vezes aqui, em nome das que permanecem e em nome das que são retiradas das organizações por essa dinâmica opressora.
Mesmo que tenhamos um caminho longo para que todo esse debate se insira organicamente na cultura política das esquerdas, reforço que não deve haver espaço para fatalismos em nossas construções. Se a esquerda brasileira contou com a contribuição de Maria Aragão, Laudelina Campos Melo, Marielle Franco e muitas outras que seguem a todo vapor na construção do nosso socialismo, cabe reafirmar: não foi a esquerda que articulou essas violências como alicerces da nossa sociedade, mas o próprio capitalismo que queremos e que vamos destruir.
Os partidos e movimentos sociais são tão nossos quanto dos homens e sabemos que não podemos compreender essas organizações como um fim em si mesmo. O caminho proposto aqui é o da disputa política que mira naquelas que se revoltaram contra o colonialismo como o ápice de nossas referências. Nas mulheres que viram na realidade que viviam a possibilidade de se rebelar para construir um mundo onde não fossem açoitadas, estupradas e escravizadas. É em nome da luta delas que a gente segue pautando a nossa verdadeira libertação política.
Essa insistência em se manter nessas organizações para construir uma esquerda mais decente, se dá pela convicção de que essas opressões só cairão por terra com um processo de ruptura social e que esse processo, só é possível de ocorrer com um alto grau de organização da classe trabalhadora. Sempre foi sobre isso e as práticas militantes que dificultam o nosso avanço terão que nos dar licença ou serão atropeladas, porque a revolução brasileira não sairá do papel enquanto o grupo que representa a maioria desse país não estiver perigosamente organizado.
E para fechar, tudo é construção. O que é pequeno pode ser grande e o que parece ser regra, pode ser destruído. Se acreditamos que a organização da nossa classe é a chave para nos libertarmos, não faz sentido recorrer a posturas individuais para lidar com opressões internas. A articulação política é o caminho, mesmo porque, se essas organizações são os instrumentos para rompermos com o modo de produção capitalista, é nelas onde vamos nos inserir para disputá-las e ganhar o protagonismo político que também deve ser nosso. No entanto, para nos fazermos presentes, o mínimo que queremos é o respeito, segurança e dignidade. E o teremos, nem que seja no grito.
Publicado originalmente em: https://coletivominervinocom.wordpress.com/2023/05/03/a-violencia-de-genero-nas-esquerdas/
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