Ainda estamos aqui, apesar de vocês

Ainda estamos aqui, apesar de vocês

Por: O Poder Popular ·
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Por Janaína Teles para o Blog da Boitempo - historiadora, professora de História do Brasil da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), componente da Comissão de Altos Estudos do Projeto Memórias Reveladas do Arquivo Nacional.

No Brasil, em consonância com a dinâmica ambígua que sustentou a legalidade de exceção da ditadura militar, fomentou-se um processo de anistia parcial peculiar em 1979, o qual partiu de pressões políticas e sociais que foram de encontro ao projeto de autoanistia planejado pelos generais.

A luta pela anistia aos perseguidos políticos esteve intimamente associada à denúncia da violência ditatorial e envolveu o engajamento decisivo de prisioneiros dos cárceres políticos, dos familiares de mortos e desaparecidos do regime militar e de sua rede de solidariedade. Esta luta remonta à reunião organizada na Cúria Metropolitana de São Paulo, em dezembro de 1974, por D. Paulo E. Arns, na qual ele apresentou a bandeira de anistia e, ao ano de 1975, quando surgiu o Movimento Feminino Pela Anistia, por ocasião do Ano Internacional da Mulher.

O movimento ganhou densidade a partir da campanha pela Anistia ampla, geral e irrestrita, em fevereiro de 1978, ao ser fundado o Comitê Brasileiro de Anistia (CBA), no Rio de Janeiro. A campanha tinha por objetivo conquistar a anistia para todos os perseguidos políticos da ditadura militar. Pretendia-se impor desgaste político ao regime de exceção por meio de uma extensa divulgação pública das denúncias de seus crimes. A denúncia foi um importante instrumento da luta de resistência à ditadura protagonizada pelos prisioneiros, muitas vezes, testemunhas oculares de assassinatos e torturas. Ao lado da/os familiares, advogados e militantes de direitos humanos, eles/as compreenderam que a preservação da memória destes crimes e a reconstrução do passado recente eram fundamentais para pôr fim ao autoritarismo.

A relevância desse trabalho de denúncia levou a repressão estatal a matar mães de militantes assassinados pela ditadura, justamente porque elas tiveram a coragem de denunciar publicamente tais crimes, como ocorreu com Esmeraldina Carvalho Cunha, (mãe de Nilda Carvalho Cunha, militante do MR-8 assassinada em novembro de 1971), cuja morte foi forjada para sugerir um suicídio em outubro de 1972, na capital baiana. O mesmo aconteceu à estilista Zuzu Angel (mãe do dirigente do MR-8, Stuart Angel Jones, desaparecido em maio de 1971), cuja morte também seria forjada para parecer um acidente de carro em abril de 1976, no Rio de Janeiro.

A plataforma política do movimento pela anistia se caracterizava pelos seguintes eixos temáticos: o esclarecimento das circunstâncias dos casos de tortura, mortes e desaparecimentos forçados; a restituição de seus remanescentes ósseos; a atribuição de responsabilidades e punição dos torturadores; o desmantelamento do aparato repressivo da ditadura militar e o fim das “leis de exceção”. O movimento recebeu apoio de setores mais amplos das oposições à ditadura, considerando-se que alguns comícios em favor da anistia contaram com 20 a 30 mil pessoas nas grandes capitais do país, como Rio de Janeiro e São Paulo.

Em março de 1979, uma caravana formada por militantes dos CBA foi ao Congresso Nacional levando uma Carta Aberta contendo denúncias de torturas e assassinatos de perseguidos políticos. O movimento entregou aos parlamentares do MDB um documento cobrando o esclarecimento desses casos e a atribuição de responsabilidades pelos crimes e, a formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar os abusos aos direitos humanos. A proposta retomava a defesa da instalação de uma CPI dos Direitos Humanos de 1975, encabeçada pelos Autênticos do MDB e os familiares que resultou na “Crise dos Desaparecidos”.

No mês de maio, o MDB aprovou a proposta de CPI na Convenção Nacional do partido, defendida por familiares em uma reunião com depoimentos emocionados. Sabia-se das dificuldades para conseguir aprová-la no Congresso Nacional, pois muitos consideravam a possibilidade de a proposta comprometer o processo de abertura política. Os que a defendiam, eram acusados de “revanchistas” ou ingênuos, mas consideravam que a instalação da CPI poderia dar maior visibilidade às denúncias sobre as violências da ditadura. Como esperado, o projeto foi impedido pela ARENA, que propôs outra CPI, completando o limite constitucional de funcionamento simultâneo de cinco Comissões.

Enquanto os presos políticos realizavam uma greve de fome, que duraria longos 32 dias, em favor da anistia ampla, geral e irrestrita, a fim de pressionar o Congresso Nacional a votar por um projeto de lei mais abrangente, o MDB e os CBA evoluíram para um acordo em apoio à Emenda nº 7 do projeto do governo. A emenda rejeitava a reciprocidade na concessão da anistia; propunha a anistia aos perseguidos políticos; a instauração de inquéritos para apurar as circunstâncias dos desaparecimentos (art.15), e a concessão de declaração de morte presumida para os desaparecidos (art.16), sem investigação prévia,1 contrariando a proposta dos familiares.

A 22 de agosto, o projeto de lei do governo foi aprovado em sessão conturbada e marcada por casuísmos. Pela manhã, o Congresso Nacional foi cercado por policiais militares e, durante horas, manifestantes tentaram entrar nas galerias do plenário, que, finalmente, foram liberadas. Sabia-se da grande probabilidade de vitória da ARENA, devido à maioria alcançada decorrente dos casuísmos eleitorais impostos pelo governo. Após uma série de reviravoltas, ocorreram as primeiras votações visando obter o destaque (preferência) para o substitutivo do partido e, como último recurso, o destaque para a emenda Djalma Marinho (ARENA/RN), surpreendendo pelo desvelo da perda parcial de controle do governo, conseguindo a adesão de dissidentes.2

Por fim, o projeto de anistia dos militares foi aprovado pelos líderes dos dois partidos, não sendo possível a votação nominal. Esta atitude da liderança provocou críticas, inclusive do senador Teotônio Vilela, mas apenas 29 dos 189 deputados do MDB apresentaram sua declaração de voto contrário ao projeto, denunciando a forma arbitrária da votação e a falta de isonomia na concessão da anistia.3 Este processo caracterizado pelo casuísmo demonstra a prevalência de um acordo “pelo alto”, do qual não participaram a sociedade civil e a grande maioria da sociedade brasileira, típico das transições políticas do século XX no Brasil.

Esta versão da Lei de Anistia foi sancionada no dia 28 de agosto de 1979 pelo general João Batista Figueiredo, tendo sido considerada “recíproca”, pois contemplaria vítimas e algozes à luz dos argumentos de que se tratava de um período de “guerra”, na qual os “dois lados” haveriam cometido “excessos”; equiparando a violência praticada pelos agentes do Estado às das ações dos guerrilheiros (a exemplo da “teoria dos dois demônios” que teve lugar na Argentina). Não obstante, entre 1979 e 1981, militantes, familiares e juristas como Nilo Batista e Seabra Fagundes, entre outros, questionaram esta interpretação.4 O texto imposto pela ditadura não anistiava os torturadores.

O texto da lei, embora pouco explícito, determinava a anistia “aos crimes políticos ou conexos a estes” (art.1º, §1º), ou seja, os crimes de qualquer natureza relacionados àqueles praticados por motivação política – os crimes previstos na Lei de Segurança Nacional (LSN). O crime conexo seria, por exemplo, o roubo de carro realizado por militantes políticos, que supostamente cometiam crimes contra a ditadura, para auxiliar no assalto a banco como apoio à luta armada. A interpretação de que os “crimes conexos”, porém, referiam-se aos crimes comuns cometidos pelos torturadores prevaleceu. Contudo, para caracterizar a ligação ou conexão entre crimes é necessário que os autores sejam os mesmos e que estes tenham os mesmos objetivos e motivações. Está claro que este não é o caso do que ocorreu entre os que torturaram e mataram presos políticos durante a ditadura e suas vítimas.

Ademais, a lei não contemplava aqueles que foram condenados pela prática de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal (art.1, § 2º). Diversos presos políticos foram libertados devido à redução das penas estipuladas pela LSN reformulada em 1978. Eles/as não foram absolvidos/as nem anistiados/as, saíram das prisões em liberdade condicional. Deixando evidente que a anistia não fora recíproca, e que esta não passava de uma versão dos militares.5 Os/as exilados/as retornaram, após a anistia, mas, na prática, apenas os torturadores permaneceram imunes aos julgamentos.

Desde a Constituinte de 1988, a abrangência da anistia vem sendo ampliada em um longo e frágil processo de reparação material e simbólica das vítimas da ditadura militar. Este processo, na prática, vem mantendo intacto o texto do artigo 1º. da Lei de Anistia de 1979. Em muitos aspectos, a anistia de 1979 teve o significado de um reencontro. A anistia constituiu-se em um momento marcado pela alegria da conquista de uma vitória, que, embora parcial, abria possibilidades, projetando para o futuro os investimentos pessoais e políticos dos sobreviventes, mas representou também a denegação da tortura e do que ocorreu aos mortos e desaparecidos da ditadura, dando início à consolidação das “memórias e versões da conciliação”, que têm suplantado tantas outras.

Memórias e versões da conciliação: a prevalência da impunidade

Desde o término da ditadura militar, algumas questões permaneceram martelando corações e mentes: como enfrentar a violência estatal de hoje sem tratar da tortura institucionalizada do passado recente? A impunidade dos crimes do passado não incentiva a tortura no presente? A ditadura militar realmente transcorreu sem grande violência? Ela ocorreu por meio de “excessos” cometidos pelos considerados “duros”, tal como muitos livros didáticos ainda explicam a história recente? Estas perguntas retornam, com força, ao centro da cena política de tempos em tempos, tal como acontece na atualidade.6

Esse fenômeno ocorre muito em função de que as claudicantes políticas de memória e reparação do período democrático não foram acompanhadas da garantia do direito à verdade e do acesso à justiça. A demanda por “Verdade e Justiça” ficou marginalizada, circunscrita às organizações de familiares e sobreviventes, a setores do movimento de direitos humanos e parcelas minoritárias da sociedade. A despeito dos esforços empenhados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e por alguns membros do Ministério Público Federal (MPF), pouco se avançou na recuperação factual ou no acesso à justiça. Vale lembrar que a lei estabeleceu a CNV, mas criou uma Comissão com poderes bastante restritos de investigação.

Os familiares e sobreviventes, porém, tornaram-se os/as herdeiros/as e agentes da memória do período ditatorial, provocando o debate e a participação política. Os/as familiares continuam aqui a influir e tentar mudar o sentido e o conteúdo da “história oficial”, tornando públicos e legítimos os relatos silenciados, criando rituais, comemorações e marcas simbólicas de reconhecimento e pertencimento. E, sobretudo, questionando a possibilidade de se construir a democracia sem justiça.

Se, inicialmente, os sobreviventes e remanescentes das esquerdas dos anos 1960-1970 entenderam que essa herança tinha relevância e representava um capital político importante, a análise das resoluções do PT, por exemplo, indica o distanciamento do partido em relação às pendências do passado ditatorial. Essa temática aparece com destaque nos documentos do PT até 1994 (TELES, 2011).

Nesse sentido, não deve ser surpresa o fato de que, até o momento, as Polícias Militares – uma criação da ditadura –, continuem em vigor, e que a Lei de Segurança Nacional da ditadura tenha sido revogada apenas em 2021. Ou que as principais determinações das condenações do Estado brasileiro na OEA, relativas à Guerrilha do Araguaia ou ao caso de Vladimir Herzog, não tenham sido cumpridas. Ou que os governos petistas não tenham rompido com os limites jurídicos e políticos impostos pela transição pactuada “pelo alto”, sem mudar as normas e os marcos interpretativos herdados do período ditatorial, conforme o artigo 142 da Constituição Cidadã, ou a decisão do STF, realizada em abril de 2010, confirmando a interpretação de que a anistia de 1979 teria sido “recíproca, dada a importância de não romper o suposto “acordo histórico”, que teria permitido a “transição pacífica e harmônica” no país.7

Sabe-se, conforme o testemunho do jurista Fábio K. Comparato, que no dia do julgamento da ADPF nº 153, em 2010, os magistrados jantaram com o presidente Lula e Nelson Jobim, então ministro da Defesa, os quais pressionaram os ministros da Corte Suprema a votarem contra a ação da OAB, cuja interpretação da Lei de Anistia, à luz da Constituição de 1988, considerava que os torturadores da ditadura não haviam sido anistiados.8 Restam a ser analisados, pelo STF, os recursos apresentados pelo PSOL e a OAB relativos à ADPF nº 153 e, a ADPF nº 320, apresentada pelo PSOL em 2014, que pede a anulação da Lei de Anistia para agentes que cometeram “graves violações contra os direitos humanos”, a ser relatada pelo ministro Dias Toffoli.9

Após os violentos ataques golpistas direcionados contra os três poderes no dia oito de janeiro de 2023 e os recém-descobertos planos para assassinar Lula, Alckmin e o ministro do STF, Alexandre de Moraes, espera-se que a Suprema Corte e a Presidência da República não utilizem argumentos políticos, em detrimento dos jurídicos, para passar pano para militares golpistas e torturadores. Espera-se ainda que casos polêmicos de assassinato de presidentes da República promovidos pela ditadura militar, tais como o de João Goulart (cuja suspeita é de envenenamento) e o de Juscelino Kubitscheck sejam investigados com todo o rigor.

No Brasil, o trabalho de luto relacionado a esse período da história não teve o caráter social ou coletivo como foi e ainda é vivenciado em outros países latino-americanos. O esquecimento, entretanto, não é possível, conforme demonstram os relatos dos familiares de mortos e desaparecidos. Este fato é revelado no belo filme Ainda estou aqui, que tanto interesse tem despertado na sociedade brasileira na atualidade. Com efeito, ainda estamos aqui, em busca de “Verdade e Justiça”, apesar da prevalência da impunidade.

Notas

  1. Cf. Emenda 7, de 09/08/79, p.71-4. In: COMISSÃO Mista sobre a Anistia (1982), Vol. I. ↩︎
  2. O destaque do MDB foi derrotado por 209 a 194 votos e, a emenda de Djalma Marinha perdeu por 206 a 201 votos, cf. TELES (2005). ↩︎
  3. Cf. COMISSÃO Mista sobre a Anistia (1982), Vol. II, p.237-8; e GRECO (2003), p.254-5. ↩︎
  4. Cf. TELES (2005); BATISTA (1980), entre outros. ↩︎
  5. COMPARATO, Fábio K. O que fizeste de teu irmão? E A responsabilidade do Estado brasileiro na questão dos desaparecidos durante o regime militar. In: TELES (2001). ↩︎
  6. Além dos 454 casos de mortos e desaparecidos conhecidos, a CNV revela 8.350 indígenas assassinados (envolvendo 10 nações de povos originários no sudeste do Pará) e 1.192 camponeses assassinados em conflitos de terra após 1975, cf. CNV (2014), Vol. II, estimando em 10 mil vítimas fatais da ditadura. ↩︎
  7. Cf. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, apresentada ao STF pelo Conselho Federal da OAB em 2008. ↩︎
  8. Note-se que Ricardo Lewandowski e Ayres Britto votaram a favor da tese de responsabilização penal contida na ADPF nº 153 da OAB. ↩︎
  9. Dias Toffoli era advogado-geral da União e se manifestou contrário à tese da ADPF nº 153, em 2009. Devido ao seu envolvimento no caso, deveria se declarar impedido de relatar a ADPF nº 320, cf. PÁDUA FERNANDES (2023), p.177. ↩︎

Referências

BATISTA, Nilo. “Aspectos Jurídico-Penais da Anistia”. Revista Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 19, jan./1980.

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Vol. II, Relatório. Brasília, CNV, 2014.

COMISSÃO Mista sobre a Anistia. Anistia. Vol. I., Brasília (DF),1982.

_____ . Anistia. Vol. I., Brasília (DF),1982.

GRECO, Heloísa Amélia Greco. Dimensões fundamentais da luta pela anistia. Tese de Doutorado em História, Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, 2003.

FERNANDES, Pádua. Ilícito Absoluto. A família Almeida Teles, o Coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura. São Paulo, Patuá, 2023.

TELES, Janaína (org.). Mortos e desaparecidos políticos: Reparação ou impunidade? 2ª ed.São Paulo, Humanitas/FFLCH-USP, 2001.

_____ . Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos por “verdade e justiça” no Brasil. Dissertação (Mestrado em História), Universidade de São Paulo, São Paulo. 2005. ______. Memórias dos cárceres da ditadura: os testemunhos e as lutas dos presos políticos no Brasil. Tese (Doutorado em História), Universidade de São Paulo, São Paulo. 2011.

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