Apontamentos sobre um Cinema Revolucionário

Apontamentos sobre um Cinema Revolucionário

Por: O Poder Popular ·

A práxis de Santiago Álvarez em “Hasta la Victoria Siempre”

Por Allan Brasil de Freitas - Militante do Coletivo Cultural Vianinha e do PCB-SP

Resumo

O presente artigo tem por objetivo refletir sobre a práxis cinematográfica em um contexto de revolução social, tendo como objeto o filme “Hasta la Victoria Siempre” (1967), do cineasta cubano Santiago Álvarez, e o modo como a produção deste cinema se insere na edificação de uma nova subjetividade revolucionária, e seu papel na mobilização e organização popular. Partindo dessa analise, esperamos ter apontamentos gerais sobre que caráter deve possuir um cinema revolucionário.

Palavras-chave: Cinema cubano. Santiago Alvarez. Marxismo. Cinema revolucionário. Che Guevara.

Introdução

Em 9 Outubro de 1967, após onze meses de esforço revolucionário guerrilheiro, Che Guevara é assassinado na Bolívia em uma operação com grande participação do governo norte-americano. Após a confirmação do ocorrido, a pedido pessoal de Fidel Castro, Santiago Álvarez produzirá, em 48 horas, o curta metragem “Hasta la Victoria Siempre”, um filme essencialmente de montagem, onde recursos diversos, desde fotos, trechos de outros filmes, gravações diversas de Che em diferentes momentos, são articulados e reapresentados de modo a criar novas significações, elevando Che à figura mítica, encarnação folclórica do próprio ideal revolucionário. Este filme, assim como toda a obra de Álvarez, se insere num contexto revolucionário cubano e mundial amplo, no embate ideológico e na tentativa de edificação de uma nova sociedade.

“O cinema de Santiago Álvarez nasceu a partir do triunfo da Revolução Cubana, com a clara missão de mobilizar, agitar e despertar consciências. Um cinema assumidamente panfletário, de caráter pedagógico e contrainformativo, compromissado em criar as condições subjetivas necessárias para a instauração e manutenção do novo regime. Seus filmes documentaram a crônica da Revolução Cubana, atacaram o inimigo – o imperialismo estadunidense – e saudaram os aliados – o antigo bloco socialista; a África, a Ásia; e os vizinhos latino-americanos. Produziram imagens documentais ímpares da História da segunda metade do século XX, sob uma perspectiva marxista.” (MENEZES, 2019, p. 97)

Compreender as características gerais do que pode ser um cinema revolucionário, enquanto arma política de mobilização e organização popular e, ao mesmo tempo, uma experiência estética que suscita novos símbolos e relações subjetivas no espectador através da relação dialética entre obra e público, e a destruição da separação entre os dois, é, em certa maneira, o objetivo deste estudo. Importante ressaltar, entretanto, que não se trata aqui, no que tange a discussão da práxis cinematográfica, de traçarmos um caminho para o que seria um suposto “cinema revolucionário”, nem tampouco de tacharmos este ou aquele filme como “revolucionário”. Trata-se, antes de tudo, de observar características convergentes, à luz da análise materialista dialética, dos elementos presentes que poderiam alavancar um salto qualitativo rumo a um cinema que aqui chamaremos de “cinema de novo tipo”. E de fato, já existem germes deste cinema de novo tipo na atualidade, como os inúmeros coletivos audiovisuais existentes nas periferias, com destaque para aqueles de cunho jornalístico (sobre esta questão do jornalismo discorreremos brevemente mais à frente), bem como iniciativas entre os povos originários, a exemplo do Vídeo nas Aldeias[1].

Mas, então, por que se debruçar sobre um filme como “Hasta la vitoria siempre”, um filme produzido em 1967 e, ainda por cima, em outro país, ao invés de aplicar essa análise a um filme produzido por essas coletividades atuais? Para responder a esta pergunta devemos antes nos voltar para outra questão: em termos estratégicos, qual deve ser a função do cinema de novo tipo? E quais devem ser os caminhos táticos para alcançar esse objetivo estratégico? Citando Lenin, Marta Harnecker define estratégia e tática política desta maneira:

“[...] Entende-se por estratégia e tática de um partido ‘sua conduta política, isto é, o caráter, a orientação e os procedimentos de sua atuação política em relação a uma situação política’ concreta. A estratégia revolucionária determina o caminho geral pelo qual deve ser canalizada a luta de classes do proletariado para conseguir seu objetivo final: a derrota da burguesia e a implantação do comunismo, ou seja, é a forma com que se planejam, se organizam e se orientam os diferentes combates sociais para alcançar esse objetivo.” (HARNECKER, 2017, p. 65)

É de nosso entendimento que o objetivo estratégico do cinema de novo tipo é a revolução socialista. Não apenas por meio da agitação e propaganda política (ainda sob a ordem capitalista), mas também, e principalmente, pela organização dos trabalhadores (não limitado ao plano sindical) e pela transformação, em sentido socialista, dos aparelhos cinematográficos (BENJAMIN, 1987, p. 120). A revolução não termina com a tomada do poder. Muito pelo contrário, a tomada do poder é tão somente a pedra que inaugura a construção do socialismo, sendo a revolução o processo vivo, e por vezes contraditório, de edificação dessa nova ordem. Se, por um lado, uma cultura socialista só pode se dar no socialismo (LUKÁCS, 2021, p. 141), a cultura capitalista subsistirá por muitas gerações após o triunfo da revolução, como aponta Marx:

“Trata-se aqui de uma sociedade comunista, não tal como se desenvolveu em suas próprias bases, mas, ao contrário, tal como acaba de surgir da sociedade capitalista. Portanto, ela apresenta, em todos os aspectos­ - econômico, moral e intelectual -, os estigmas da antiga sociedade”. (MARX, 2019, p. 104)

Desse modo, as experiências passadas deste tipo de esforço, de superação de uma antiga sociedade rumo a outra, devem ser vistas, no nosso entendimento, como um norte guia, daí a escolha de “Hasta la Victoria Siempre” como nosso objeto. A produção cinematográfica de Santiago Álvarez, desde seu inicio, esteve profundamente engajada na construção do socialismo, se dedicando tanto a organizar as massas através do uso do jornalismo, estando ele a frente do “Noticiero ICAIC Latinoamericano”, consagrado cinejornal que, em muitos aspectos, ditou o que viria a se tornar o cinema documental cubano, desde sua concepção em 1960 até sua eventual extinção em 1990[2], quanto a edificação de um novo modo de vida em meio ao furor revolucionário cubano, e latino-americano, do período. Nesse sentido, o projeto cinematográfico de Álvarez, bem como da maioria dos cineastas cubanos da época, está empenhado na superação das concepções burguesas de subjetividade, e “Hasta la...”, no nosso entender, reúne elementos para a compreensão de uma práxis cinematográfica, tanto no campo estético quanto no político, que avança de maneira determinante rumo ao cinema de novo tipo.

Uma ultima observação deve ser feita: este breve texto não abordará problemáticas mais amplas sobre cultura e ideologia, se mantendo dentro do horizonte da produção cinematográfica, com foco na linguagem, mesmo que em momentos precisemos dar atenção a tais problemáticas. Uma abordagem marxista dos fenômenos culturais dentro da esfera do cinema, socialmente entendida, requereria um espaço maior para um desenvolvimento satisfatório, o qual não possuímos, e nem é nossa intenção desenvolver tal análise dentro deste espaço. Desse modo, possíveis limitações no uso de alguns conceitos serão inevitáveis.

A questão da nova consciência

Ainda que não nos aprofundemos sobre as questões de cultura e ideologia, alguns pontos devem ser tratados a esse respeito para melhor compreendermos os processos sociais de onde decorre a produção ideológica, tendo em vista os objetivos políticos gerais da cinematografia cubana no período seguinte à revolução. Observada em sua totalidade, a obra de Santiago Álvarez, obra de uma militância de adesão plena aos objetivos revolucionários do regime socialista, se caracteriza pela tentativa de criação de um novo imaginário social e de novas relações simbólicas, mobilizando novos signos nessa construção, o que Prioste chamará de uma “épica revolucionária”[1]:

“Mas esse arrebatamento pela causa revolucionária talvez tenha contribuído para que Santiago, na sua práxis cinematográfica, investisse com vigor na construção deste novo universo mitológico, habitado por heróis e mártires. [...] um panteão revolucionário formado ao longo dos anos, que não só delineou figuras emblemáticas para manter a perseverança no cotidiano cubano, como ultrapassou fronteiras e realimentou o ideal revolucionário em escala latino-americana, e até, em certo sentido, global, como é o caso de Che Guevara e a repercussão do filme Hasta la Victoria Siempre (1967), rodado logo após sua morte.”(PRIOSTE, 2014, p. 11)

Essa conjugação de significados, ou “épica”, como coloca Prioste, se insere no campo do embate ideológico de edificação de uma nova consciência, ou seja, no campo dos signos. O signo é parte da realidade material de um objeto (seja um instrumento de utilidade comum, seja um tipo de relação que se engendra entre os atores sociais), porém, ao mesmo tempo, se separa desse objeto, refletindo e refratando uma nova realidade. É nesse movimento, representando e substituindo algo encontrado fora do objeto, que o signo se configura. O campo dos signos coincide com o da ideologia, uma vez que não existe conteúdo ideológico sem significação sígnica.

“Qualquer signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também uma parte material dessa mesma realidade. Qualquer fenômeno ideológico sígnico é dado em algum material: no som, na massa física, na cor, no movimento do corpo e assim por diante. Nesse sentido, a realidade do signo é bastante objetiva e submete-se unicamente ao método monista de estudo objetivo. O signo é um fenômeno do mundo externo. Tanto ele mesmo quanto todos os efeitos por ele produzidos, ou seja, aquelas reações, aqueles movimentos e aqueles novos signos que ele gera no meio social circundante, ocorrem na experiência externa.” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 94)

Nesse sentido, o conteúdo ideológico de um determinado signo também é condicionado por onde ele se encontra no campo da criação ideológica (aí inclusos a imagem artística, o símbolo religioso, a ordem jurídica etc.), pois cada campo possui seu modo de se orientar na realidade e de refratá-la. A compreensão de um signo só se dá na relação deste com outro signo, já conhecido, criando, dessa maneira, uma cadeia ininterrupta de criação ideológica, passando de um complexo de signos a outro. Desse modo, o material sígnico só pode se dar entre indivíduos organizados socialmente:

“Um signo só pode surgir em um território interindividual, que não remeta à “natureza” no sentido literal dessa palavra. O signo tampouco surge entre dois Homo sapiens. É necessário que esses dois indivíduos sejam socialmente organizados, ou seja, componham uma coletividade – apenas nesse caso um meio sígnico pode formar-se entre eles.” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 96, destaque do autor)

Será a cadeia ideológica criada pelos signos nos diferentes campos da criação ideológica que configurará a consciência: “A consciência individual é um fato social e ideológico” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 96). Ela só passa a existir enquanto tal à medida que é preenchida pelo conteúdo ideológico, pelos signos, ou seja, na interação social, se formando e se realizando no material sígnico criado no processo de comunicação de uma coletividade organizada (VOLÓCHINOV, 2018, p. 97).

O caráter de toda cultura é determinado pela divisão social do trabalho que constitui sua base (LUKÁCS, 2021). Sendo assim, a superação de uma antiga consciência por uma nova, sobre outra base, agora socialista, só se dá na medida em que se aprofunda e avança o processo revolucionário, mobilizando novos signos e dando conteúdo novo a outros. Tendo isso em mente, o cinema se encontra em posição privilegiada neste processo, dado seu caráter de massas. Mas então nos perguntamos: de onde viriam esses signos? Ora, se a consciência a ser superada é a consciência burguesa, cingida e atomizada pela divisão social do trabalho no capitalismo, os signos para sua elevação só podem ser encontrados no ponto oposto, ou seja, nas formas organizativas do movimento operário:

“Mas o papel exemplar do movimento operário se estende ainda mais. Basta olhar de relance para como o método de luta da classe operária se relaciona com a cultura para perceber isto. O movimento operário significa a quebra da ilusão do indivíduo atomístico; ele traz à tona a solidariedade, a união, a universalidade, teórica e praticamente. Ele torna conscientes as relações sociais das pessoas associadas, relações que influenciam conscientemente a vida prática do indivíduo e toda sua visão de mundo. Desta forma, o movimento operário revela uma saída para as contradições da cultura capitalista.” (LUKÁCS, 2021, p.149)

Com esse panorama, possuímos os elementos básicos para um inicio de compreensão da práxis cinematográfica cubana do período, particularmente entre os anos de 1959 e 1979. Para citar Tomás G. Alea, sintetizando a função que deve ter o cinema em um contexto geral revolucionário:

“Nós entendemos qual deve ser a função social do cinema atualmente em Cuba: deve contribuir da maneira mais efetiva possível para elevar a consciência revolucionária do espectador e armá-lo para o combate ideológico que ele deve travar contra todas as formas de tendências reacionárias e também deve contribuir para o gozo de sua vida.” (ALEA, 1982, p. 2 , tradução nossa)

Passemos agora ao filme.

Hasta la Victoria Siempre

O filme se inicia. Surge na tela o título, em uma inscrição feita a punho: “Hasta la Victoria Siempre”, assinada pelo próprio Che. A canção “Exotic Suite of the Americas” dá o tom que se seguirá neste primeiro movimento, explicitamente sentimental. Segue-se então uma sequância de fotografias panorâmicas, retratando silhuetas de cidades encravadas entre montanhas, mas logo as fotos nos levam para as ruas e casas destas cidades. As mazelas do território são mostradas e investigadas pela câmera, através do uso de zoom in e zoom out. Trata-se da Bolívia, destino derradeiro de Che. Segue-se a estas, uma sequência de imagens de estradas, com a cordilheira dos Andes ao fundo. Como que indicando o caminho a seguir, o filme faz o trajeto da cidade ao campo, às minas, aos camponeses e aos povos originários. Planos fechados de crianças e trabalhadoras carregando pesadas sacolas. Fortes tambores são ouvidos através da música. Sobe a tensão. Corta-se então para um interlúdio:

vámonos,
derrotando afrentas con la frente
plena de martianas estrellas insurrectas
juremos lograr el triunfo o encontrar la muerte.

O filme aponta, através da construção imagética, onde se encontra, no entendimento dos revolucionários que ali combateram, Che incluso, a contradição principal: onde é mais aguda a situação de miséria e exploração. Partindo da cidade rumo ao campo, o filme nos demonstra a estratégia guerrilheira empreendida, levando o espectador, através do uso da música, que vai da melancolia sentimental no inicio até a escalada de tensão do interlúdio, a perceber que aquela situação de miséria não pode permanecer e que a ruptura é iminente. Se, por um lado, a exposição do filme nesta sequencia não é explicitamente didática, por outro ela abre caminho, por meio das articulações entre plano e música realizadas pela montagem, para que o espectador complete o sentido apresentado por meio de suas próprias conjugações. Nesse sentido, o filme adquire, na sua relação com o espectador, um caráter novo em termos intelectuais. Saindo do campo das associações puramente fisiológicas (do ótico ao emocional), o conflito-tensão dos planos e música passa para o campo das associações lógicas.

“Passo a passo, por um processo de comparar cada nova imagem com a denotação comum, o poder é acumulado através de um processo que pode ser formalmente identificado com o da dedução lógica. A decisão de liberar estas ideias, assim como o método usado, já é concebido intelectualmente. A convencional forma descritiva do cinema leva à possibilidade formal de uma espécie de raciocínio cinematográfico. Enquanto dirige as emoções, o filme convencional propicia uma oportunidade de estimular e dirigir todo o processo de pensamento.” (EISENSTEIN, 2002, p. 69, destaques do autor)

Após o interlúdio, vemos Che pela primeira vez no filme, em um plano contra-plongée, falando ao povo cubano através do rádio, diretamente de Sierra Maestra. Estamos agora no início da revolução. Segue-se uma sequência de imagens de arquivo. Em destaque, vemos uma mão traçando planos sobre um mapa, Che cavalga ao lado de Camilo Cienfuegos[1], instrui guerrilheiros no uso de armamento, delibera com outros combatentes. Por fim, fotos de seu rosto se intercalam, se fundem, através de dissolve, tudo ao som da música “Himno Del Guerrillero”. Fade para o preto. Essa curta sequência tem um caráter de rememoração do triunfo revolucionário, traçando um paralelo com o que será desenvolvido em território boliviano no futuro próximo. O sentido da ênfase que o filme dá ao mapa logo após a fala de Che é claro: uma reafirmação da tática guerrilheira como legitima para a emancipação latino-americana, com a figura central do Che, como seu arauto. Inicia-se aqui a elevação de sua figura à de herói folclórico, que se concluirá ao fim da narrativa, transformando-o em mártir da causa revolucionária. Sobre o herói mártir, podemos apontar seis traços recorrentes:

“[...] Primeiramente, pela identificação do mártir em potencial, que nasce em alguém que conquiste algum renome, dedicando-se a uma causa havida por admirável, a partir da perspectiva de um grupo social específico. Em segundo lugar, pelas forças de oposição, é preciso que existam contrários a esta causa que detenham poder superior ao do potencial mártir. Quanto maior for esta desproporção, mais contundente será sua força simbólica. Em terceiro, o “risco previsível”, quando o personagem candidato a mártir tem a capacidade de, em algum momento de sua vida, prever que aquele compromisso assumido pode prejudicá-lo severamente, cobrando-lhe a vida inclusive. Este reconhecimento comumente deve ser registrado de alguma forma, seja por escritos ou declarações testemunhadas. Deve ser adicionada a determinação cega, condição em que, mesmo sabendo dos riscos, o herói segue em sua empreitada aparentemente consciente de uma futura repercussão positiva para seus atos, para finalmente entregar sua vida à causa, quando os adversários exigirem sua vida como punição, e, então, sua morte é exibida como triunfo. Por fim, a ‘resposta popular’, quando a morte do herói passa a ser comemorada e ele passa a ser rotulado explicitamente como um mártir, tornando-se inspiração para muitos outros à luta pela mesma causa." (WALLACE; RUSK apud PRIOSTE, 2011).”

Nesse sentido, ao se iniciar em território boliviano para a seguir dar um salto temporal e geográfico, passando a se situar na Cuba em pleno esforço guerrilheiro, o filme faz um movimento duplo, anunciando previamente o destino inexorável de seu herói mártir, o Che, ao mesmo tempo que o situa como combatente triunfante, carregado de convicção da vitória do povo cubano, transparecido em sua fala ao rádio. Mais à frente, seu inimigo, a força que irá se opor a ele, será colocado: o imperialismo.    

Volta-se do preto bruscamente. Ao som de forte percussão, vemos o mapa da Bolívia. Segue-se um rápido zoom in, destacando uma área: “Refineria Camiri”. Fotos da região se intercalam. Temos então filmagens da população local. A percussão se intensifica. Mais fotos, dessa vez de militares, fortemente armados. Uma capa de revista com a seguinte manchete: “GUERRILLEROS EN BOLIVIA”. Foi iniciado o combate revolucionário e, ao mesmo tempo, foram mobilizadas as forças contrarrevolucionárias. Mostra-se uma sequência de operações militares das forças armadas. Corta-se então para uma fachada onde se pode ler, pintado à mão, “Muera – la – bota Asesina”. A percussão é interrompida e se inicia um discurso do Che, sobre uma sequência de fotos de mineiros. Ao proferir as palavras “El despertar de los pueblos de América que vieran que se podia hacer la revolución”, surge logo em seguida um mineiro segurando em uma das mão um fuzil, e na outra, uma britadeira. O discurso do Che, prossegue, e nos vão sendo mostradas imagens que acentuam o que está sendo dito: um gráfico com a porcentagem de analfabetismo na América Latina, imagens de repressão em diversos países, identificados por letreiros. Ao surgir a imagem de um cartaz de filme, “El Gran Gorilla”, há um dissolve, revelando o rosto do General Barrientos[2]. Mais imagens de repressão se seguem, até que surge a imagem do Che, em um palanque, onde podemos ouvir o restante do discurso, carregado de ataques contundentes ao imperialismo.

A primeira parte desta sequencia se aproxima do método de montagem utilizada na sequência de abertura do filme, onde o arranjo sequencial das imagens e som leva o espectador a completar o sentido do trecho através da associação lógica dos planos apresentados. A segunda, a partir do momento em que passamos a ouvir a voz do Che, possui um caráter um tanto diferente. Aqui se destaca um tom expositivo maior, onde as imagens têm uma função utilitária mais objetiva: ilustrar o discurso do Che. Nesse sentido, o filme se aproxima de um cinejornal, aos moldes do “Noticiero ICAIC”. O uso do modelo jornalístico na obra contém um potencial de ruptura. Não basta que o filme possua um conteúdo que se dirige em um rumo revolucionário, é necessário também questionar como ele se insere dentro da produção cinematográfica, pois abastecer um aparelho sem o modificar não é suficiente pra conduzi-lo a um sentido socialista, mesmo que os materiais que abastecem esse aparelho pareçam ser de natureza revolucionária (BENJAMIN, 1987). Nesse sentido, a figura do especialista, enquanto sujeito que se recusa por principio a modificar o aparelho que abastece, deve ser questionado. E, de acordo com Benjamin, para que este questionamento seja consequente, devemos nos voltar à imprensa. Devido ao que ele identificará como a relação dialética entre leitor/colaborador, Benjamin observará no jornalismo, e em particular na imprensa soviética, os elementos para a derrubada da divisão entre autor e público:

“Em nossa literatura, os antagonismos que se frutificavam mutuamente em épocas mais felizes tornaram-se antinomias insolúveis. Dessa maneira, ciência e belas-letras, crítica e produção, educação e política se apartam sem quaisquer conexões e de maneira desordenada. O cenário dessa confusão literária é o jornal. Seu conteúdo é “matéria”, que malogra em qualquer outra forma de organização, a não ser naquela imposta pela impaciência do leitor. E essa impaciência não é apenas a do político que aguarda uma informação nem a do especulador que aguarda uma dica, mas por trás dela avoluma-se aquela do homem excluído que crê ter o direito de fazer uso da palavra a partir de seus interesses pessoais. Há muito as redações já tiram proveito do fato de que nada liga tanto o leitor ao jornal quanto essa impaciência que diariamente demanda por novo alimento, à medida que elas abrem constantemente novas colunas para perguntas, opiniões, protestos. A assimilação desordenada de fatos segue de mãos dadas com a igualmente desordenada assimilação de leitores, que em pouquíssimo tempo se veem alçados à condição de colaboradores. Um momento dialético esconde-se aí: a derrocada da literatura na imprensa burguesa se apresenta como a fórmula de sua restauração na imprensa russo-soviética. À proporção que a literatura ganha em abrangência o que perde em profundidade, a diferenciação entre autor e público – que a imprensa burguesa mantém viva de maneira convencional – começa a sumir na imprensa soviética. O leitor, entretanto, está sempre disposto a se tornar alguém que escreve (ein Schreibender) – seja alguém que descreve (ein Beschreibender), seja alguém que prescreve (ein Vorschreibender). Na qualidade de especialista – mesmo se não de uma matéria, mas apenas do posto a que almeja –, ele ganha acesso à condição de autor. O trabalho em si é colocado em palavras. E sua apresentação em palavras é parte da habilidade necessária para seu exercício. A competência literária não se justifica mais pela formação especializada, mas pela politécnica; dessa maneira, torna-se um bem comum. Resumindo, trata-se da literalização das relações de vida que se assenhora das antinomias até então insolúveis, e sua salvação se prepara no cenário do rebaixamento mais inescrupuloso da palavra: o jornal.” (BENJAMIN, 1987, p. 124)

O uso massivo de material de arquivo, capturado pelas mais diversas pessoas, nas mais diversas condições, e reorganizadas de modo a criar uma narrativa onde a participação do espectador, tanto como possível colaborador na captação do material usado, como sujeito que completa o sentido do filme, dá um caráter coletivo ao cinema de Santiago Álvarez, tanto materialmente quanto subjetivamente. Nesse sentido, é traduzido para o cinema o processo descrito por Benjamin. Não é sem motivo a propensão daqueles que querem ser ouvidos ao uso do documento audiovisual, particularmente nos tempo atuais.

Voltamos a ouvir “Exotic Suite of the Americas”. Fotografias diversas da população boliviana são analisadas através do zoom e do pan. Corte para um cemitério e, em seguida, vemos escrito em uma parede “Yankis Asesinos”. A música muda, torna-se tensa. Sobreposto ao cemitério, surge o rosto de Barrientos. Deste ponto em diante, o filme reconta o esforço guerrilheiro em território boliviano conduzido por Che, através do uso de recortes de jornal, revistas e fotografias: uma manchete fala sobre um embate entre militares e revolucionários, uma nota de jornal trata da chegada de aviões estadunidenses com material para a luta antiguerrilheira, outra manchete destaca o julgamento de Régis Debray[3]. A guerrilha corre o risco de ser exterminada. Ao final da sequência, destaque para fotos de agentes americanos, perambulando pelas ruas bolivianas. Retornamos ao discurso do Che, que se encerra com os dizeres: “Sacrificarse hasta la muerte en los campos de batalla de todo los continentes del mundo”. Corte seco para máquinas de telex, com fortes ruídos eletrônicos ao fundo, que evocam a sonoridade de telégrafos. Zoom em uma área destacada de um mapa, dissolve para uma visão aérea de várias áreas de florestas, entrecortadas por um rio. Surge uma manchete do jornal Juventud Rebelde: “1868: Hace un siglo que luchamos”. O filme se torna silencioso bruscamente no mesmo momento em que surge uma foto do Che deitado no chão segurando um fuzil. Uma segunda foto, dessa vez com Che sorrindo, surge, e lentamente se escurece. Transitando entre uma montagem mais associativa e um modo expositivo indireto, esta sequência do filme traça um arco narrativo trágico da campanha na Bolívia. Do início das operações, passando pelas sucessivas derrotas e prisões, até a debacle final, acompanhamos os acontecimentos de maneira deliberadamente cronológica, constrói-se assim uma escalada de tensão, que alcança seu ponto máximo e se resolve com a morte do herói, que cai em batalha, movimento acentuado pela foto do Che ao chão, com fuzil em mãos. A foto seguinte, de Che a sorrir, ao escurecer, sinaliza o desaparecimento do homem, que retornará agora, na qualidade de herói folclórico, como símbolo e exemplo.

Por fim, na sequência final do filme, temos Che discursando na ONU e declarando: “E esta onda de estremecido rancor, de justiça reclamada, de direito pisoteado, que se começa a levantar por entre as terras latino-americanas, esta onda já não parará mais. Esta onda irá crescer cada dia que passe. Porque esta onda é formada pela maioria, pela maioria em todos os aspectos, pelos que acumulam com seu trabalho as riquezas, criam os valores, fazem andar as rodas da história e que agora despertam do longo sonho embrutecedor que foram submetidos. Porque esta grande humanidade disse: “Basta!”, e se atreveu a andar. E em sua marcha, de gigantes, não irá parar até conquistar a verdadeira independência, na qual já foram mortos mais de uma vez inutilmente. Agora, em todo caso, os que morrem, morrerão como os de Cuba, os de Playa Girón, morrerão por sua única, verdadeira e irrenunciável independência.” Voltamos a ouvir o “Himno Del Guerrillero” sobre imagens de Che engajado no trabalho civil, nas plantações de cana, no carregamento de carga. Encerrando o filme, temos um close de uma foto de seu rosto. Zoom nos seus olhos, a imagem se embranquece e a música declama: “Libertad! Lebertad! Libertad!”.

Nesta sequencia final, temos definida a figura do guerrilheiro e do revolucionário, encarnado no Che mártir. A revolução não acaba na luta armada, mas se faz e se completa nos esforços de construção cotidianos da nova sociedade. E a revolução é onda imparável, que, através do esforço revolucionário coletivo, será invariavelmente vitoriosa. E o Che, que retorna, é a síntese desse coletivo revolucionário.

Considerações finais

Em termos gerais, do ponto de vista da linguagem, “Hasta la Victoria Siempre” é consideravelmente experimental, deixando bastante espaço para a participação interpretativa do espectador. Ainda assim, é bastante claro em sua mensagem política. Através da figura do Che, cria-se o ideário do revolucionário; por um lado, disposto a dar a própria vida na luta armada pela revolução, por outro, possuindo um empenho inquebrantável em organizar coletivamente as massas na construção do socialismo através do trabalho socializado, com abnegada entrega.

Nesse sentido, o significado da revolução toma um sentido amplo, onde a luta armada travada pelo guerrilheiro perde a aura romântica que poderia possuir na consciência reificada do indivíduo sob o capitalismo, e é inserida como somente uma das etapas que correspondem ao processo revolucionário, ficando salientado que a verdadeira revolução está no esforço coletivo do processo de longos anos de edificação de uma nova sociedade.

Este esforço coletivo deve permear todo o tecido social, incluindo aí o próprio fazer cinematográfico. Com essas considerações, podemos dizer de forma geral que o cinema de novo tipo deve ser um cinema coletivo, onde a separação entre autor e público desaparece, deve conjugar criticamente, partindo das experiências do movimento operário organizado, novos signos e símbolos que correspondam à nova sociedade que se almeja e, talvez o ponto mais importante: deve ser instrumento da organização das massas para a construção revolucionária.

Como colocado anteriormente, este breve artigo não possui ambições maiores que identificar os elementos gerais desse cinema, sendo assim, queremos dizer que o estudo de formas novas do fazer cinematográfico, comprometido com os interesses da classe trabalhadora, deve ser aprofundado pela análise dialética das experiências do passado e do presente.

Bibliografia

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MARX, Karl. Crítica ao programa de Gotha: Comentários à margem do programa do Partido Operário Alemão. In: MARX, Karl. Manifesto do partido comunista: 1848. Porto Alegre, RS: L&PM, 2019. p. 85-131.

MENEZES, Tainá Carvalho Ottoni de. EXPERIMENTAÇÃO ESTÉTICA E ENGAJAMENTO POLÍTICO NO CINEMA DOCUMENTAL DE SANTIAGO ÁLVAREZ. Orientador: Prof. Dr. FABIÁN RODRIGO MAGIOLI NÚÑEZ. 2019. Dissertação (Mestrado em Cinema e Audiovisual) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.

PRIOSTE, Marcelo Veira. O Cinema Documental de Santiago Álvarez na Construção de uma Épica Revolucionária. Orientador: Profª. Drª. Marília da Silva Franco. 2014. Tese (Doutorado em Meios e Processos Audiovisuais) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 2. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2018.

Publicado originalmente em: https://www.coletivovianinha.org/apontamentos-sobre-um-cinema-revolucionario

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