Aposto que sim: o futebol e o mundo bet
Guilherme - Militante do PCB em Araraquara
Este texto, que ora publicamos, podemos entendê-lo como um ensaio com a intenção de compartilharmos inquietações que têm nos assombrado há algum tempo. Em que pese seu tom mais crítico e incisivo, convidamos a leitora e o leitor a lê-lo como um convite a pensar junto, tal como o próprio texto foi concebido, isto é, como um pensamento que nasce da relação com outros tantos textos que têm debatido e analisado há décadas o futebol, em especial no que diz respeito aos seus aspectos políticos, sociais e econômicos.
Não é de hoje que a dita mercantilização ou financeirização do futebol é comentada, criticada e pesquisada jornalística e academicamente. A partir, sobretudo, da década de 1990, o futebol passou a ser uma atividade social, cultural e econômica com volumes exponenciais e impressionantes de circulação e acumulação de capital. Podemos citar três fenômenos que se destacam nesse processo global capitalista:
1) A famigerada arenização do futebol, ou seja, a implementação de um modelo em que o torcedor é visto, antes de tudo, como consumidor, o que envolve, entre outras coisas, a construção (ou reconstrução) de estádios de futebol como uma casa de espetáculos (as tais arenas multiuso). Neste caso, há um estímulo à movimentação financeira tanto na dimensão estrutural (pensemos nas empreiteiras), quanto na dimensão mais direta de serviços para o torcedor-consumidor (ou consumidor-torcedor?). Sobre as consequências da arenização não só para o futebol como um todo, mas em especial para a classe trabalhadora, já temos farta produção crítica a respeito.
2) A escalada estratosférica dos valores das transações e dos salários dos jogadores do primeiro escalão nacional e internacional, promovendo não só um inflacionamento do mercado de jogadores, mas também uma transformação da relação entre ídolos e torcedores. Neste último caso, haja vista o fenômeno das redes sociais e da espetacularização da vida privada, temos ao mesmo tempo, e contraditoriamente, tanto uma aproximação entre público e artista, com o jogador se tornando algo como uma estrela do entretenimento, quanto um distanciamento entre torcida e jogadores, afinal, a realidade dos milionários (ou bilionários) atletas se torna cada vez mais apartada da massa superexplorada pelo capital. Ainda a respeito das transações, não poderíamos deixar de citar, mesmo que só brevemente, as compras dos jovens jogadores brasileiros num ritmo alucinante por parte dos clubes europeus, em algo que poderíamos chamar, metaforicamente e sem muita precisão teórica, como um neocolonialismo ou uma acumulação primitiva do capital no setor futebolístico. Alguns poucos por aqui ganham com a venda dessa matéria-prima que é transformada numa fonte gigantesca de acumulação de capital para os países imperialistas. A Champions League, por exemplo, não deixa de ser um equivalente esportivo de uma Volkswagen.
3) Articulado a tudo isso, já que são processos interdependentes, temos a esfera midiática e da venda de produtos relacionados ao espetáculo, na qual os valores também são cada vez mais astronômicos. Pensemos apenas nos valores investidos pelas empresas de comunicação na comercialização das transmissões, bem como nos preços surreais das camisas dos times, que lançam a cada temporada (isso quando não a cada meia temporada) modelos novos da primeira, segunda e terceira camisas.
Enfim, se não bastasse isso, temos um quarto fenômeno no processo de mercantilização ou financeirização do futebol: as apostas, outro mercado bilionário. Elas não são novas, salientemos, acompanham as mais diversas práticas esportivas há muito tempo, basta pensarmos nas loterias esportivas, mas a coisa toda é de muito antes. Porém, tal como os três fenômenos comentados, o mercado das apostas alcançou um patamar também inacreditável, seja em quantidade, seja em capilarização. Ele está em todos os cantos: na publicidade (na TV, na internet, nos estádios), nos patrocínios de clubes, entre as pessoas que apostam (número crescente e que inclui, como em todo sistema de exploração, a própria classe trabalhadora, a qual encontra aí uma possibilidade de ganho material que nunca conseguiria com a venda de sua força de trabalho, ao menos a curto-médio prazo) e, por fim, nas páginas policiais.
Neste último caso, claro, nos referimos aos escândalos de manipulação de resultados ou de “meros” detalhes do jogo (que, obviamente, influenciam direta ou indiretamente nos resultados), como um jogador forçar um cartão ou coisa do gênero. Os exemplos, só em 2023, são vários, sendo que um dos mais recentes culminou na anulação de um campeonato inteiro (!), o da primeira divisão da Bolívia. Em meio a todos esses escândalos, e outros tantos que certamente virão à tona, há, legitimamente, um movimento geral de reivindicação da regulação do mercado de apostas, processo mais avançado em alguns países. Lembremos que existem, por outro lado, países (várias nações muçulmanas ou a China, por exemplo) em que as apostas são muito restritas ou mesmo proibidas por completo. Há, também, quem, sob a retórica do jogo limpo, regulado ou transparente, busca implementar esse mercado lucrativo no Brasil, como podemos notar pela presença de uma figura como Ludovico Calvi (um consultor “renomado” internacional do ramo) num webinar promovido pelo Ministério da Economia do governo Bolsonaro, no dia 23 de julho de 2021, cujo título sugestivo foi “As apostas esportivas, uma grande oportunidade para o país”. O capital não brinca em serviço.
Seja como for, tem havido certa mobilização por uma moralização do futebol em relação às apostas, isso tanto por parte de determinados agentes econômicos capitalistas envolvidos no esporte, os quais têm interesse em regular este mercado para torná-lo mais transparente e previsível, de sorte que seus investimentos não fiquem à mercê de práticas ilícitas ou incontroláveis (contudo, não nos esqueçamos que o mercado de apostas também é um setor de atuação de capitalistas), quanto por parte do público em geral que consome futebol como lazer ou de profissionais minimamente críticos, como é o caso de membros mais lúcidos da imprensa esportiva (não obstante esta ganhar também com publicidade das casas de apostas). Além disso, mesmo entre as pessoas que apostam há indignação moral ou ética a respeito das manipulações, afinal, quem ganha com as manipulações não são os apostadores comuns. Ainda, outro aspecto ético que se desdobra a partir da proliferação dos sites de apostas é a questão do vício, um problema nada negligenciável. Aliás, são cada vez mais frequentes reportagens aqui no Brasil sobre casos de pessoas que tiveram ou estão com a vida arruinada do ponto de vista psíquico e material por conta das apostas.
Todavia, e aqui trazemos nossa tese principal, a atual crise provocada pelo fenômeno das apostas e seus escândalos não é uma questão de cunho moral ou ético. Estamos diante da mais pura e bruta necessidade de reprodução ampliada do capital, de seu expansionismo intrínseco e incontrolável. O valor que interessa ao capital é o valor de troca, não o valor moral. Os grandes eventos esportivos, a arenização, a privatização dos mais diferentes setores do futebol, as SAFs e os grandes investidores em clubes, a flexibilização administrativa, os ingressos caríssimos, a desregulamentação das transações, o reino dos empresários, os salários escandalosos para uma mínima fatia de trabalhadores (ou astros do entretenimento), as personalizações dos produtos, as transmissões pagas (aqui cabe mencionar, de passagem, como a população busca alternativas, como os famosos links piratas, os quais, inclusive, já possuem pessoas que ofertam a transmissão pirata com golpes de retorno financeiro imediato focando um espectador mais necessitado ou ingênuo): tudo isso e mais um pouco ganha vida no mesmo oceano de onde emerge a pandemia das apostas. E olha que poderíamos ainda gastar algumas linhas comentando sobre a relação entre o futebol e a lavagem de dinheiro. Alguém duvida de que o mercado de apostas esteja inserido nesse meio de campo?
Dito isso, pouco avançaremos se o combate ao mundo bet for travado pela via da crítica moral. As arenas estão aí, os salários astronômicos para pouquíssimos estão aí, as cotas bilionárias de transmissão estão aí, os pay per view estão aí e, agora, as apostas estão aí, aqui e em todos os lugares e lares. Não são mais os bancos ou instituições financeiras que parecem hegemonizar patrocínios e publicidade. O capital necessita de um tempo de rotação cada vez menor, cada vez mais acelerado. No âmbito esportivo, seria o mercado das apostas o ápice dessa necessidade ou ainda há fronteiras a se explorar?
Uma coisa é fato: o dinheiro que circula no mercado das apostas não brota do nada, não se trata de mágica. É fruto direto ou indireto, consumado ou antecipado, da mais-valia de trabalhadores das mais diversas esferas da economia, o que engloba o próprio setor econômico esportivo, por exemplo: os jogadores (são milhares pelo país em todas as divisões recebendo um salário miserável), os demais profissionais dos clubes, os funcionários da mídia esportiva, os trabalhadores da indústria têxtil, isso sem falarmos naqueles que construíram os estádios, quer dizer, as arenas… Em outros termos, o mercado de apostas, antes de ser imoral, é funcional e necessário ao funcionamento do sistema.
O capital, portanto, precisa mobilizar e reconfigurar necessidades e afetos genuínos da classe trabalhadora, transformando-os com o objetivo de fazer com que este esporte, já totalmente descaracterizado de seus elementos mais humanizadores e críticos, continue se apresentando como uma forma legítima e desejável de lazer para o povo. Diante desse quadro, acreditamos que duas perguntas incontornáveis se colocam: cabe seguirmos lutando pelo futebol ou é um caso perdido? Se sim, se ainda é o caso de lutarmos por ele, como fazê-lo sem cairmos na armadilha do moralismo? O capital segue avançando e capturando os poucos espaços e momentos de alegria e descanso da classe trabalhadora. Até quando? Alguém aposta?
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