As Milícias Assaltaram a República

Por: Redação ·

Por Lincoln Penna - Historiador e escritor sobre a militância comunista, Petrobrás e temas vinculados a soberania nacional. Presidente do Modecon -Movimento em Defesa da Economia Nacional

As milícias assaltaram a República e a mais recente tragédia que se abateu no País, com o assassinato do jornalista britânico Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira, é mais do que reveladora e assustadora desse assalto.

O termo está no plural porque há várias formas de organização miliciana e essa diversidade se deve de um lado à facilidade com que elas têm para se constituir à revelia da lei, e também ao incentivo de grupos e forças políticas que as usam e são também usados por essas organizações extra-legais. O que as tornam múltiplas é o fato de atuarem nas várias frentes burlando as normas instituídas.

Suas origens são conhecidas. Surgiram da contravenção tolerada por autoridades públicas em troca de serviços e apoios eleitorais em determinados bairros ou regiões das grandes metrópoles paras as quais prestavam o papel de seguranças particulares. Inicialmente esses contraventores agiam isoladamente para obterem a cobertura dessas autoridades corruptas e corruptoras, mas com o tempo passaram a agir coletivamente e cooptando os servidores da segurança do Estado, os quais, em acordos espúrios, perceberam que podiam construir os seus negócios pela via da política, ora se lançando candidatos ou apoiando financeiramente os seus próprios quadros, ora assumindo o controle de áreas públicas com a conivência dos poderes públicos. Com isso, foram em pouco tempo erguendo os pilares do poder paralelo, hoje uma realidade que só não enxerga quem não quer.

Os embates entre essas organizações da contravenção se tornaram comuns, quase sempre resolvidos mediante a eliminação de quem pudessem invadir ou constranger seus negócios, tal como nas velhas refregas entre os banqueiros do jogo do bicho. Contudo, mais recentemente, a amplitude desses atos se tornou mais frequente não apenas nas cidades e capitais do País, mas estes têm sido realizados em territórios nos quais as organizações milicianas passaram a atuar, uma vez que, acobertados por quem deveria reprimi-los, investem em outros tantos negócios ilegais.

A expansão das milícias fez surgir o estado paralelo, que suplantou em muito o poder paralelo, pois este se limitava a áreas restritas, a exemplo dos grupos que operam o tráfico de drogas, distribuídos nas comunidades pobres, como as favelas. Neste estado não há dúvidas de que se consolida uma verdadeira parceria de agentes públicos com a criminalidade motivada por interesses financeiros.

Ao se infiltrarem na máquina do Estado em todos os seus níveis, federal, estadual e municipal, ferem de morte lenta e progressivamente, o regime da coisa pública, isto é, a República, cuja única defesa para fazer valer sua existência é a  ação consciente de seus cidadãos. Os exemplos estão aí, de honrados, respeitáveis e corajosos seres humanos como Bruno e Dom, assim como inúmeros outros que já tombaram ou que estão na mira desses criminosos.

As milícias do crime organizado lamentavelmente contam com o respaldo de parcelas da sociedade que, ou bem se valem desses expedientes nocivos a nossa comunidade de destino e aos seus direitos, ou se identificam com suas práticas porque manifestam absoluto desprezo pelo bem comum, geralmente movidos pela ganância de querer levar vantagem em tudo.

Isso não significa apenas falta de caráter dos que integram essas milícias. Isso significa ausência de uma formação de cidadania, de uma educação que tenha a consciência do pertencimento a uma coletividade. Mais do que isso, significa a prevalência do individualismo egoísta que se tornou mais frequente com a ascensão da ideologia refratária aos valores civilizatórios e à democracia, como bem precioso de uma sociedade justa e igualitária de verdade.

O Brasil defronta-se com uma encruzilhada em seu destino. A escolha dos rumos depende da possibilidade de levar as milícias de todo tipo aos tribunais de modo a julgá-las, condená-las e eliminá-las do convívio com o nosso povo, os mais afetados direta ou indiretamente pela existência desses grupos.

Escolha essa que está na possibilidade de escolha de seus representantes. Mas, sobretudo na consciência da necessidade de se pôr fim a tais bandos da criminalidade e da nacionalidade alvejada e amparada por falsos mitos consagrados pela estupidez.

As milícias, por fim, se abastecem também da ignorância de muita gente desprovida de um mínimo de conhecimento da realidade dos tempos em que vivemos, e na equivocada ideia de que só com o uso da violência a todo custo é capaz de resolver os problemas do nosso cotidiano. Claro que instigados e incentivados por governantes a estimularem essa crença que só faz aumentar o alto grau de perdas humanas, naturalizadas como coisa do destino.

Ao agirem em regiões dos biomas da Amazônia e também do Cerrado, dois dos mais atingidos pelas agressões às suas reservas naturais, suas faunas e floras, esses agentes do mal ferem de morte o regime republicano, cujo funcionamento até hoje carece de força cívica suficiente para que consigamos de fato atingir a meta do republicanismo que consiste no exercício da plena democracia, com austeridade em todos os níveis e real representatividade dos interesses do povo, sem o que as repúblicas de nada valem.

Na verdade, a proliferação desse crime organizado não se deve a desordeiros, que isoladamente buscam o lucro fácil e rápido. Ele advém do sistema em que se vive, cuja essência de sua lógica está no modo de vida que temos, o do capitalismo em sua fase mais selvagem, desordeira e febril, diante da inevitabilidade de sua permanência cada vez mais condenada pelos que o identificam como causador desses males, mas também por aqueles que sofrem os seus perversos efeitos.

Um dia, que esperamos não demore tanto, Bruno e Dom serão reconhecidos por toda a humanidade no que ela tem de mais precioso que é a solidariedade para com os nossos semelhantes, na luta sem fronteiras pela preservação de nossa diversidade como povos e pelo bem-estar harmonioso de todos. Só assim poderemos ser chamados de seres civilizados. Fora disso é pura barbárie anunciada e que precisa ser extirpada.

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