Auditores fiscais e entidades denunciam irregularidades e omissão de dados por parte do Ministério do Trabalho e Emprego

Auditores fiscais e entidades denunciam irregularidades e omissão de dados por parte do Ministério do Trabalho e Emprego

Por: O Poder Popular · O Brasil de Fato recebeu denúncias das duas áreas predominantes na Inspeção do Trabalho: o setor de fiscalização do trabalho, que engloba o combate ao trabalho escravo contemporâneo e ao trabalho infantil; e o setor de saúde e segurança do trabalho - Pedro Stropasolas

Pedro Stropasolas para o Brasil de Fato

Denúncias que chegaram ao Brasil de Fato criticam novo código de conduta instituído pelo ministério em julho de 2024

A divulgação dos dados do trabalho escravo nesta terça-feira (28), Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, esconde denúncias de falta de transparência e censura por parte do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) contra Auditores Fiscais do Trabalho.

De acordo com organizações da sociedade civil e com os próprios trabalhadores, ouvidos pelo Brasil de Fato em condição de anonimato, uma portaria divulgada pelo ministério em julho de 2024 vem impedindo eles de darem entrevistas à imprensa e de participarem de eventos públicos desacompanhados de funcionários do MTE.

As regras estão no novo código de conduta dos agentes públicos do MTE, instituído pela portaria MTE 1283, que tem sido chamada pela categoria como o "Código da Censura".

"Há uma tentativa clara de centralização das informações administrativas em nível de gabinete ministerial, porque isso foi considerado interessante para o projeto político do seu titular. Então, no fundo é isso, tudo aquilo que hoje acontece nas relações entre o Estado e os administrados, os patrões, empregadores em geral, trabalhadores, na verdade, tudo isso passou a ser tutelado de forma irregular, inconstitucional", disse um dos auditores.

A repercussão da Portaria MTE Nº 1.283 motivou também a manifestação de diversas entidades vinculadas ao trabalhadores e que atuam no combate ao trabalho escravo no país.

Um parecer assinado pelo Instituto Trabalho Digno, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Anafitra) e o Sindicato dos Auditores Fiscais do Estado da Bahia afirma que o documento revela "uma série de irregularidades graves encontradas em vários dispositivos" e uma "extrapolação de poder" mediante "criação de novas obrigações carentes de respaldo legal". O parecer também cita uma "vedação de direito de greve", "controle a redes sociais de servidores" e "imposição de sistema de censura prévia quanto à produção intelectual e acadêmica".

Frei Xavier Plassat, uma liderança histórica da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no setor de erradicação do trabalho escravo, acredita que a nova portaria pode ser interpretada como "uma redução da liberdade de comunicação" dos auditores.

Em nota enviada à reportagem, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) destaca que a abrangência do Código de Conduta é voltada para todas as áreas e unidades do ministério, "sem destacar ou especificar nenhuma área ou carreira no âmbito do MTE".

Destaca ainda que o MTE foi recriado em 2023 pela Medida Provisória nº 1.154, de 1º de janeiro, transformada na Lei nº 14.600, de 19 de junho de 2023, e desde então, "voltou a atuar nas políticas de trabalho, emprego e renda, contribuindo para melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores brasileiros, como previsto na Lei nº 14.600/2023".

O ministério elenca como exemplo de medidas adotadas, envolvendo os servidores, "o fortalecimento do 'Código de Conduta', que faz parte de um esforço para organizar e estruturar processos, garantindo uma gestão mais ética e eficiente".

Número do trabalho escravo

O Brasil de Fato recebeu denúncias das duas áreas predominantes na Inspeção do Trabalho: o setor de fiscalização do trabalho, que engloba o combate ao trabalho escravo contemporâneo e ao trabalho infantil; e o setor de saúde e segurança do trabalho.

Atualmente, cerca de 1.900 auditores fiscais do trabalho estão em atividade em todo o Brasil. O país, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), apresenta um déficit de 3,5 mil trabalhadores. O último concurso público para o cargo foi realizado em 2013.

Em 2024, o país encontrou, pelo menos, 2004 trabalhadores em condições análogas às de escravo, segundo dados do MTE divulgados hoje (28), em 1.035 ações fiscais. O Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo é uma forma de homenagear os quatro auditores fiscais mortos pela chacina de Unaí, em 2004, cujo mandante foi preso na última quarta-feira (15) na região serra do Rio Grande do Sul.

Publicação de artigos

Uma das críticas da categoria ao novo código de conduta diz respeito ao ponto XVII do Artigo 8, que condiciona os trabalhadores a obter "autorização prévia" para publicar trabalhos e artigos. Um dos auditores chega a comparar a medida com a atuação de Solange Maria Chaves Teixeira Hernandes durante a ditadura militar. Ela ficou conhecida como a maior censora da cultura e do entretenimento no Brasil.

"Cada vez que um auditor apresentar um artigo, um comentário, alguma coisa por escrito, esse artigo, esse comentário, tem que ser submetido ao titular do órgão e aprovado. Ou seja, é a volta dos infelizes tempos da Dona Solange, lá na Polícia Federal, que aprovava ou não as letras das músicas, as peças teatrais e artísticas de todo o povo brasileiro", afirma.

Outro trabalhador enfatiza que para "participar de um evento tem que ir alguém do lado, porque um fala e o outro é um olheiro do governo para saber o que a pessoa vai falar".

Direito de greve cerceado

Dentre outras violações presentes no texto, segundo os auditores, está a que coloca como dever do agente público "assumir a responsabilidade pela execução do seu trabalho, independente de insatisfações ou não atendimento de reivindicações coletivas". Este ponto é tratado pela categoria como um cerceamento ao direito de greve.

Em março do ano passado, os auditores fiscais do trabalho paralisaram suas atividades cobrando do governo federal melhores condições de trabalho e a regulamentação de um bônus de eficiência, que passaria a igualar as condições da carreira com a dos auditores fiscais da Receita Federal.

"Isso é inconstitucional, é contra o direito de greve. Com todas as limitações que existem, mas ele é um direito universal. É um direito brasileiro. Então, isso também, de uma forma surpreendente no  governo que é, que tem esse viés pró-trabalho, isso tem acontecido de forma cotidiana aqui na nossa atividade", aponta um dos agentes públicos.

Uma das primeiras ações criadas pelo ministério após sua recriação, segundo a nota do MTE enviada à reportagem, "foi a criação e aprovação dos valores institucionais, que definem os princípios fundamentais da organização".

Segundo o MTE, "esses valores guiam o trabalho e as relações com a sociedade, ajudando a estabelecer o comportamento esperado para alcançar a excelência. No art. 6º do Código de Conduta do MTE (Portaria nº 1.283/2024), esses valores são apresentados como parte das normas de conduta".

Elenca ainda como medida importante, a criação do Sistema de Governança do MTE, pela Portaria MTE nº 3.849, de 18 de dezembro de 2023. "Esse sistema organiza as decisões relacionadas à gestão estratégica, riscos, controle interno, transparência, e outros aspectos da administração pública, seguindo as diretrizes do Decreto nº 9.203/2017. O objetivo é promover a ética e a integridade dentro da instituição, com o Programa de Integridade, que inclui o Código de Conduta como um dos principais instrumentos", diz a nota.

Manifestação de entidades

Segundo o parecer publicado pelas entidades em 8 de agosto de 2024, o novo dispositivo inova em relação ao código de ética anterior, publicado em 2010, ao estabelecer um sistema centralizado de "autorização" junto à Assessoria de Comunicação Social do Ministério do Trabalho e Emprego (Aescom).

O modelo de autorização descentralizada, antes concedido pelas chefias e gestores de unidades locais, era motivado justamente pela "falta de devida estrutura da Ascom junto a unidades regionais", segundo o parecer.

"É uma assessoria não exatamente do Ministério, mas uma assessoria do ministro, do gabinete", reclama um dos auditores ao Brasil de Fato.

A centralização das decisões pela Aescom vem ocasionando, segundo as entidades, uma incapacidade de "atender demandas simples de publicação célere e tempestiva de notícias e releases relacionados a ações fiscais".

Nesse ponto, um outro auditor reclama da impossibilidade de levar equipes de reportagem para acompanhar as ações de resgate de trabalhadores, algo que era mais comum antes da implementação da nova portaria.

"Os projetos que a gente trabalha, a gente precisa dar visibilidade. As pessoas precisam saber o que está acontecendo, até mesmo para nos auxiliar, para cobrar, para ajudar a gente levar informação adequada. Então essa visibilidade é necessária. Muitas pessoas não sabem como as coisas acontecem, né? Então isso prejudicou bastante", relata.

Quanto as atribuições da Assessoria Especial de Comunicação Social do MTE, a nota do MTE enviada à reportagem destaca os princípios da comunicação no governo, segundo a portaria MTE Nº 1.541, de 12 de setembro de 2024.

O ministério destaca o Art. 8°, XVII: "obter autorização prévia e expressa do titular da Unidade Administrativa ou do órgão vinculado ao qual esteja subordinado para veicular estudos, pareceres, pesquisas e demais trabalhos de sua autoria, desenvolvidos no âmbito de suas atribuições, assegurando-se de que sua divulgação não envolverá conteúdo sigiloso, tampouco poderá comprometer a imagem do Ministério".

Quanto a esse inciso, o MTE afirma que ele "não apresenta novidade, pois reflete o que já é exigido na Administração Pública Federal" e destaca alguns códigos de ética importantes para garantir que os servidores públicos ajam com responsabilidade e transparência ao divulgar informações e trabalhos realizados.

São eles: o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal (Decreto nº 1.171/1994); o Código de Ética da Controladoria-Geral da União (CGU); e o Código de Ética do Tribunal de Contas da União (TCU). A nota do ministério diz ainda que, conforme o Decreto nº 1.171/1994, todos os servidores públicos devem seguir essas normas.

Caso Sônia Maria de Jesus

Segundo um dos trabalhadores ouvidos pela reportagem, a publicação da Portaria MTE 1283 é uma resposta ao caso de Sônia Maria de Jesus, trabalhadora doméstica que foi resgatada após 40 anos de trabalho não remunerado na casa do desembargador Jorge Luiz Borba, em Santa Catarina.

Segundo o relato, neste episódio houve uma clara "perseguição" ao auditor-fiscal que coordenou a operação. Ele foi acusado de violação de sigilo funcional por ter dado uma entrevista sobre o caso, cuja repercussão motivou a abertura de um inquérito policial em desfavor do agente público.

A repercussão desta entrevista e a atuação do agente do MTE no caso teriam motivado, segundo o trabalhador, a criação do Código de Conduta.

Na época, a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), por meio de suas entidades e instituições integrantes, publicou uma manifestação em apoio ao auditor fiscal do trabalho, pontuando "sua extrema preocupação com uma grave e atual violação das normas da Política Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo" e uma "clara tentativa de retaliação à operação fiscal".

As denúncias dos auditores que chegaram ao Brasil de Fato dizem que, na ocasião, não houve apoio do MTE ao trabalhador, o que "culminou em sua retirada das ações de trabalho escravo".

De sua parte, o MTE afirma que a criação do Código de Conduta não caracteriza "resposta" ou "perseguição" e "sim uma das várias medidas adotadas pela pasta visando um esforço para organizar e estruturar processos, garantindo uma gestão mais ética e eficiente. Além de organizar as decisões relacionadas à gestão estratégica, riscos, controle interno, transparência, e outros aspectos da administração pública".

O ministério destaca que em 20 de fevereiro de 2024, lançou o o Programa de Integridade "PROiMTE" , durante a 1ª Reunião do Comitê de Governança Estratégica-CGE, presidida pelo ministro Luiz Marinho. O programa, segundo o MTE, "define sete eixos, sendo que o 3º aborda normas e procedimentos internos para orientar o comportamento ético dos servidores e prevenir irregularidades. O Item 11 do programa destaca a elaboração do Código de Conduta como parte das ações de monitoramento e atualização contínua do programa".

O que diz quem trabalha com o tema

Lívia Miraglia, coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG, enxerga pontos críticos na portaria que foi publicada pelo MTE, principalmente no que diz respeito à restrição de publicação de artigos acadêmicos por parte de auditores. Mas ela acredita que, no seu caso, o ministério não está dificultando o acesso aos autos de infração e outras informações sobre resgates.

"Eu sou uma pessoa que sempre achou que a prática tem que andar junto com a academia, e a academia andar junto com a prática. Isso pode trazer coisas muitos mais concretas até para pensar em políticas públicas. Mas, na clínica de trabalho escravo da UFMG, não podemos dizer que houve algum tipo de afetação em relação às nossas atividades. Todos os autos de cooperação que a gente precisou, tudo que a gente precisou do Ministério do Trabalho e Emprego a gente conseguiu nesse último ano", explica a Professora de Direito do Trabalho da UFMG.

"A gente tem um termo de cooperação firmado com o Ministério do Trabalho e do Emprego e através desse termo a gente conseguiu acesso a tudo que a gente precisava para a produção da pesquisa", completa Miraglia.

Já Frei Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra, valoriza a atuação do MTE, principalmente na elaboração do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, mas acredita que houve uma "perda na qualidade da produção de dados em 2024" por parte do órgão. "Os dados do trabalho escravo em 2024 não foram disponibilizados como acontecia regularmente todos os anos", afirma.

"Anteriormente, isso (os dados) eram processados dentro de um serviço integrado à própria coordenação de comando de trabalho escravo e, por algum motivo, sem que saiba exatamente como foi a nova definição, saiu da mão deles. Então criou um ruído de continuidade e atraso na produção de dados", completa a liderança da CPT.

Radar Sit

Xavier cita o exemplo do Radar Sit, um sistema on line de divulgação de informações sobre os resgates e fiscalizações relacionados ao trabalho escravo contemporâneo e o trabalho infantil no Brasil. O sistema, segundo relato dos auditores, era atualizado pelo menos quatro vezes ao ano. Hoje, a última atualização do painel é de 2023.

Foi a partir do Radar que o Brasil de Fato, em abril 2023, pode dar um panorama sobre a evolução do número de trabalhadores resgatados na cadeia produtiva da Extração de Pedra, areia e argila ao longo dos últimos dez anos, tendo atingido seu ápice em 2022. O painel também consegue dar informações sobre a especificidade de cada cadeia produtiva, exibindo as cidades e regiões onde mais ocorreram ações de fiscalização.

Em relação à produção de dados relacionados ao trabalho escravo contemporâneo, o MTE esclarece que "os dados relacionados ao combate ao trabalho escravo envolvem a consolidação de informações complexas, resultantes da atuação da Inspeção do Trabalho e seus desdobramentos. Para registrar e tratar esses dados de forma mais detalhada e autônoma, foi desenvolvido um novo sistema de relatórios, que está sendo implementado de maneira gradual".

Afirma também que "durante a transição entre os sistemas, foram identificadas necessidades de aprimoramento na nova ferramenta e na integração dos dados. Após as adequações finais, previstas para o primeiro quadrimestre deste ano, as informações e estatísticas sobre o combate ao trabalho escravo estarão disponíveis como dados abertos, devidamente publicadas por meio do Radar SIT".

Relacionamento com a imprensa

Ainda sobre o art. 8º, inciso XXVIII do novo código de conduta, que trata sobre o relacionamento dos agentes públicos com a imprensa, a nota do MTE destaca ao Brasil de Fato que, de acordo com o Decreto 11.779/2023, previsto no art. 6º, "compete à Assessoria Especial de Comunicação Social planejar, coordenar e executar a política de comunicação social e a publicidade institucional do ministério, em consonância com as diretrizes da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República".

Afirma ainda que esse ponto "não é nenhuma inovação, pois na Portaria 2.973/2010, do antigo código de conduta do MTE, já constava essa necessidade e obrigatoriedade".

O MTE lembra que  o Decreto nº 1.171, de 22 de junho de 1994, embora mais geral,  é um código de ética que "também aborda a importância de seguir as normas institucionais e manter a integridade nas comunicações oficiais".

O ministério destaca ainda nesse ponto a redação do Art. 1º do Anexo I à Portaria MTE 1.283/2024 e esclarece que "existem regras específicas para a Inspeção do Trabalho que devem ser seguidas. O auditor-fiscal do Trabalho (AFT) pode participar de palestras, esclarecer dúvidas sobre a fiscalização ou debater sobre o tema, desde que isso seja feito no âmbito de suas atividades como AFT. Porém, o auditor-fiscal do Trabalho não é responsável pelo relacionamento com a imprensa, que é atribuição da Aescom", diz a nota.

Edição: Nicolau Soares

Acompanhe todas as mídias do nosso jornal: https://linktr.ee/jornalopoderpopular e contribua pelo Pix jornalpoderpopular@gmail.com

Compartilhe nas redes sociais