Cem anos desde que perdemos o camarada Lênin
Por Vijay Prashad, publicado originalmente em inglês no jornal Morning Star tradução por Maria Francisca Theberge - militante do PCB-RJ. Vijay Prashad é um historiador, editor e jornalista comunista indiano. Ele é o autor de Estrela vermelha sobre o terceiro mundo (Expressão Popular), Balas de Washington: Uma história da CIA, golpes e assassinatos (Expressão Popular) e Uma História Popular do Terceiro Mundo (Expressão Popular).
VLADIMIR ILYICH ULANOV (1870-1924) era conhecido por seu pseudônimo – Lênin. Ele foi, tal como os seus irmãos, um revolucionário, o que no contexto da Rússia czarista significou que passou longos anos na prisão e no exílio. Lênin ajudou a construir o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), tanto através do seu trabalho intelectual como organizativo.
Os escritos de Lênin não são apenas as suas próprias palavras, mas o resumo da atividade e dos pensamentos de milhares de militantes cujos caminhos cruzaram o seu. Foi a notável capacidade de Lênin em desenvolver as experiências dos militantes no domínio teórico que moldou o que chamamos de leninismo. Não é de admirar que o marxista húngaro Gyorgy Lukacs tenha chamado Lénine de “o único teórico igual a Marx, produto da luta pela libertação do proletariado”.
Construindo uma Revolução
Em 1896, quando eclodiram greves espontâneas nas fábricas de São Petersburgo, os revolucionários socialistas foram pegos de surpresa. Eles estavam desorientados. Cinco anos mais tarde, escreveu Lênin, os “revolucionários ficaram para trás deste levante, tanto nas suas 'teorias' como na sua atividade; eles falharam em estabelecer uma organização constante e contínua capaz de liderar todo o movimento”. Lênin sentiu que este atraso tinha que ser corrigido.
A maioria dos principais escritos de Lênin seguiu esta visão. Lênin elaborou as contradições do capitalismo na Rússia (“O desenvolvimento do Capitalismo na Rússia”, 1896), o que lhe permitiu compreender como o campesinato no vasto império czarista tinha um caráter proletário. Foi com base nisso que Lênin defendeu a aliança operário-camponesa contra o czarismo e os capitalistas.
Lênin compreendeu, a partir do seu envolvimento na luta de massas e da sua leitura teórica, que os social-democratas - como a secção mais liberal da burguesia e dos aristocratas - não eram capazes de conduzir uma revolução burguesa e muito menos o movimento que levaria à emancipação do campesinato e dos trabalhadores urbanos. Este trabalho foi realizado em “Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática” (1905). Duas Táticas é talvez o primeiro grande tratado marxista que demonstra a necessidade de uma revolução socialista, mesmo num país “atrasado”, onde os trabalhadores e os camponeses precisariam de se aliar para quebrar as instituições da escravidão.
Estes dois textos mostram Lênin a evitar a visão de que a Revolução Russa poderia ultrapassar o desenvolvimento capitalista (como sugeriram os populistas russos narodnik) ou que teria de passar pelo capitalismo (como argumentavam os democratas liberais). Nenhum caminho era possível nem necessário. O capitalismo já tinha entrado na Rússia — um fato que os populistas não reconheceram — e poderia ser superado por uma revolução operária e camponesa — um fato que os democratas liberais contestaram. A Revolução de 1917 e a experiência soviética provaram o ponto de vista de Lênin.
Tendo estabelecido que as elites liberais dentro da Rússia czarista não seriam capazes de liderar uma revolução operária e camponesa, ou mesmo uma revolução burguesa, Lênin voltou a sua atenção para a situação internacional. Sentado no exílio na Suíça, Lênin assistiu à capitulação dos social-democratas perante o belicismo em 1914 e à entrega da classe trabalhadora à Guerra Mundial.
Frustrado pela traição dos social-democratas, Lênin escreveu um texto importante – “Imperialismo” – que desenvolveu uma compreensão lúcida do crescimento do capital financeiro e das empresas monopolistas, bem como do conflito intercapitalista e interimperialista. Foi neste texto que Lênin explorou as limitações dos movimentos socialistas no Ocidente – com a aristocracia operária a constituir uma barreira à militância socialista – e o potencial para a revolução no Oriente – onde o “elo mais fraco” da cadeia imperialista poderia ser encontrado.
Os cadernos de Lênin mostram que ele leu 148 livros e 213 artigos em inglês, francês, alemão e russo para esclarecer o seu pensamento sobre o imperialismo contemporâneo. Uma avaliação lúcida do imperialismo deste tipo garantiu que Lênin desenvolvesse uma posição forte sobre os direitos das nações à autodeterminação, quer estas nações estivessem dentro do império czarista ou mesmo de qualquer outro império europeu. O núcleo do anticolonialismo da URSS – desenvolvido na Internacional Comunista (Comintern) – encontra-se aqui.
O termo “imperialismo”, tão central na expansão da tradição marxista de Lênin, refere-se ao desenvolvimento desigual do capitalismo à escala global e ao uso da força para manter essa desigualdade. Certas partes do planeta — principalmente aquelas que tiveram uma história prévia onde foram colonizadas — permanecem numa posição de subordinação, com a sua capacidade de elaborar uma agenda de desenvolvimento nacional independente limitada pelos tentáculos do poder político, econômico, social e cultural estrangeiro.
No nosso tempo, surgiram novas teorias que sugerem que as novas condições já não podem ser compreendidas pela teoria leninista do imperialismo. Algumas pessoas na esquerda rejeitam a ideia da estrutura neocolonial da economia mundial, com o bloco imperialista – liderado pelos Estados Unidos – utilizando todas as suas fontes de poder para manter esta estrutura. Outros, mesmo na esquerda, argumentam que o mundo é agora “plano” e que já não existe um Norte global que oprime um Sul global, e que as elites de ambas as zonas fazem parte de uma burguesia internacional. Nenhum destes contra argumentos se sustentam quando confrontados com os níveis crescentes de violência perpetuados pelo bloco imperialista e com os níveis crescentes de desigualdade relativa entre o Norte e o Sul (apesar do crescimento das elites capitalistas no Sul).
Elementos do “Imperialismo” de Lênin estão, obviamente, datados – foi escrito há 100 anos – e exigiriam uma revisão cuidadosa. Mas a essência da teoria é válida – a insistência na tendência das empresas capitalistas para se tornarem monopólios, a crueldade com que o capital financeiro drena a riqueza do Sul global e o uso da força para conter as ambições dos países do Sul de traçar a sua própria agenda de desenvolvimento.
Uma das intervenções mais vitais de Lênin, que atraiu aqueles que estavam nas colónias, foi a ideia de que o imperialismo nunca desenvolveria suas colônias e que apenas as forças socialistas em colaboração com os setores de libertação nacional seriam capazes de lutar pela independência nacional e depois avançar os seus países para o socialismo. A feroz determinação anticolonial de Lênin atraiu as suas ideias para o mundo colonial, razão pela qual estes se uniram com tanto entusiasmo ao Comintern depois de 1919.
Ho Chi Minh leu a tese do Comintern sobre questões nacionais e coloniais e chorou. Foi um “guia milagroso” para a luta do povo da Indochina, considerou. “A partir da experiência da Revolução Russa”, escreveu Ho Chi Minh, “deveríamos ter as pessoas – tanto a classe trabalhadora como os camponeses – na raíz da nossa luta. Precisamos de um partido forte, de uma vontade forte, com sacrifício e unanimidade no nosso centro.” “Como o sol brilhante”, escreveu Ho Chi Minh, “a Revolução de Outubro brilhou sobre todos os cinco continentes, despertando milhões de pessoas oprimidas e exploradas em todo o mundo. Nunca existiu uma revolução de tal significado e escala na história da humanidade.”
Finalmente, Lênin passou o período de 1893 a 1917 estudando as limitações do partido do antigo tipo – o partido social-democrata. O texto de Lênin — “Nosso Programa” — defende que o partido deve estar envolvido numa atividade contínua e não depender de surtos espontâneos ou iniciais [stikhiinyi em russo]. Esta atividade contínua colocaria o partido em contacto íntimo e orgânico com a classe trabalhadora e o campesinato, bem como ajudaria a germinar os protestos que então poderiam assumir um carácter de massas. Foi esta consideração que levou Lênin a desenvolver a sua compreensão do partido revolucionário em “O Que Fazer?” (1902). A notável intervenção destacou o papel dos trabalhadores com consciência de classe como a vanguarda do partido e a importância da agitação política entre os trabalhadores para desenvolver uma consciência política genuinamente poderosa contra toda a tirania e toda a opressão. Os trabalhadores, argumentou Lênin, precisam sentir a intensidade da brutalidade do sistema e a importância da solidariedade.
Estes textos - de 1896 a 1916 - prepararam o terreno para os bolcheviques e Lênin compreenderem como operar durante as lutas de 1917. É uma medida da confiança de Lênin nas massas e na sua teoria que Lênin escreveu o seu audacioso panfleto “Conservarão os Bolcheviques o poder do Estado?” algumas semanas antes da tomada do poder.
Construindo um estado
Tendo vencido, Lênin tinha agora de enfrentar os problemas da construção de um projecto socialista no antigo império czarista, que tinha sido devastado pela sua avareza e pela guerra. Antes que os soviéticos tivessem tempo de se organizar, os imperialistas atacavam de todas as direcções. As intervenções directas em nome dos camponeses e trabalhadores, bem como das minorias nacionais, impediram deserções em grande escala da nova revolução para os exércitos contra-revolucionários. Os camponeses, com os seus recursos limitados, agarraram-se firmemente ao novo começo. Mas esse era o ponto – os “meios limitados”. Como construir o socialismo num país pobre, com o desenvolvimento social reprimido pela autocracia czarista?
Uma leitura atenta de “Estado e Revolução” (1918) antecipa os problemas enfrentados pelos soviéticos na sua nova tarefa – eles não só podiam herdar a estrutura do Estado, mas também tinham de “esmagar o Estado”, construir um novo conjunto de instituições e uma nova cultura institucional, criar uma nova atitude dos quadros em relação ao Estado e à sociedade. Em abril de 1918, “As Tarefas Imediatas do Poder Soviético”, de Lênin, resume o trabalho dos primeiros meses e mostra que os soviéticos estavam bem conscientes dos problemas profundos que tinham de enfrentar.
A sua revolução não ocorreu num país capitalista avançado, mas sim naquilo que Marx chamou de “reino da escassez”. Aumentar as forças produtivas e ao mesmo tempo socializar os meios de produção era uma tarefa de proporções imensas.
“Sem alfabetização”, escreveu Lênin, “não pode haver política. Só pode haver boatos, fofocas e preconceitos.” Que recursos limitados existiam antes de o Estado soviético avançar para a alfabetização, com os quadros do partido determinados a garantir que iriam reverter o facto de que apenas um terço dos homens eram alfabetizados e menos de um quinto das mulheres. Entre a campanha do Likbez (de erradicação do analfabetismo) e a política de indigenização (korenizatsiya em russo; política pela integração de nacionalidades não-russas na União Soviética), o uso de línguas regionais e minoritárias, os soviéticos conseguiram – em duas décadas – garantir que os níveis de alfabetização subissem para 86 por cento para os homens e 65 por cento para as mulheres.
A centralidade dos trabalhadores e camponeses na construção da Rússia Soviética é muitas vezes esquecida (Mikhail Kalinin veio de uma família camponesa; Joseph Stalin veio de uma família de sapateiros e empregadas domésticas). A educação, a saúde, a habitação e o controlo da economia, bem como as actividades culturais e o desenvolvimento social foram o cerne do trabalho da nova Rússia Soviética, liderada por Lênin. Nenhuma quantidade de baboseiras da direita sobre a União Soviética pode apagar a imensa conquista deste Estado operário.
No último ano da sua vida, Lênin escreveu quatro textos formidáveis: “Sobre a Cooperação”, “Sobre a Nossa Revolução”, “Como devemos reorganizar a Inspecção Operária e Camponesa” e “É Melhor Menos, Mas Melhor”. Nestes textos, Lênin reconheceu as dificuldades no processo de transformação do capitalismo em socialismo. Ele escreveu sobre o “significado enorme e ilimitado” das sociedades cooperativas, a necessidade de reconstruir a base produtiva e de construir sociedades para aumentar a confiança das massas. O que Lênin indicou foi a necessidade de uma transformação cultural, de um novo modo de vida para os trabalhadores e dos camponeses, e de formas novas e criativas para os trabalhadores e camponeses terem poder sobre a sua sociedade e construírem a sua clareza na acção. Os trabalhadores herdaram a arquitetura de um Estado hediondo e este deve ser totalmente transformado. Mas como? A reflexão de Lênin em “É Melhor Menos, Mas Melhor” é ferozmente honesta:
“Que elementos possuímos para criar esse aparelho? Apenas dois. Em primeiro lugar os operários, entusiasmados pela luta pelo socialismo. Estes elementos não são suficientemente educados. Eles desejariam dar-nos um aparelho melhor. Mas não sabem como fazê-lo. Não podem fazê-lo. Até agora não alcançaram o desenvolvimento, a cultura que é necessária para isso. E para isso é necessário precisamente ter cultura. Neste aspecto nada se pode fazer de repente ou de assalto, com desembaraço ou energia, ou qualquer outra das melhores qualidades humanas em geral. Em segundo lugar, os elementos de conhecimentos, de educação, instrução, que entre nós são ridiculamente reduzidos em comparação com todos os outros Estados.”
Na sua última aparição pública – no Soviete de Moscou, em Novembro de 1922 – Lênin elogiou as conquistas da jovem República Soviética, mas também alertou sobre o difícil caminho a seguir. “O nosso partido”, disse ele, “um pequeno grupo de pessoas em comparação com a população total do país, assumiu esta tarefa. Este pequeno núcleo assumiu a tarefa de refazer tudo, e irá o fazer.”
Mas esta não é tarefa apenas do partido, mas dos trabalhadores e camponeses, que vêem o novo aparelho soviético como seu. “Trouxemos o socialismo para a vida quotidiana e devemos ver aqui como estão as coisas. Essa é a tarefa dos nossos dias, a tarefa da nossa época.”
A União Soviética durou apenas 74 anos, mas, nesses anos, fez experiências ferozes para superar a miséria do capitalismo. Setenta e quatro anos é a esperança média de vida global. Simplesmente não houve tempo suficiente para fazer avançar a agenda socialista antes da URSS ser destruída. Mas o legado de Lênin não está apenas na URSS. Está na luta global transcender os dilemas que confrontam a humanidade, avançando para o socialismo.
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