Chutando o Neocolonialismo: 50 anos sem Bruce-lee
Giovani Damico - Membro do Comitê Central e militante do PCB-BA
Nas últimas semanas a cena cultural brasileira foi presenteada com cópias remasterizadas dos filmes clássicos de Bruce-lee, como “Fist of Fury” (Fúria do Dragão), o Vôo do Dragão e Jogo da Morte. Entre gritos e grunhidos característicos até seus chutes espetaculares, os filmes marcaram toda uma geração e em especial um sentimento: a Luta contra o Neocolonialismo. Não à toa toda a produção de Lee rapidamente ficou conhecida como representante de um “nacionalismo chinês” que reposicionava o papel não somente do povo chinês mas de todos os asiáticos, rompendo os estigmas do "povo doente da Ásia", incutidos pelo colonialismo europeu e japonês.
Embora nascido nos EUA, em São Francisco-Califórnia, em um bairro conhecido como “Chinatown”, ou seja, um bairro segregado para imigrantes chineses e asiáticos, Lee era Natural de Hong Kong, onde foi criado. Em artigo publicado em 1981 nos Cadernos do Terceiro Mundo, o Moçambicano Sol Carvalho, ressaltou como os primeiros anos de carreira de Lee Jun-fan (que viria a se tornar Bruce Lee) foram marcados por apagamento no interior da indústria cinematográfica americana. Lee apesar de ter despontado muito cedo como um exímio lutador, bem como ator, encontrou muitas portas fechadas para sua carreira, sendo aceito apenas como treinador de atores brancos e americanos de renome na época. Tal cenário reforçava um papel histórico relegado a todos aqueles oriundos do terceiro mundo, o de seres humanos de segunda categoria (ou inferior).
O chamado “Cinema de Kung Fu” certamente teve Lee como figura central e icônica. Para além de todas as suas características que o destacavam, suas exímias habilidades marciais e grandes capacidades de ainda muito jovem e sem recursos, inovar e criar um gênero de atuação próprio, onde transformava seu corpo em um letreiro que dizia em alto e bom som: o terceiro mundo existe e não será esmagado tão facilmente! Lee conseguiu portanto, transcender a fronteira de seu corpo, suas artes marciais e cênicas, se tornando um ativo personagem político. Não à toa sua produção rapidamente chegou até Mao Zedong, então presidente da República Popular da China, em um contexto de forte isolamento da China, a ilha de Hong Kong, ainda sob domínio imperialista e neocolonial da Inglaterra, terminava funcionando como uma espécie de “ponte” entre a China e o mundo capitalista. A produção cultural de Lee, teve em Hong Kong, lugar para trazer ao mundo inteiro a visão de mundo do povo chinês, onde o retrato de uma Shangai dominada, ou dos povos chineses espalhados pelo mundo sendo quotidianamente humilhados, teria agora um novo vetor de comunicação “o jeito do dragão”, ou melhor dizendo, o mundo visto pelos olhos do terceiro mundo, e contra a dominação neocolonial.
"Tranquilo e Imbatível como Bruce Lee, virá que eu vi (Caetano Veloso)".
A obra de Lee foi recebida e aclamada pela crítica, a despeito das diversas tentativas de desqualificar suas competências técnicas, o sucesso era inegável. Neste contexto o diário do povo “China Daily” em 1974 narra como as obras foram trazidas para a China continental pelo então Ministro da Cultura Liu Qintang e ao serem assistidas por Mao a recepção não poderia ser outra: “Liu assistiu todos os filmes ao lado de Mao, que ficou bastante empolgado e irrompeu em elogios. Enquanto assistia “Fist of Fury” pela primeira vez, Mao exclamou emocionado “Bruce Lee é um herói!” enquanto explodia em lágrimas.” tal foi o relato do momento histórico, como trazido por Maria Eduarda Kashmir em artigo no Portal Centro Cultural Camarada Velho Toledo em 2015. Lee se tornava não apenas um herói para o povo chinês mas um ícone da resistência dos povos em luta, em especial no afluxo das lutas anticoloniais, como aquela construída pela FRELIMO em Moçambique, ou pelo MPLA em Angola.
Cinco décadas após sua misteriosa morte, Lee, que nos deixou em 1973 deixa também algumas perguntas no ar, e todo um sentimento de que aquele trabalho iniciado por seus esforços ainda teria muitos frutos a serem semeados e terreno fertil a ser ocupado. No Brasil, começamos a observar a existência de obras como Uma história de amor e Fúria, Bacurau e mais recentemente Novo Cangaço, ou até mesmo Cidade Invisível, que com todas suas contradições buscam reposicionar as narrativas sobre o Brasil. É latente o espaço de contradições a ser explorado no interior dos meios de cultura, seja ele no cinema, na literatura e nas artes em geral em nossa sociedade, sobretudo em meio a uma radicalização da barbárie capitalista em seu estágio neoliberal, onde vemos as velhas chagas do neocolonialismo cada vez mais expostas.
Retomar nos tempos atuais a tradição aberta com as obras de Lee, pode nos fazer repensar muitas questões do lugar do Brasil no mundo, como os BRICS figuram como uma possibilidade emergente de fazer avançar uma zona de disputa geopolítica que rompa com o tecido da dominação imperialista, ou ao menos que ajude a explorar novos potenciais criativos até aqui drenados pelas amarras da dominação do capital internacional. Não por coincidência, o Brasil e a China se mostram hoje lado a lado neste esforço, regado de contradições, de projetos de nação distintos, mas que se intercruzam no árduo processo de trilhar os rumos da construção de novas sociedades livres do neocolonialismo, onde o bem estar do povo trabalhador se torne regra, onde chutes e golpes de Kung Fu e capoeira, se tornem parte de mais torneios e escolas e vire lembrança de processos de resistência e libertação, todos estes passos para o futuro socialista.
Referências citadas:
Centro Cultural Camarada Velho Toledo: https://cccvt.amarighella.org/o-nacionalismo-ardente-de-bruce-lee-e-as-lagrimas-de-mao-tse-tung-um-encontro-inusitado/
Autora: Maria Eduarda Kashmir
O Cinema Kung-Fu: Alienação ou Anticolonialismo?
Cadernos Terceiro Mundo, nr. 32, 1981.
Autor: Sol Carvalho - Redator da Revista Tempo de Moçambique.
China Daily (Diário do Povo):
chinadaily.com.cn/life/2010-12/17/content_11716141.htm
Autor: Raymond Zhou
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