por Jeferson Garcia, membro da Coordenação Nacional do Coletivo Negro Minervino de Oliveira e militante do PCB-Maringá/Paraná.
Lá fora a chuva de esquecimento corre pelo asfalto, levando as lembranças dos vivos e mortos. O dia anda nublado, as sombras não são das árvores e a saudade visita as casas, uma a uma. A chuva cai, mas as plantas não crescem, os rios secam, as calçadas racham, as nuvens se juntam ao nevoeiro, formando uma cortina de apagamento. Os animais morrem de sede. A chuva contente ri. Esquecem de Amarildo, Claudia, Moise. Ninguém se lembra de Soledad.
Uma mulher abre um guarda-chuva, sabendo que a memória áspera é a única forma de manter os mortos vivos. Ela sabe que esquecer é uma forma macia e menos dolorosa de morrer aos poucos. Ela não quer a vida breve de todos esses sorrisos que andam nas sombras, nascidos da chuva, vestindo as calças da amnésia, construindo castelos de areia. Escreveu nomes em um papel de pão, dobrou e os guardou longe da enxurrada.
O dia dois de novembro é dia da celebração dos nossos mortos, um dia de defesa da vida, do direito de viver, bandeira de poucos que morreram pela vida de muitos, muitas vezes arrancada à mão. Nesse dia a memória é uma forma de resistir, de manter uma ligação com o passado – não como fazem os que querem negar o futuro, em defesa do atraso e da tradição – pois, “os mortos não morrem enquanto forem lembrados”, dizia Eduardo Galeano.
Os mortos esquecidos, apagados, sem rosto, sem flores, morrem duas vezes. A chuva de esquecimento derruba a árvore da verdade. Destrói os postes que iluminam os dias mais escuros. Mas a memória é uma casa que nos dá abrigo, em um dia de luto coletivo, por amor aos mortos que a chuva esconde. Alguns nomes se perderam nas sombras dos seus assassinos e o silêncio guarda o segredo dos poderosos, que escondem no passado as suas mãos molhadas com o nosso sangue. Victor Jara, João Pedro, Marielle. Ninguém se lembra de Soledad.
A água da chuva leva consigo o nome dos esquecidos, muitos nomes que nunca serão escritos ou contados. O esquecimento nasce dessa água, existem mãos banhadas com chuva. Os deuses, os anjos, os patrões e os senhores são os culpados.
Em Gaza, bombas, tiros e fome. Karim, Heba, Ahmed. A chuva é de esquecimento, mas também de impunidade. Hoje, os corpos descansam nas memórias de alguém, enquanto seus sonhos seguem vivos. É dia de visitar nossos mortos, escrever seus nomes nos papeis amarelados da história, pisar os pés nos cemitérios da memória morta.
A mulher escolhe uma flor amarela. Prefere mil vezes a saudade. Uma vela é acesa, flores se deitam, fotografias são colocadas sobre o túmulo. Alguns tentam com eles se comunicar, encontrar respostas ou carinho. A mulher olha e pensa: superar a perda? Talvez nunca, pois a noite é lenta e a dor é um carma dos que dizem não ao esquecimento.
De todas as tradições religiosas, há quem leve bebidas e alimentos, mensagens e perguntas, buscando saber o que os mortos têm a dizer.
Talvez eles gritem os nomes de seus algozes, ou do amor escondido, do vento escuro, do tempo perdido. Quem sabe nos alertem do futuro inseguro. Uma coisa é certa, eles têm muito a nos dizer. É certo que nem sempre estamos prontos para ouvir, pois temos medo, temos certezas demais, temos dúvidas de menos.
Mas é dia de combater a amnésia, o silêncio, é dia de sentir o sabor dos nomes, outrora esquecidos, na ponta da língua. É tempo de dar um aviso à chuva: não esqueceremos.
Lá fora os primeiros raios de luz nascem, tímidos. É tempo do sol da memória, não apenas por tristeza, mas para celebrar a memória. Para que as plantas cresçam, que se sinta o cheiro da flor de laranjeira, para que dos rios se formem nuvens, que os pássaros alcem voo, para que esqueçamos o alarme do relógio, para que se ilumine o horizonte sem a chuva que ri nas nossas costas e, como diz o poeta, para que do túmulo dos nossos floresça um punho.
Que o sol da memória incentive as lembranças a saírem de casa, tirando do esquecimento os mortos que a chuva esconde. Para que todos se lembrem de Soledad.
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