Comer é um direito, cozinhar é um ato de resistência: a luta contra o fast food
Recentemente, foi noticiado pela grande imprensa uma entrevista dada pelo presidente da empresa iFood, Fabrício Bloisi, em que ele afirma que “em 10 anos ninguém vai mais cozinhar”. O CEO indicou que a empresa trabalha com a projeção de uma mudança de hábitos profunda na sociedade brasileira. O abandono do ato de cozinhar se daria tanto por fatores econômicos, quanto culturais. Cozinhar em casa, segundo ele, se tornará desvantajoso, assim como produzir suas próprias roupas.
A repercussão da afirmação foi grande e, por enquanto, negativa. Entretanto, ela acende um alerta sobre as formas cada vez mais agressivas com que conglomerados contribuem para o que digo que será a destruição de nossas raízes culturais, econômicas e sociais. Se o iFood vencer essa batalha em sua trajetória de afirmar sua brasilidade – tal como propagado na campanha da empresa durante o carnaval -, será a destruição daquilo que nos caracteriza enquanto brasileiros, nossas raízes, arraigadas em nossos hábitos socio-alimentares.
Comer é um direito humano básico, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal de 1988. No entanto, o acesso à alimentação adequada e saudável, infelizmente, ainda é uma luta coletiva de garantia pela sobrevivência e reprodução social. No Brasil e no mundo, milhões de pessoas passam fome ou encontram-se em diferentes níveis de insegurança alimentar. No contexto brasileiro, é especialmente nos territórios periféricos, morada de muitos dos trabalhadores do iFood, onde essa realidade se mostra mais cruel, com a persistência de desertos e pântanos alimentares.
A luta contra a fome e a insegurança alimentar é uma luta que se insere na superação das atuais formas de produção e reprodução da vida. Requer não apenas ações de curto prazo, tais como programas de assistência social e de abastecimento alimentar emergencial, mas principalmente esforços de longo prazo para promover a transição dos sistemas alimentares. Nesse sentido, pensar a disseminação de informações e a educação sobre o porquê deixar de cozinhar em casa, partilhar refeições, selecionar os alimentos e ter autonomia sobre as formas de se alimentar, preservando hábitos regionais alimentares, é parte dessas ações.
Nos últimos anos, a discussão sobre saúde e alimentação saudável ganhou destaque na grande mídia, há diversos programas televisivos exaltando o ato de cozinhar e de se alimentar. Nas redes sociais, cozinhar se torna trend. Entretanto, é preciso se perguntar: para quem esses programas são dirigidos? Até que ponto cozinhar em casa se tornou e se tornará um privilégio de classe?
Se o direito à alimentação é reconhecido enquanto um Direito Humano, palavras de ordem expressam a necessidade de ir além: cozinhar é um ato de resistência e revolucionário. É um ato que pode mudar a composição de uma sociedade, seus níveis de saúde, de sabedoria, de empatia através da comensalidade e, por que não, de felicidade. Contraste com a cultura do fast food, que, ao massificar e homogeneizar nossa vida alimentar, provoca a fordização dos hábitos alimentares. Prioriza a conveniência sobre a qualidade e a saúde. Ter o direito de cozinhar em casa é uma luta contra a velocidade da lógica do capital, que converte o nosso tempo de vida, de partilha e nossa possibilidade de escolha em mais lucros.
Luís da Câmara Cascudo mergulhou nas origens da alimentação brasileira. Desde as influências indígenas e africanas, até as contribuições europeias, traçou um panorama abrangente da complexidade gastronômica do Brasil. Seus estudos revelaram não apenas os ingredientes e técnicas culinárias, mas também os significados simbólicos e rituais associados aos alimentos e às práticas alimentares.
Cascudo afirmou em sua obra a importância da comida como um elemento central na construção da identidade nacional, refletindo as diversas influências culturais que moldaram a sociedade brasileira ao longo dos séculos. Suas pesquisas abordam uma ampla gama de temas, desde festividades populares até mitos e tabus relacionados à alimentação, oferecendo uma visão holística da tradição alimentar do povo brasileiro.
Nesse contexto, o direito ao ato de cozinhar é uma forma de exercer o direito à alimentação de maneira mais autônoma e consciente. E, por isso, é uma luta coletiva. Cozinhar não é apenas preparar alimentos, é uma escolha deliberada de ingredientes, métodos de preparação e valores alimentares. Ao optar por cozinhar, as pessoas assumem o controle de sua alimentação, afastando-se da dependência de alimentos altamente processados e industrializados que caracterizam a cultura do fast food.
O fast food, com suas cadeias globais e menus padronizados, representa a antítese do ato de cozinhar em casa. Ao promover uma cultura de conveniência e consumo rápido, contribui para hábitos alimentares pouco saudáveis, incluindo o consumo excessivo de gorduras saturadas, açúcares refinados e calorias vazias. Além disso, está associado a uma série de problemas de saúde, como obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e outros distúrbios metabólicos.
A luta contra o fast food é uma batalha que vai além das escolhas individuais de alimentação. Envolve a construção de um projeto nacional de soberania alimentar, ambiental e econômica. Seu modelo de negócios é baseado na maximização do lucro, em geral, à custa dos direitos dos trabalhadores, da saúde pública e do meio ambiente.
Em nome de uma suposta conveniência e, certamente do lucro, a produção em larga escala de carne e produtos agrícolas, sustentadas por condições de trabalho cada vez mais indignas em cadeias de suprimentos que promovem e permitem a produção dos alimentos que abastecem as redes de fast food, questões sociais e ambientais urgentes de nosso tempo, são agravadas em escala alarmante.
A luta contra o fast food, entretanto, não é uma batalha perdida. Em todo o mundo, pessoas têm se mobilizado coletivamente em movimentos e iniciativas que promovem a necessidade de fazer valer o direito à alimentação saudável. Com campanhas de conscientização sobre os impactos do fast food até iniciativas para promover alimentos locais, sazonais e agroecológicos, cobram o necessário pacto para desafiar sua hegemonia e sua lógica em favor da promoção de uma cultura alimentar vinculada às culturas alimentares particulares, dentre elas, a brasileira.
Junto a esse debate, é fundamental não deixarmos de lado a necessidade de repensar o ato de cozinhar em outra perspectiva que supere a divisão sexual do trabalho nas relações do trabalho reprodutivo. O desafio do nosso tempo é ao mesmo “reivindicar” o direito a termos tempo para cozinhar e superar a lógica da reprodução das relações desiguais nas relações de gênero. Não cair na romantização das relações do ato de cozinhar e seguir reproduzindo a atual divisão social do trabalho.
Comer é um direito humano fundamental, mas cozinhar em casa ou na comunidade vai além disso; é um ato que desafia a cultura do fast food e promove uma alimentação saudável e sustentável. A luta contra o fast food é uma luta por justiça alimentar, social e ambiental. Requer engajamento social na criação de um sistema alimentar que respeite e garanta o direito à alimentação a todos nós, e não só a quem pode pagar.
É urgente e necessário que, por um lado, lutemos pela construção de políticas públicas de estado que atuem fortemente na transição dos sistemas alimentares, permitindo o acúmulo de força das organizações populares na construção de sistemas populares de abastecimento alimentar. Por outro lado, é preciso criar formas de regulamentação desses conglomerados empresariais que cada vez mais monopolizam os sistemas de distribuição e agora vem atuando no sistema de fast food.
Beto Palmeira: Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores
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