Por Antonio Leandro Fagundes Sarno para O Momento
As comunidades quilombolas são também conhecidas como “Terras de Preto”, “Comunidades Remanescentes de Quilombos”, “Quilombos”, “Comunidades Negras Rurais”, “Terras de Santo”, “Mocambo” e “Terras de Pobre”. Designam grupos sociais descendentes de africanos escravizados trazidos para o Brasil que conseguiram resistir e se rebelar contra o sistema escravista. A origem da palavra está no aportuguesamento da palavra “kilombo”, de origem Quimbundu e “ochilombo”, de origem Umbundu, dos povos Bantos da África que, ao enfrentarem o sistema que os explorava, formaram territórios independentes, tendo como símbolo de autonomia, liberdade, resistência e diferenciação do regime de trabalho escravista, o trabalho exercido de forma coletiva (Berger, 2008). Assim, antes de qualquer representação que se faça sobre esses territórios estigmatizados, as comunidades quilombolas são um enigma justamente por serem contrárias ao modo de vida capitalista. Dessa forma, defendem a manutenção dos valores coletivos como elementos fundamentais para a existência do grupo.
Com a falsa abolição da escravatura no Brasil em 1888, foi implementado um regime de exclusão racial organizado, por meio de uma legislação cruel que fortaleceu apenas a concentração latifundiária e continuou reduzindo a população negra à condição de sujeitos sem direitos. Para compreendermos a existência das comunidades quilombolas em sua totalidade, é necessário deixar de lado a visão colonialista e capitalista, além de evitar selecionar aspectos específicos e isolados que impeçam uma visão mais ampla dessas formações vivas, históricas e comunitárias.
Na cidade de Poções, localizada no Sudoeste baiano, há cerca de 451 km da capital Salvador, as comunidades quilombolas “Lagoa do João”, “Pimenteiras” e “Vassouras” não se comportam de forma diferente dos demais Quilombos brasileiros, embora possuam algumas características culturais próprias, frutos de um processo de resistência contra a exploração nas antigas fazendas, comércio e residências de escravocratas locais. O seu canto, o seu reisado, a sua religiosidade e o samba de roda causam uma espécie de transe naqueles que participam ou assistem, como se fossem uma celebração da tão sonhada liberdade negada aos seus ancestrais. Mas, para além dos seus aspectos culturais, as comunidades quilombolas de Poções–BA ainda mantêm uma coletividade viva como fundamento da sua resistência, uma conexão sagrada com valores dos antepassados vindos da grande Mãe África.
A sua cosmovisão é apresentada e representada no cotidiano, mesmo sem conhecerem quaisquer informações sobre suas origens étnicas: Bantos, Iorubás/Nagôs ou Jejes, já não sabem mais. São agora todos/as camponeses/as negros/as ligados/as por uma coletividade ancestral e por um passado de escravidão. Nestas comunidades, as mulheres também ocupam funções de comando em suas associações e são responsáveis por decisões importantes, já que várias etnias africanas eram matrilineares (sistema de filiação em que somente a ascendência materna é levada em conta) e matriarcais (sistema em que a organização social, econômica, política e cultural é formada e criada por mulheres).
Também há uma evidente tolerância religiosa nas comunidades de Poções–BA, pois mesmo que lá existam quilombolas católicos ou protestantes (evangélicos), elas fazem parte do “Movimento Consciência Negra Todo Dia” com outros quilombos e diversos Terreiros de Candomblé e Umbanda da região. As outras comunidades quilombolas que também fazem parte deste movimento negro organizado, são: “Água Doce”, da cidade de Anagé–BA; “Mumbuca” e “Segredo”, ambas da cidade de Bom Jesus da Serra–BA; “Lagoinha de São Bento”, da cidade de Nova Canaã–BA; “Cinzento”, da cidade de Planalto–BA e “Barrinha”, da cidade de Bom Jesus da Lapa–BA. Nas reuniões deste movimento são discutidas questões importantes como o combate ao racismo e à intolerância religiosa, assim como o fortalecimento dos Quilombos e Terreiros enquanto luta de contracolonialidade. A colonialidade não se reduz apenas à classificação sócio-racial, visto que ela marca o seu próprio modo de produção, formando uma relação intrínseca entre racismo e capitalismo (Nascimento, 2020).
Surgindo no período da escravidão, as comunidades quilombolas de Poções–BA somente foram reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares (2011), através da Portaria n° 91, de 17 de junho de 2011. Nenhuma delas foi titulada pelo Estado brasileiro, apesar da determinação constitucional sobre o reconhecimento de terras quilombolas, prevista no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT (Senado Federal, 1988). Ainda que a atual legislação favoreça o reconhecimento dos direitos territoriais dessas comunidades tradicionais, o seu descumprimento pelo próprio Estado, permeado por uma inércia que parece proposital, é nítido. A impressão que nos deixa é que a simples ideia de um campesinato negro exercendo a propriedade de terras de forma coletiva afronta a noção de propriedade privada e quebra estigmas deixados aos afrodescendentes. Com isso, só resta ao povo negro o exercício da mão de obra dentro da exploração capitalista, amargando o pauperismo num grande exército industrial de reserva, além da errância nas periferias ou mesmo em presídios (Nascimento, 2020).
A verdade é que as comunidades quilombolas são formadas por uma gente brasileira simples e com a Mãe África no seu DNA, abandonadas pelo Estado brasileiro e excluídas de quaisquer processos de discussão de políticas públicas, mas que existem e resistem em meio ao abandono proporcionado pelos interesses da classe burguesa, sempre operante localmente. Um quadro social de total abandono no que diz respeito aos direitos, sem acesso ao saneamento, à moradia digna, à mobilidade rural e urbana, à segurança, às políticas de educação escolar quilombola, inclusive à saúde. Em meio às constantes dificuldades da vida, são sempre solidários aos/às “irmãos/ãs” quilombolas de outras regiões da Bahia e de outros Estados, compartilhando o medo dos constantes conflitos pelos territórios. Sofrem pelas comunidades quilombolas que ainda passam por violência física, psicológica e moral, da iminência de serem expulsos de suas terras, das ameaças, do racismo ambiental e até mesmo de assassinatos, como no caso recente da Ialorixá Bernardete Pitanga (Mãe Bernardete), do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho–BA (Poder 360, 2023).
Enquanto o modo de vida e a produção capitalista normalizam a compra do tempo de trabalho, do bem-estar social, da moradia digna, da educação e saúde, nos territórios quilombolas de Poções–BA e região, a coletividade é uma regra de ouro inquebrável, pois dela dependem a sobrevivência do seu povo e a manutenção de sua cosmovisão. Antes, quando povo escravizado, os seus ancestrais lutavam por uma carta de alforria e, hoje, estas comunidades lutam por uma carta de reconhecimento da Fundação Cultural Palmares e pela publicação de uma portaria de delimitação de seus territórios pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.
Nestas comunidades, que preservam grande parte da cosmogonia africana, as teorias burguesas do direito dão lugar aos valores de uma sociedade onde o bem-estar coletivo é fundamental, em que as pessoas se reconhecem e reconhecem os seus lugares de fala, de ação e de escuta. Deve ser por isso que é muito comum ver nas reuniões pessoas compartilhando a mesma mesa para discutir ações e direitos, materializando a justiça de congraçamento entre passado, presente e futuro. Ali ainda arde uma chama viva de Palmares. A maioria dos seus conflitos internos é resolvida entre eles, quando a paz é selada pelos mais velhos.
Nesses territórios e longe da visão colonialista, é possível encontrar gente sendo gente, batendo um bom papo no terreiro em frente da casa e com um cachorro caramelo debaixo do banco de madeira. Os quilombolas da Lagoa do João, Pimenteiras e Vassouras alimentam muito mais que a consciência de classe e raça, pois nutrem a consciência de ser gente, de fazer parte do coletivo e do cosmos. Lá ainda é possível buscar uma xícara de café, de farinha, arroz ou feijão na casa do vizinho, compartilhando aquilo que possui. É lá que as crianças brincam no quintal quando chegam da escola, sentindo o cheiro do amor ancestral na cozinha. Para essas comunidades quilombolas, nem a terra e nem o tempo são mercadorias, aliás, o tempo é para compartilhar com os mais velhos e com as crianças. Deve ser por isso que lá, o tempo parece não passar e, se passa, passa muito devagar. Quando a revolução comunista chegar, com certeza terá como pano de fundo um samba de roda quilombola.
Referências
Berger, Marc. O Quilombo: forma de resistência histórica dos escravos. Alemanha: GRIN Verlag, 2008.
Fundação Cultural Palmares. Poções – Quilombos Lagoa do João, Pimenteiras e Vassouras. 2011.
Nascimento, Luís Eduardo Gomes do. Os Quilombos como novos nomos da terra: da forma-valor à forma-comunitária. Brasil: Dialética, 2020.
Poder 360. Líder quilombola é assassinada na Bahia. Disponível em: https://www.poder360.com.br/justica/lider-quilombola-e-assassinada-na-bahia/. Publicado em 18 ago. 2023. Acesso em 11 jan. 2024.
Senado Federal. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT. 1988. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/604119/publicacao/16434816. Acesso em: 11 jan. 2024.
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