Considerações sobre a guerra
Por Rômulo Caires, publicado orginalmente no jornal O Momento
Vimos, no último mês, uma enxurrada de opiniões e análises sobre a temática da guerra, muito influenciada pelos acontecimentos na Ucrânia. O que salta aos olhos à primeira vista é a construção midiática da Guerra, invocando toda espécie de argumento para a crítica da violência em si e a defesa imediata da paz como solução definitiva. Neste texto, nos propomos a apresentar a seguinte tese: não existe A Guerra; isto é, existem guerras em particular, situadas historicamente e respondendo a conflitos concretos postos pela sociedade em questão. Para tanto, nos utilizaremos de reflexões clássicas e contemporâneas feitas dentro do campo revolucionário, a fim de indicar uma propedêutica para pensar as guerras e sua vinculação direta, em nossos tempos, aos conflitos gerados pela dinâmica da luta de classes em escala internacional.
As diferenças essenciais entre os socialistas e os pacifistas são a compreensão de que as guerras estão umbilicalmente ligadas à luta de classes no interior do país, e o entendimento de que é impossível suprimir as guerras sem suprimir as próprias classes sociais no processo de edificação do socialismo. Além disso, os socialistas reconhecem o caráter legítimo, progressista e necessário das guerras promovidas pelas classes oprimidas contra as classes opressoras. Nesse sentido, não basta, para os marxistas, negar em abstrato o caráter de uma determinada guerra sem antes estudar todo o processo histórico que teve como resultado esta ou aquela guerra em particular, diferenciando o conteúdo de classe que está envolvido nela.
A importância desses apontamentos iniciais reside no fato de que nem toda guerra situada no interior do conflito de classes tem caráter regressivo. Pensemos nas guerras promovidas para destruir instituições nocivas e reacionárias, como as diversas guerras de libertação nacional ocorridas nos séculos XIX e XX; ou nas guerras que possibilitaram o fim de instituições bárbaras, como a escravidão nos Estados Unidos da América. Pensemos, ainda, nas guerras revolucionárias que varreram as instituições feudais na Europa ocidental, ou nas guerras revolucionárias que possibilitaram a edificação do socialismo na Rússia e na China.
Ao se equiparem todas as guerras com o mesmo rótulo abstrato, podemos cometer ao menos três equívocos, que estão diretamente interligados: o primeiro é confundir a violência do oprimido com a violência do opressor; o segundo é mistificar, ocultar e desviar o fato de que as classes opressoras promovem, diuturnamente, uma guerra contra os trabalhadores e povos oprimidos; por último e não menos importante, é não sermos capazes de perceber a necessidade econômica e estrutural da guerra como promotora da acumulação capitalista, do imperialismo e da reprodução da sociedade burguesa, ao recusarmos a análise materialista desta guerra.
A crítica da violência enquanto tal tem sido, nos últimos tempos, um locus fundamental da análise de recorte liberal. Supõe-se que a essência da realização social está na conformação dos indivíduos enquanto seres dotados de razão e dispostos a negociar ou constituir contratos que estabeleçam as regras necessárias ao bom funcionamento da sociedade. O problema, então, estaria na “polarização”, nos “extremistas” e naqueles que não estariam dispostos a compreender o outro enquanto igual em direitos e deveres. A liberdade assume, assim, um mero caráter formal e destituído de qualquer concretude histórica, sendo um dever-ser que todos precisam almejar, independente de qualquer condição material.
O que é recalcado neste tipo de formulação é a própria história real do liberalismo, ou seja, como ele se desenvolveu na prática enquanto ideologia fundamental da sociedade burguesa, com o intuito de apagar as próprias contradições e se levantar enquanto teoria “neutra” e “democrática”. A história concreta do liberalismo é também a história da barbárie colonial, da justificação das opressões a partir de critérios de quem seriam os verdadeiros humanos e quem estaria fora deste local e poderia, portanto, ser condenado ao extermínio.
Lembremos como o liberalismo justificou a escravidão nas colônias e justifica até hoje a rapina e a espoliação das classes trabalhadoras. Ao colocar qualquer recusa destes “falsos-universais” criados pelo liberalismo, ou a recusa daqueles que sofreram na pele a opressão do colonialismo e do capitalismo como “violência”, visa-se impedir que os oprimidos possam se defender da real violência que sofrem e que possam se organizar para modificar radicalmente a sociedade atual.
Não precisamos ir longe para perceber o caráter de guerra promovido constantemente pelas classes dominantes, como por exemplo, pela burguesia interna do Brasil. A própria formação e reprodução do capitalismo foi – e é – marcada pela violência mais brutal. Marx denunciava em sua obra magna como a ideia de uma “acumulação primitiva”, que seria realizada pelos meios mais idílicos (como através do trabalho perseverante e pela poupança de recursos), na verdade, se constituía numa mitologia da origem do capitalismo. O fato é que o capitalismo se formou a partir da rapina, da destruição de povos originários, de guerras de invasão, de massacres e de escravidão.
O Estado, este ente considerado pelos ideólogos da burguesia como uma instância acima dos conflitos e responsável pela mediação dos diversos interesses em jogo na sociedade, se formou enquanto aparato de dominação de classe e sempre foi responsável pela justificação da violência contra os trabalhadores e setores oprimidos da sociedade. Pois é o Estado brasileiro responsável pelas violências diárias mais absurdas, pelo encarceramento massivo da população negra, pelo extermínio puro e simples daqueles que não são considerados suficientemente humanos para exercerem direitos básicos de existência. No Brasil, vivemos uma verdadeira guerra civil disfarçada de política de segurança pública.
Ao pensarmos o desenvolvimento do capitalismo e suas condições estruturais de violência, não podemos esquecer de uma transformação fundamental ocorrida no fim do século XIX e início do século XX, chamada por Lênin de “fase superior do capitalismo”. Trata-se do imperialismo e sua tendência imanente de promover os conflitos interestatais em prol da repartição do mundo, da manutenção artificial do capitalismo, dos monopólios e das opressões nacionais de toda espécie. A própria indústria da guerra é um componente fundamental do imperialismo e uma das condições econômicas fundamentais de sua existência. Essa dinâmica tornou-se ainda mais radical nas últimas décadas, com a substituição do chamado Welfare State (estado de bem-estar social) pelo Warfare State (equivalente a “estado de guerra”).
Hoje, os EUA são responsáveis por mais da metade dos gastos com armamentos no mundo, com mais de 800 bases militares espalhadas pelo globo, e produzem uma verdadeira “teologia de guerra” ao se colocarem como “Nação Escolhida” para representar a liberdade e levá-la aos outros países do mundo, processo também conhecido como “imperialismo dos Direitos Humanos”. Além de salvaguardar os enormes lucros da indústria armamentista ao promover conflitos artificiais e invadir outros países, os Estados Unidos garantem uma cortina de fumaça à sua população sobre as graves contradições internas no país.
A guerra, em qualquer lugar, tem a função de dirimir as oposições ideológicas e promover uma falsa ideia de unidade nacional. Falsa, dentre outras coisas, porque sabemos quem é que se torna bucha de canhão nas trincheiras de guerra e não é reconhecida como autêntica produtora da riqueza social: a classe trabalhadora.
Nesse sentido, a tradição marxista nos convoca a pensar criticamente a temática da guerra, vinculando diretamente as origens das guerras em nosso tempo com as contradições e conflitos promovidos pela luta de classes. Faz-se necessário, antes de qualquer coisa, estudar profundamente as regiões em conflito, analisar as diversas forças atuantes e buscar sempre o vínculo com a totalidade da produção social.
Precisamos apontar com toda firmeza o vínculo das guerras com as condições reprodutivas da sociedade capitalista e defendermos a superação desse modo de vida, como únicas condições da verdadeira paz. Certamente, esta não será a supressão de qualquer conflito, aos moldes de um sonho religioso; mas, sim, a supressão da maior violência existente: a violência das classes sociais.