Contribuições de Marx e Engels para o campo da ecologia

Contribuições de Marx e Engels para o campo da ecologia

Por: O Poder Popular ·

Por Mariana Frucht - militante do núcleo UJC UFRJ, estudante de Ciências Biológicas.

A ATUALIDADE DA ABORDAGEM DOS CONCEITOS DE “METABOLISMO”, “FALHA METABÓLICA” E “CO-EVOLUÇÃO” DE MARX E ENGELS PARA O CAMPO DA ECOLOGIA E SUA CONEXÃO COM A ALIENAÇÃO DO TRABALHO

Quando se fala do legado teórico de Marx, é enfatizado o viés da análise econômica de sua obra e pouco se fala e se aproveita sua grande contribuição para o campo da Ecologia no geral, mas até mais especificamente à Agroecologia que se pretende crítica. Além de que, toda sua elaboração de pensamento em relação ao campo da Economia Política, por exemplo seu conceito de “alienação do trabalho”, esteve diretamente baseado no entendimento de uma relação que ele sintetizou em um outro conceito, o de “metabolismo” (MARX, 2013 p.102). Este conceito o possibilitou entender a “falha metabólica” (MARX, 2017 p.943) produzida pelo e durante a implementação do sistema de produção capitalista, sendo esta a verdadeira raiz do processo que possibilita, aprofunda e reproduz a alienação do homem de seu trabalho. Esses dois conceitos, o de “metabolismo” (Stoffwechsel) e “falha metabólica” o levaram a uma crítica avançada do ponto de vista, tanto da época, quanto atual, da degradação ambiental.

Marx viveu no século XIX, era um materialista (corrente de pensamento que se opõe ao idealismo) e fez uma leitura crítica das formas de sociedade, tanto as passadas quanto a vigente, na qual mais se aprofundou, a sociedade a capitalista. Para pensar o processo de surgimento da configuração deste modo de produção capitalista, teve que entender como ele se desenvolveu e por quê. Marx teve bastante contato com a obra de Darwin, que possuía um entendimento filosófico de concepção materialista da natureza que muito o influenciou, chegando a afirmar que “a teoria da seleção natural de Darwin forneceu ‘a base na história natural para a nossa visão’”. Foi introduzido, a partir dos estudos do biólogo, ao conceito de co-evolução, que veio a contribuir demais para o desenvolvimento de sua análise acerca da dinâmica dos seres humanos com o planeta terra (FOSTER, 2005 p.287). Ele também divergia da concepção religiosa sobre o surgimento da espécie humana, de uma divisão divina entre os seres humanos e as outras formas de vida no geral, e, finalmente, também divergia do entendimento teleológico de evolução (FOSTER, 2005, p.121-123). Além disso, fez uma leitura, sustentada no materialismo, de que somos seres sociais porque somos, antes de tudo, seres que para se manterem vivos, precisam de recursos que sustentem e deem continuidade à essa existência. Ou seja, precisamos de água, comida, abrigo; precisamos de recursos externos a nós. E, por isso, talvez esses sejam os conceitos-chave, basilares e primários para o começo da compreensão do quanto o pensamento que originou seu método de análise, o materialismo-histórico-dialético, e todo sua contribuição teórica e prática a partir disso para os mais diversos campos do saber, inclusive (e talvez principalmente) para a Ecologia, foi e é radicalmente revolucionário.

Primeiramente, em uma tentativa de elucidar a interdependência entre os seres humanos e a natureza, Marx entendeu que somos natureza, fazemos parte dela. Não existe uma separação fundamental entre o “natural” e o “social”, uma vez que os indivíduos que formam as sociedades são natureza (MARX, 1982, p.5). O que existem são esses seres e suas formações sociais interagindo e modificando o meio ao seu redor, que ao ser modificado, acaba os modificando de volta. E o processo dessas sociedades, a partir de suas bases materiais, interagirem com essas bases materiais que as originaram (a então chamada “natureza”), gerando novas condições basilares, que logo modificam a sociedade já modificada pela prévia interação, de novo e vice-versa, nesse ciclo dialético, não acaba e ocorre a todo momento. Ou seja, os seres humanos e as sociedades em geral não são completamente determinadas pelas condições naturais (ou bases materiais), há uma autonomia relativa para "mudar de direção". Porém, isso não nega a interdependência do homem em relação às condições materiais que existem como antecedentes, e das limitações que estas os impõem (FOSTER, 2005, p.30-31). Portanto, o que Marx faz é se referir à natureza de duas formas distintas, porém não conflitantes, ao longo de sua obra. Uma delas é a natureza enquanto tudo: os fatores bióticos e abióticos. E, em um outro sentido, se refere a esses fatores limitantes e externos aos seres humanos, mas basilares para as sociedades, no sentido não de opor “natural” a “social”, mas de diferenciar essas duas referenciações distintas, a fim de entender como o processo de sua interação forma e transforma, de diferentes maneiras, esse só metabolismo entre homem e natureza.

Para ele, é falsa e rasa discussão gerada quando é feita a oposição entre os “caçadores e coletores” (considerados pré-históricos, arcaicos) dos “sujeitos independentes por natureza” (o homem moderno), porque nesta distinção se traça a lógica de que são substancialmente formas de existência diferentes, quando, na realidade, o homem moderno não é “o ponto de partida da história civilizatória”, mas sim o resultado histórico coletivo do desenvolvimento, através do trabalho, das forças produtivas por esses que o antecederam (MARX, 1982, p.4). Além de que é apenas na aparência que se pode cogitar a independência do ser humano em relação à natureza; isso não se dá nem nunca se deu na prática ou na essência. Inclusive porque ser independente da natureza seria o homem ser independente dos outros seres humanos, pois as formações sociais são natureza. Uma contradição em si. Para Marx (1982, p.4): “O homem não é só um animal social, mas animal que só pode isolar-se em sociedade”.

Em Marx e Engels, o que diferencia a nossa espécie das outras formas de vida, o que caracteriza de certa forma a discrepância do “social” para o “natural”, é exatamente o trabalho (ENGELS, 2020 p.337-351). O conceito de trabalho seria para eles, então, a capacidade do ser humano de se apropriar dos elementos que os rodeiam (que pode se traduzir em uma das suas utilizações da palavra “natureza”) de modo a adaptá-los às suas próprias necessidades, transformando-os (MARX, 2013, p.188). O que difere a categoria complexa de trabalho humano em relação à capacidade de trabalho de, por exemplo, abelhas que constroem uma colmeia ou de formigas que constroem seus formigueiros, é a capacidade exclusiva da categoria do trabalho humano de, não mecânica e instintivamente atuar, mas a de elaborar estrategicamente o que irá se fazer antes da execução (MARX, 2013, p.188). Toda a riqueza material, todos os objetos inventados, roupas produzidas, comidas cultivadas (por exemplo, através de centenas de anos de dominação da agricultura e seleção artificial de sementes), etc., tudo isso consiste exclusivamente em materiais naturais, modificados ou possibilitados de chegarem até nós através do trabalho (histórica e socialmente desenvolvido e aprimorado). Ou seja, o ser humano pode, através das suas próprias ações afetar (mediar, regular, controlar, ...) sua relação com a natureza, mas a real atividade do trabalho, por sua vez, não é descolada do potencial de criação de riqueza da natureza (FOSTER, 2005, p.222).

E é exatamente esta relação de possibilidade de reflexão acerca da atuação, porém ainda sim submetida à relativa dependência dos fatores naturais, que configura para eles a relação metabólica entre os seres humanos e a natureza. Desta forma, Marx e Engels entendem o processo do trabalho como condição universal dessa interação metabólica, uma vez que, sem a ação das sociedades sobre o meio natural, esta não se reproduz ou fica restringida à sua forma primitiva, com acesso a recursos imediatos, absolutamente limitados e controlados pelos fatores naturais externos. Por isso o trabalho, em Marx, é a condição da existência humana imposta pela natureza (MARX, 2013, p.102). Antes do trabalho humano (sob a perspectiva de entendimento dessa categoria pelo pensamento deste autor), a natureza seguia firme e soberana, mas a partir do momento que desenvolvemos essa capacidade, ali então começa a interação metabólica entre a sociedade e a natureza: através do trabalho humano.  

A princípio, pensar a lógica de “fluxo circular ecológico” que o conceito de metabolismo traz, essa troca material e energética entre os seres humanos e a natureza, pode levar à impressão de que quando se fala de “ecológico”, refere- se à utilização atual do termo, que comumente associa “ecológico” à “sustentável”. Quando, na realidade, aqui se refere apenas à característica da interação, uma interação de cunho ecológico: relação entre fatores bióticos (e/ou abióticos). Este adendo se faz necessário porque o metabolismo formado na relação entre a sociedade e natureza, como se pode observar hoje em dia, por mais que tenha uma natureza profundamente cíclica e natural, não se dá necessariamente de forma equilibrada ecologicamente. É o que ele identifica quando propõe o conceito de “ruptura (ou falha) metabólica”.

Quando pensamos nos reconhecidos como os grandes pensadores, comumente os enxergamos como “gênios”, atribuindo a integralidade de sua obra aos mesmos, e não paramos para pensar em todas as contribuições prévias de outros grandes pensadores que foram suas referências, inclusive das diferentes áreas do conhecimento. Marx bebeu da fonte das diversas áreas do saber de sua época, e assim como leu o anteriormente citado Darwin, mais da área da biologia, ele também teve acesso aos escritos do grande químico agrícola, Justus von Liebig e do cientista Julius Robert Mayer (FOSTER, 2005 p.225). Ou seja, articulou suas reflexões a partir e incluindo, também, o pensamento de referenciados cientistas que implicaram no surgimento do campo da Ecologia moderna em meados do século XIX.

Mais especificamente, de acordo com Marx, para entender o desenvolvimento da agricultura capitalista, Liebig era mais importante que todos os economistas políticos juntos (FOSTER, 2005 p.37). Isso porque o estudo do químico sobre a circulação dos nutrientes do solo o ajudou a entender as raízes da chamada, pelos historiadores agrícolas, de "segunda revolução agrícola" (no período de 1830-1880, época que Marx estava vivo e pôde acompanhar). A chamada primeira revolução agrícola foi época do começo do cercamento dos campos e de algumas melhorias nos métodos de adubação, como com esterco. A apropriação (termo utilizado aqui no sentido mesmo de roubo) privada da terra se deu na Europa por esse processo de cercamento dos campos, promovido pela burguesia europeia, se intensificado no séc. XVI. Levou à contínua e crescente expulsão dos camponeses de suas terras, resultando na migração desses trabalhadores para as cidades para venderem sua força de trabalho nas indústrias têxteis. Por isso, com o processo dos trabalhadores agrícolas sendo expulsos da terra, obteve-se então maior espaço de pasto para gado, quando então se intensificou o uso de esterco para a tentativa de repor os nutrientes do solo que o crescimento e a intensificação da produção retiram, não permitindo que se re-estabeleçam de forma natural.

O deslocamento em massa, aliado à criação das estradas de ferro nas décadas de 1830 e 1840, como explica Foster (2005), modificaram toda a configuração dos territórios e da forma de vida daquela sociedade. Ali, no processo de nascimento do modo de produção capitalista, com a apropriação privada dos meios de produção (das terras) por uma pequena parcela da população que visava apenas o lucro, Marx aponta o surgimento do germe do que viria a se desenvolver de forma mais complexa; a dissociação sistemática entre as condições de base natural da existência humana, da própria existência. O início forçado desta dissociação se relaciona com o que ele vai chamar da precondição do capital, a “acumulação primitiva de capital” (MARX, 2013 cap.24), que cria e se nutre do antagonismo entre campo e cidade, social e natural. Isso a partir da expropriação dos camponeses, mas aliada a outros fatores também, como concomitantemente a articulação de legislações contra os dessa classe desprovida da posse dos meios de produção (no caso dos migrantes para a cidade, as fábricas), implementando as primeiras leis que rebaixavam os salários (MARX, 2013 p.524). Formou-se e forma, assim, não apenas condições precárias de trabalho, mas também um exército industrial de reserva (desempregados) nas cidades, que funciona até hoje extremamente bem para amedrontar os trabalhadores com o medo de serem demitidos (por saberem que tem muita gente lá fora querendo seus empregos), e para possibilitar o rebaixamento, cada vez mais, dessas condições de trabalho e dos mínimos direitos trabalhistas (MARX, 2013 p.366).

Já a segunda revolução agrícola, como seguiu descrevendo Foster (2005), se deu no período em que a preocupação ambiental na Europa era o pânico do esgotamento da fertilidade do solo, porque os métodos de adubação da época já não eram mais suficientes para sustentar o ritmo da agricultura capitalista. Por isso, foi caracterizada pelo despontamento dos estudos acerca da química de solos (porque até então, o conhecimento agrícola era limitado: a natureza da nutrição das plantas, as propriedades químicas do solo que eram pensadas como sendo fixas, etc.; elementos e relações que eram desconhecidas ou pouco/mal-entendidas), campo de trabalho e estudo de Liebig, aliada ao crescimento, por conta da demanda, da indústria de fertilizantes. Considerava- se que, somando esses dois fatores, o problema de obtenção de rendimento das lavouras estivesse solucionado, o que não foi o caso: a crise na agricultura que seguiu, na realidade, mostrou que avanços da ciência do solo naquele momento, utilizados daquela forma, intensificaram o problema ao longo do tempo (FOSTER, 2005 p.213). A ciência do solo, ainda hoje, mas de forma muito mais acentuada naquela época, pensava de forma atomizada a dinâmica de funcionamento dos solos. A curto prazo para questões, por exemplo, de falta de nutrientes específicos, o pensamento da química dos solos funciona perfeitamente bem como solução prática da reposição dos faltantes. Porém, ao longo do tempo, em grandes extensões de terra e com o entendimento que hoje possuímos da complexidade dos ecossistemas, de suas relações e interconexões, achar que a solução para o desequilíbrio gerado pela forma de produção capitalista se dará desta forma, é ingenuidade, como demonstra Marx ao trazer o conceito de falha metabólica. Não só porque a adição de um tipo de fertilizante específico para repor o faltante não necessariamente restaura processos e ciclos químicos e biológicos complexos que foram interrompidos e modificados, mas também porque, se em grandes extensões de terra esses nutrientes estão faltosos, nem sempre é possível a fabricação dos mesmos em laboratório. Muitas vezes e principalmente naquela época, o que ocorre e ocorria era a retirada destes nutrientes de outros territórios, como por exemplo o Peru, que sofreu com a intervenção colonialista que visava o guano (FOSTER, 2005 p.212-214), esterco de aves marinhas, fertilizante natural abundante no país. Rico em nitrogênio e fosfatos, o guano foi de interesse europeu nessa época pré- começo da segunda revolução agrícola, para a reposição desses nutrientes que a formação dessa nova dinâmica na agricultura retirava de forma linearmente crescente.

Pelo caráter antagônico da forma de produção capitalista com os ciclos naturais, ela gera a incapacidade da devolução desses nutrientes que são removidos incessantemente na forma do alimento e das fibras (MARX, 2013 p.379-380), e aliada à poluição das cidades e à irracionalidade dos modernos sistemas de esgoto, a expansão das grandes navegações daquela época possibilitaram a o colonialismo, que se tornava cada vez mais necessário para o funcionamento desse sistema de produção (LÊNIN, 2020). O modo de produção capitalista em nascimento na Europa precisava inerentemente se globalizar para ter seu pleno funcionamento sustentado, e só pensava de fato no benefício de parte do planeta, dos países do norte global, em detrimento dos países sul global, porque já não dava conta de ser um processo auto-sustentável nos territórios de onde surgiu. Isso possibilitou, então, uma análise mais profunda acerca de como esse metabolismo pensado por Marx viria a entrar em desequilíbrio no surgimento e implementação do modo de produção capitalista, que precisa do crescimento linear da produção porque visa apenas o crescimento linear do lucro para os donos dos meios de produção, dos detentores de capital, ou seja, dos capitalistas.

Isso porque o capitalismo se baseia na propriedade privada dos meios de produção, e estes podem ser instrumentos, ferramentas, utensílios utilizados no processo de produção, ou, então, como nesse caso, podem ser mesmo os próprios elementos da natureza (terra, água), que são e geram tudo que é modificado pelo trabalho; natureza essa que é e possui um potencial singular de criação de riqueza e dos meios de reprodução da vida em si (MARX, 2013, p.385). E essa dissociação sistemática entre sociedade e natureza teria, nesta época, germinado e florido tanto pela introdução da normalização da natureza enquanto objeto passível de apreensão por indivíduos (diferente da lógica das propriedades comunais), formando o grupo dos proprietários da natureza e os despossuídos dela (a maioria da população, que não tinha capacidade de comprar terra, tendo apenas sua força de trabalho para vender), quanto pela separação física da grossa parcela numérica da sociedade dos processos naturais para sua subsistência em níveis equilibrados, saudáveis e sustentáveis. Isso tudo levou a processos que culminaram na falha desse metabolismo, ou seja, à desarmonia entre a sociedade e os meios que possibilitam sua própria reprodução. Porque, a partir da visão dos elementos naturais enquanto única e exclusivamente recursos a serem explorados, a sociedade perdeu de vista os processos cíclicos aos quais pertence, afeta e é afetado.

Desta forma, a partir dessa visão utilitarista capitalista acerca dos elementos natureza (GUDYNAS, 2019 p.21), normalizamos a divisão entre natural e social, entre campo e cidade. Essa segunda divisão foi exatamente o que os estudos de Liebig apontam como o início do processo sistemático de espoliação da natureza, minando as condições de reprodução e fertilidade dos solos ao criar uma dinâmica de despachar os elementos constitutivos dos solos para longe de seu ponto de origem, com o transporte unilateral da produção do campo para a cidade (FOSTER, 2005). O químico apontou que este funcionamento agrícola continuado levaria à pobreza de nutrientes nos solos (FOSTER, 2005 p.214), e é o que a crise ambiental e climática nos ilustra de forma clara atualmente.

Hoje em dia, com o surgimento e amadurecimento do campo da Ecologia moderna, inclusive com os estudos na área da Agroecologia, estamos mais familiarizados com os conceitos ecológicos que pensam o planeta terra funcionando como um só organismo. O equilíbrio do funcionamento desse organismo, de forma que seja possível a continuação das condições climáticas que permitem nossa existência, possui seus limites em relação às oscilações dos sistemas ecológicos que o produz e reproduz. Mas, na época de Marx, o campo da Ecologia era ainda incipiente e o conceito de metabolismo em Marx foi inovador e mesmo hoje é de suma importância, pois possibilita o entendimento tanto da singularidade dos processos aos quais a espécie humana está submetida, quanto da forma que dialeticamente os afeta e transforma. Ou seja, explicita a dinâmica de, enquanto no processo de modificação (que é a todo momento), a automática modificação que sofre também, e vice-versa.

Não somos, pois, agentes “passivos”; temos a agencia de ação, de modificação, de transformação da natureza, e se negamos esta parte e pautamos uma visão ética/filosófica, ou antropocêntrica (GUDYNAS, 2019 p.20), baseada no entendimento das diferentes valorações da natureza (valoração cultural, econômica, histórica, estética, etc.), ou nas visões “ecocêntrica” ou “biocêntrica” (GUDYNAS, 2019 p.55-64) difusas, estamos nos furtando de abrir campos de diálogo, debate e construção acerca das especificidades das mazelas do capitalismo nos diversos grupos, nos diferentes lugares da terra de forma profunda e integral. Porque não é vergonha pautar a defesa da continuidade da existência da nossa espécie. Não caiamos na falsa ideia de “uma só humanidade” (KRENAK, 2019) coesa e, por conseguinte, destruidora e desbalanceadora dos ecossistemas terrestres. Essa unidade de humanidade não existe em si, o que existem são diferentes modos de produção e reprodução da vida, e atualmente o sistema global vigente que impera é o capitalista. Mas, a partir da práxis, que une teoria à prática, entendendo a dinâmica de funcionamento dessa interação metabólica dialeticamente interdependente, podemos construir um novo funcionamento para que esse metabolismo consiga funcionar de forma verdadeiramente sustentável, sem a exploração da terra, dos animais não humanos e do homem, pelo homem.

E talvez, até hoje, o pensamento que mais se aproxima da radicalidade aceito no campo da Ecologia seja o de “direitos da natureza”, ou mesmo de “valor intrínseco” dos elementos naturais (GUDYNAS, 2019 p.48-52). Mas, ainda sim, isoladamente essas visões não dão o salto epistemológico que o conceito de metabolismo de Marx dá, do entendimento profundo de que o social é natural, e, aliado a isso, o entendimento dessa relação dialética discorrida aqui. Essas visões que pensam os valores da natureza, que pensam a necessidade de uma valoração externa ou intrínseca de seus elementos, epistemologicamente, por mais que sejam entendimentos avançados e não dominantes no campo das ciências naturais, ainda tratam o conceito de “natureza” apenas em uma das camadas de referência que Marx faz ao conceito, o de pensá-la enquanto apenas o meio natural no qual estamos inseridos, enquanto objeto externo. Marx deu o salto epistemológico para o entendimento de que, na realidade, o social e o natural formam um só metabolismo.

Ele compreendeu a unidade e a inter-relação do “social” com o “natural”, por isso o que buscou pesquisar foi, na realidade, os motivos que levaram à falha no funcionamento desse metabolismo, que já naquela época acarretava no empobrecimento dos solos, mas que hoje consegue-se observar na crise climática global como um todo. Foi bem aí que Marx baseou a construção de seu apontamento do caráter alienado e alienante da sociedade burguesa, do sistema econômico de produção capitalista. Retomemos sua categoria do trabalho como a condição imposta à sociedade para sua manutenção e reprodução, e entendida enquanto a interação dos seres humanos que media a relação com, e transforma as bases naturais que os originaram e em que estes se encontram, nessa relação metabólica, porém limitada pela natureza. A partir do exposto, conseguimos entender a profundidade do conceito de “alienação do trabalho” que este pensador inaugurou, entendida mesmo enquanto alienação da natureza de si própria, a dissociação do homem em relação às próprias condições que o possibilita se produzir e reproduzir (MARX, 2013).

Pode-se traçar a relação com a situação da crise pós-segunda revolução agrícola, conjuntura que acabou por produzir na sociedade europeia dos grandes centros urbanos um descolamento imaginário entre campo e cidade, porque na prática, no geral, funcionam enquanto um só. Mas foi promovida a ruptura do entendimento do ser humano enquanto natureza, logo, possibilitou-se o errado entendimento de que o social está apartado do natural. No campo das aparências (MARX, 1974), se forja a impressão de que esse ciclo ecológico complexo poderia se dar de forma unilateral. Como, por exemplo, com a retirada dos alimentos produzidos no campo e transportados para a cidade, levando junto a possibilidade de retorno ao solo dos nutrientes que lhe foram retirados na extração do alimento. E, como vimos, mesmo quando os nutrientes são repostos, por exemplo com o esterco, se exaustiva e repetidamente não é dada à natureza o período de reposição natural dos seus componentes, não há tecnologia capaz de remendar o ciclo quebrado. Nem a emergência da química agrícola solucionou o problema que o ritmo de produção capitalista, que visa não a subsistência (que é cíclica e natural), mas sim o lucro (que precisa ser constante em seu crescimento linear), gerou. Pois a reposição dos nutrientes do solo e a estabilidade dos ecossistemas no geral, se dão através de processos ecológicos complexos, não temos pleno controle desses processos interconectados e complexos e não deveríamos aspirar o controle completo. É inviável e induz à ideia de que atingiremos, com as tecnologias, um nível de conhecimento total e finalizado algum dia, visão oposta ao entendimento dialético de que a todo momento tudo está mudando e nada é estático, ou seja, que continuamente se geram novas sínteses a partir das transformações incessantes do já existente. O que podemos e devemos aspirar é o máximo de conhecimento e domínio acerca dos processos, a fim de não ficarmos à mercê dos processos naturais, minimizando os imprevistos e calculando as possíveis consequências de nossas ações no funcionamento desse só metabolismo.

Consequentemente, a partir desse processo histórico-social que levou, no campo das aparências, à reprodução social da visão “rompida” da relação entre “social” e “natural”, a relação da sociedade (a princípio da europeia, mas que foi exportada e implantada à força em outras partes do globo com o colonialismo e imperialismo) com o trabalho é modificada. Porque a finalidade do trabalho passa a ser distorcido para ser então, não uma imposição da natureza para a sobrevivência do coletivo, mas sim uma forma dos donos dos meios de produção obterem lucro em cima do suor dos despossuídos desses meios de produção e reprodução da vida (MARX, 2013). Ou seja, por mais que a classe trabalhadora ainda hoje veja o trabalho, particularmente, enquanto forma de subsistência, porque precisam trabalhar para terem acesso a água, comida, casa, etc., esta é uma subsistência não naturalmente determinada, mas sim socialmente determinada. A relação do sistema capitalista com o trabalho não é a do trabalho enquanto condição imposta à sociedade para sua manutenção e reprodução material e concreta, mas sim como forma de obtenção de lucro. E esta é uma grande questão, pois se não entendermos os instrumentos de produção enquanto trabalho social e historicamente acumulado (MARX, 2013 p.99), podemos naturalizar a divisão entre classes sociais. O que houve foi um processo sistemático, ao longo dos séculos, de roubo para apropriação privada de terras que antes eram comuns, resultando em um mar de despossuídos e um grupo de possuidores de potencial gerador de riqueza (a natureza e os instrumentos de produção produzidos a partir dela, mas através do trabalho humano social e historicamente acumulado); não é nem nunca foi uma divisão natural. Precisamos ter essa clara leitura ao analisarmos o fato de que hoje em dia, no mundo, se produz alimento suficiente para alimentar toda população humana, mas, de acordo com a edição de 2022 do relatório The State of Food Security and Nutrition in the World, Sofi (Situação da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo), cerca de 828 milhões de pessoas foram afetadas pela fome e cerca de 2,3 bilhões de pessoas no mundo (29,3%) estavam em insegurança alimentar moderada ou grave, em 2021. Desta forma, o capitalismo vai aprofundando a alienação do homem de seu trabalho e do fruto dele, pois se trabalha para a manutenção do sistema, sistema esse que, em retorno, aliena cada vez mais o ser humano de sua relação com e enquanto natureza ao distorcer o trabalho, mecanismo que deveria aprofundar essa interação entre social e natural e não enfraquecê-la, como hoje o trabalho faz com a população que vive para trabalhar e por isso não tem tempo para mais nada além, principalmente para usufruir das delícias que viver poderiam e deveriam proporcionar; o inverso do natural, que é trabalhar para poder viver todas essas experiências facilitadas e garantidas pelo produto do trabalho humano. Logo, o capitalismo aliena o homem de si mesmo, da potência real da relação com o trabalho, e do fruto desse trabalho coletivo alienado.

Mas apesar de hoje em dia, no sistema capitalista, crises sistemáticas e globais serem mais por superprodução e não pela falta de recursos materiais (MARX, 2017), a sociedade ainda precisa e continuará sempre precisando sim do meio natural para sua manutenção e reprodução, e os avanços das ciências e tecnologias, por si só, não solucionam esta questão. Indo além, precisamos alterar este meio natural através do trabalho. Mas, para fazermos isso de forma honesta e sustentável, temos que nos apropriar do profundo entendimento de Marx acerca de que a produção, em si, já é apropriação. Não existe diferenciação no consumo no sentido de um tipo de consumo pensado enquanto negativo, destrutivo, e outro enquanto consumo positivo, aceitável e “consciente”. Isso porque é falsa a distinção entre produção e consumo; eles são indissociáveis. “A produção é também imediatamente consumo” (MARX, 1859, p.5). Ao pensarmos no funcionamento do metabolismo entre sociedade e natureza, pode-se citar aqui outro químico, o Antoine-Laurent de Lavoisier: “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Por exemplo, a morte de um organismo é, na verdade, alimento para outro, ou a degradação de uma rocha virando matéria orgânica possibilita algum processo químico, etc., e isso possibilita o entendimento de que não existe “jogar fora” dentro de um só metabolismo (MARX, 2013 p.192). Por isso, quando acumulamos e não tratamos os esgotos dos grandes centros urbanos e os despejamos no meio do oceano criando zonas mortas, em lagoas ou em lixões, estamos diretamente aprofundando a falha metabólica gerada pelo capitalismo.

A humanidade não é um bloco coeso e, na realidade, o problema da falha metabólica não se deve à quantidade de pessoas habitando o planeta terra, mas sim à dinâmica sistêmica de produção e econômica vigente, que causa desequilíbrio ecológico ao roubar do meio natural (ou alterá-lo), não devolver, ou devolver, mas não lhe dar tempo de se regenerar, interrompendo seus ciclos. Se não entendermos o caráter metabólico da relação humana com o meio natural que nos cerca, depois de passarmos por toda essa década de apontamentos da ciência nos mostrando que um colapso ambiental está por vir e já hoje encarando suas primeiras e fortes consequências, podemos facilmente cair no discurso ambientalista liberal difuso, no eco ou tecnofascimo (GORZ, 1977), ou mesmo em simplórios pensamentos socioecológicos que reproduzem a separação entre “social” e “natural”.

Para não cairmos em nenhuma dessas armadilhas teóricas, que mais tornam nebulosos os caminhos possíveis para lidarmos e solucionarmos os atuais entraves da deformidade dessa relação metabólica, é central a abordagem do conceito de co-evolução que Marx e Engels desenvolvem, integram e baseiam suas obras. Eles tiveram contato com o termo sendo usado por cientistas ao se referirem a processos puramente biológicos em organismos. Este contato deu a Engels entendimento para que fizesse uma análise julgada por cientistas naturais como sendo a melhor descrição do processo de co- evolução gene-cultura, com seu texto “O papel do trabalho na hominização do macaco”. A introjeção da ideia na forma de elaborarem, por mais que não estivessem nominalmente citando o conceito de “co-evolução”, é central porque deu às leituras deles o toque de não passarem pela negação nem exaltação de nenhuma parte isolada da interação metabólica entre sociedade e natureza; ao contrário, levam em consideração exatamente a própria dinâmica dessa relação. Não pautam uma visão que foca nos seres humanos e que, portanto, se cega para a materialidade concreta dos limites para produção e reprodução da nossa existência, ligado ao fato de sermos e precisarmos de fatores externos à nós, da natureza; mas também não correm para o outro extremo, ignorando os processos sociais e as questões complexas e atuais das particularidades de cada grupo e cada sociedade, caindo na armadilha de encarar o ser humano como “inimigo do planeta”, comparando-nos com formas de vida parasitoides ou algo do tipo. O entendimento do conceito de co-evolução que Marx e Engels tiveram e então aplicaram, compreende que a sociedade modifica a natureza e que por ela somos modificados, e não vê intrinsecamente um problema fundamental nisso.

Pauta uma visão mais ampla dos processos de interação socioecológicos como processos de mudança, inclusive porque, partindo do ponto de análise dialético da vida, entende-se mesmo que a cada momento está tudo mudando e o que muda interfere no processo posterior de mudança também. Desta forma, não existe estar vivo (mas nem mesmo elementos inorgânicos escapam) e não modificar o funcionamento do planeta terra de alguma forma, nem que a nível atômico. Acharmos que existe tal coisa como “não impactar” o ambiente no qual estamos inseridos é uma ilusão. Pelo já dito e porque “Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário.” (V. Lenin), nossa teoria não deve se limitar às visões menos complexas acerca da existência. Devemos entender os processos e as necessidades para a existência, reprodução e liberdade humanas, para que nossa ação no mundo esteja em conformidade com essas necessidades, mas de forma ecológica, plena e verdadeiramente sustentável. Sem negarmos a interação e alteração que causaremos, mas sim estando conscientes delas e seus verdadeiros motivos e finalidades.

"Que o homem socializado, os produtores associados, governem o metabolismo humano com a natureza de modo racional, submetendo-o ao seu próprio controle coletivo em vez de ser dominado por ele como um poder cego; realizando-o com o mínimo gasto de energia e em condições mais dignas e apropriadas à sua natureza humana" – Karl Marx (Volume 3 d’O Capital)

Assim, ao refletirmos sobre a relação do ser humano com o meio natural que o sustenta e que, em processo dialético, afeta e altera, os pensamentos tanto antropocêntricos quanto eco/biocêntricos não bastam. O campo das Ciências Naturais muito se enriqueceria, complexificaria seus entendimentos e aprofundaria possibilidades analíticas e imaginativas para o futuro, se se apropriasse do salto epistemológico da obra Marxiana e Engeliana, que datam de mais de um século atrás. Por que no Brasil as ciências biológicas, e talvez até mais especificamente o campo da Ecologia, não se apropriam das contribuições, entendimentos, leituras e abordagens desses autores acerca dos conceitos de “metabolismo”, “falha metabólica” e “co-evolução”, e também de todo arcabouço teórico e prático das leituras e abordagens de cientistas marxistas?

Referências bibliográficas:

ACOSTA, Alberto; “O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos”; São Paulo, Autonomia Literária, Elefante, 2016.

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