Decisão do STF sobre GCMs e tropa de Paes são passos para militarização, dizem especialistas
Catarina Duarte para a Ponte Jornalismo
Por 8 a 2, STF decidiu ontem (20/2) autorizar que GCMs façam patrulhamento ostensivo e executem “ações de segurança urbana”. Prefeito do Rio já havia proposto a criação de uma força municipal armada
Na semana em que o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda discutia a ideia de que as guardas pudessem atuar como policiais municipais, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), já avançava o sinal. Apresentou um projeto de lei para criar uma Força de Segurança Municipal. Agentes armados passariam a ter funções semelhantes às da Polícia Militar. Para especialistas ouvidos pela Ponte, as discussões sinalizam para uma segurança pública cada vez mais ostensiva e militarizada.
A Constituição de 1988 formalizou as funções das guardas municipais que, à época, já existiam em algumas cidades do país. A Carta diz que os municípios poderiam criar tais grupamentos para atuarem apenas na proteção de bens, serviços e instalações.
O Estatuto Geral da categoria (lei 13.022/2014), que também versa sobre as atribuições das guardas, já havia ampliado esse escopo. Conforme a legislação, passaram a estar entre os princípios básicos o patrulhamento preventivo e o uso progressivo da força. As guardas já integram o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), programa criado para integrar as forças de segurança pública do país.
Ao passo que a demanda social por segurança se torna cada vez maior, prefeitos passaram a usar as guardas municipais como plataforma eleitoral para tentar responder a essa reivindicação. Embebidos no militarismo, muitos gestores passaram a imitar símbolos das polícias, se apropriando até mesmo de equipamentos bélicos ou de serviço.
Cidades como Itaquaquecetuba, Campinas e Limeira distribuíram para a guarda carros-fortes semelhantes aos caveirões da Polícia Militar do Rio de Janeiro, sob a justificativa de combater o crime organizado. A cópia do modelo militarizado e seus símbolos não fica por aí. Também cresce a letalidade da corporação: um levantamento exclusivo feito pela Ponte apontou que guardas municipais mataram quase 200 pessoas nos últimos 7 anos só no estado de São Paulo.
Competência legislativa
O que os ministros do STF discutem desde 2010 é se os municípios teriam competência legislativa para instruir seus guardas a fazerem policiamento preventivo e comunitário. A matéria tem repercussão geral — ou seja, a tese definida pelos ministros passará a ser aplicada em casos semelhantes em todas as instâncias.
Luiz Fux, relator do caso, mostrou-se favorável a essa deliberação. A corte avaliou um Recurso Extraordinário apresentado pela Câmara Municipal de São Paulo contra uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que vetava um trecho da lei 13.866/2004. A parte em questão dava à guarda poder de fazer policiamento comunitário e preventivo para proteger bens e serviços — e também fazer prisões em flagrante por qualquer delito.
O TJ-SP considerou que a lei ultrapassou os limites do Executivo municipal, já que esse tipo de atividade seria exclusiva das forças policiais. A visão é distinta da apresentada por Fux. O ministro defende que precedentes da própria corte firmaram o entendimento de que a guarda faz parte do SUSP e que o policiamento de que a lei trata não equipara seu trabalho ao da polícia.
Dias Toffoli, Flávio Dino e André Mendonça acompanharam o voto de Fux. Já o ministro Cristiano Zanin votou pela rejeição da ação, já que a lei base do recurso foi revogada. No julgamento nesta quinta-feira (20/2), a maioria dos ministros votou a favor do recurso que autoriza que as guardas atuem em policiamento ostensivo. Os únicos votos contrários foram dos ministros Edson Fachin e Cristiano Zanin. Para ambos, havia necessidade de enfatizar os limites constitucionais da atuação das guardas.
A tese final validou a competência dos municípios para legislar sobre as atribuições das guardas: “É constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas guardas municipais, inclusive policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública, previsto no artigo 144 da Constituição Federal, excluída qualquer atividade de polícia judiciária, sendo submetidas ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público”.
Abordagem seletiva e racial
O advogado e pesquisador Almir Felitte diz que o julgamento no STF é, na verdade, um debate de política pública. “Isso é uma questão que tem que ser decidida pelo poder Executivo, que comanda suas polícias, pelo poder legislativo que vai estabelecer diretrizes policiais e não pela Suprema Corte”, sustenta Almir, autor de História da Polícia no Brasil: Estado de exceção permanente? (Autonomia Literária, 2023).
A decisão dos ministros, diz o pesquisador, abre brecha para que a GCM se torne uma policia no cotidiano, distanciando-se do caráter comunitário previsto pelo Estatuto.
“A guarda vai passar a simular o comportamento das polícias militares, que é baseado essencialmente na abordagem e que nós sabemos ser seletiva, completamente discricionária, que se estabelece em parâmetros raciais, em parâmetros de classe”, adverte.
O autor de História da Polícia no Brasil diz que o Estatuto das Guardas Municipais acabou sendo assimilado por vários prefeitos como a possibilidade de que cada um tivesse sua própria polícia, sem que várias diretrizes fossem respeitadas. O Estatuto, por exemplo, prevê a criação de ouvidorias e corregedorias externas. Prevê também que os guardas não podem ter treinamento com militares.
“O que nós vemos é uma sistemática desobediência a esse estatuto. O governo federal impôs o estatuto como lei, mas não impôs nenhum tipo de mecanismo para fazer essa lei ser implementada, de fato, nos municípios”, diz. Para Almir, o governo federal deveria assumir o protagonismo na segurança pública. Um dos caminhos seria implementar, por via orçamentária, diretrizes de policiamento comunitário nos municípios. Caso contrário, situações como a que ocorrem no Rio de Janeiro podem se tornar cada vez mais comuns.
‘Segurança privada’ de Paes
Na primeira sessão de 2025 do legislativo do Rio de Janeiro, Eduardo Paes apresentou à Câmara o projeto de lei que cria a Força de Segurança Municipal. Pela proposta, oficiais que deixaram os Centros de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército Brasileiro seriam contratados para executar policiamento preventivo.
A ideia do prefeito do Rio é que essa Força de Segurança atue em pequenos delitos cotidianos, mas não no combate ao crime organizado. A previsão é de que 4,2 mil agentes sejam contratados até 2028. Para a economista e diretora executiva da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), Giselle Florentino, o prefeito quer criar uma segurança privada.
“O que nós enxergamos é que esse projeto caminha junto com a ideia de segurança privada. Nós sabemos que aqui no Rio os empresários de segurança são também muito bem articulados com lideranças de milícias, inclusive alguns sendo donos de uma série de empresas de segurança privada da Baixada Fluminense. Nós vemos o Eduardo Paes apontar [com esse projeto] para a bancada da bala, construir uma relação com deputados e vereadores muito próximos desse grupo especializado”, afirma.
Giselle também critica o valor que será empenhado para pagar pela força. Segundo levantamento da IDMJR, a previsão de gastos públicos é de R$ 462,8 milhões — o equivalente a seis vezes mais do que é gasto com Direitos da Cidadania, três dos valores direcionados à geração de emprego e o dobro do orçamento disponível para a área de cultura.
“Nós sabemos que é um alto custo de expansão da militarização e que isso não vai refletir em segurança, mas, sim, em mais pessoas armadas andando pela cidade”, avalia.
Decisão já se reflete em SP
Após a decisão do STF, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), anunciou que mudará o nome da Guarda Civil Metropolitana (GCM) para “Polícia Metropolitana”. A declaração foi dada na manhã desta sexta-feira (21/2).
Nunes elogiou a decisão do STF e a chamou de “pancada contra a criminalidade”. “Deixa muito claro para todos os órgãos, o judiciário, para a sociedade, a competência da Guarda. Então, a gente vai ter hoje uma condição muito melhor de atuação, sem nenhuma dúvida quanto a esse tema. E a GCM de São Paulo já está muito bem armada, preparada, treinada”, declarou o prefeito.
Apenas em São Paulo, a GCM foi responsável pela morte de 43 pessoas, de 2017 a 18 de junho de 2024. Um dos casos mais emblemáticos foi a morte de Waldik Gabriel Silva Chagas, de 11 anos. A criança foi morta por um guarda civil em 2016, após uma perseguição no bairro Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo.
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