Desafio da resistência agora é passar a atuar unida contra a ocupação, diz Frente Popular para a Libertação da Palestina
Dirigente da entidade falou ao Brasil de Fato sobre o futuro da Palestina
Enquanto o frágil cessar-fogo tenta se manter vivo na Faixa de Gaza, ocorrem negociações sobre o futuro da Palestina, desde segurança, a reconstrução do enclave e qual o papel das lideranças políticas atuais na futura administração. Mediadores internacionais cataris e egípcios, entre outros, dialogam com os diversos atores políticos envolvidos em busca de uma solução considerada aceitável tanto por Israel e Estados Unidos quanto por grupos palestinos como o Hamas (que controla Gaza) e o Fatah (que governa a Cisjordânia).
Outro ator relevante é a Frente Popular para Libertação da Palestina (FPLP), grupo político e militar de esquerda fundado em 1967 e que atua na linha de frente da resistência armada. O grupo é um dos signatários do Acordo de Pequim, no qual diferentes grupos se comprometem a pôr fim a quase 20 anos de rompimentos e disputas internas, e priorizar os interesses do povo palestino.
A contenda explodiu em 2006, quando Hamas ganhou as únicas eleições presidenciais palestinas já realizadas, vitória esta que não foi aceita por Israel, EUA e União Europeia, que endureceram as sanções e bloqueios contra a população palestina, apesar de a vitória nas urnas ter sido considerada limpa. A pressão sobre a Palestina gerou a um rompimento violento entre os grupos, com o Hamas governando Gaza e o Fatah, a Cisjordânia.
Já a FPLP segue atuando em toda a Palestina, inclusive Jerusalém Oriental. O Brasil de Fato conversou com Jameil Saleh Mezher, vice-secretário geral da organização marxista-leninista. Desde o Egito, Mezher disse o primeiro objetivo dos distintos grupos deve ser a formulação de uma frente unida para resistir a Israel. Considerada grupo terrorista por EUA e UE, a FPLP não vê como prioridade debater agora uma eventual participação no novo governo.
Mezher discorreu sobre como a FPLP enxerga a futura administração palestina, a onda de simpatia internacional que se seguiu ao genocídio cometido por Israel, a relação com o Irã e as dificuldades de se manter a paz em Gaza, após dois anos de destruição. Leia abaixo:
Brasil de Fato – Qual a posiçao da FPLP sobre o futuro governo de Gaza e da Cisjordania?
Jameil Saleh Mezher – A posição da Frente Popular sobre o futuro da governança em Gaza e na Cisjordânia baseia-se em uma visão nacional abrangente, enraizada na firme convicção de que qualquer governo futuro deve ser resultado de amplo consenso nacional, e não de assentamentos parciais ou pressões externas — especialmente à luz dos sérios desafios e reviravoltas históricas enfrentados pela causa palestina. De acordo com a visão da Frente, o governo não deve ser meramente um órgão administrativo que gere os assuntos dos cidadãos, mas uma estrutura política voltada para a luta que contribua para restaurar a unidade nacional e pôr fim à divisão que enfraqueceu a frente interna palestina e permitiu que a ocupação persistisse em suas campanhas de extermínio, expansão de assentamentos e projetos de judaização.
Portanto, temos enfatizado consistentemente a necessidade de iniciar um diálogo nacional inclusivo envolvendo todas as facções, incluindo o Hamas, a Jihad Islâmica e as forças sociais, com o objetivo principal de alcançar consenso sobre a formação de um governo de unidade nacional sob a referência do Quadro de Liderança Interino da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), como referência nacional abrangente. A tarefa deste governo seria administrar os assuntos tanto na Cisjordânia quanto em Gaza, trabalhar na reconstrução do que a ocupação destruiu, prestar socorro e reforçar a firmeza do povo palestino no local, além de preparar eleições presidenciais, legislativas e municipais abrangentes que estabeleceriam uma nova legitimidade democrática baseada na participação e representação genuínas.
A Frente também acredita que um dos deveres do governo é confrontar todas as tentativas da ocupação de fragmentar a geografia e a demografia palestinas, seja tentando separar Gaza da Cisjordânia ou por meio de políticas de assentamento e do bloqueio, e exercer plena autoridade tanto na Cisjordânia quanto em Gaza, sem divisão ou duplicação de referências.
Caso a formação de um governo de unidade nacional se mostre difícil no curto prazo, a Frente propôs uma opção transitória alternativa: estabelecer um órgão nacional temporário, acordado para administrar a Faixa de Gaza interinamente, sob a autoridade da Autoridade Palestina. Sua missão seria permitir uma ação governamental unificada e preparar o terreno para que a Autoridade Palestina administre plenamente a Faixa de Gaza, preservando a posição de Gaza dentro do sistema nacional unificado — não como uma entidade separada ou paralela. Este órgão, seja chamado de comitê administrativo, comitê de apoio ou qualquer outro, deve operar sob a referência do governo palestino, com apoio árabe e internacional.
Por meio dessa postura, a Frente busca formular um projeto nacional palestino abrangente e uma estratégia nacional para enfrentar os planos da ocupação, equilibrando as necessidades de reconstrução e reconstrução com a continuidade da luta nacional contra a ocupação, com base na parceria, na justiça social e na unidade da tomada de decisões políticas palestinas.
Como se dará a resistencia a ocupação, apos o fim do genocidio?
É óbvio que a resistência deve continuar enquanto a ocupação persistir. Este é um princípio fixo para a Frente e as facções da resistência. No entanto, à luz dos principais acontecimentos ocorridos após 7 de outubro de 2023, a continuação da resistência não significa empregar os mesmos métodos ou excluir um meio em favor de outro. A resistência deve adaptar-se às realidades impostas pelo terreno, pela política e pela sociedade.
Como resultado das mudanças cruciais no cenário palestino após 7 de outubro de 2023, devemos construir ferramentas de resistência atualizadas que empreguem mais de um método e mais de uma frente simultaneamente. Essas ferramentas não se limitam apenas à resistência armada, que continuará a existir e a atuar mesmo que um cessar-fogo seja observado. Embora reconheçamos a resistência armada como um direito no enfrentamento da ocupação, enfatizamos a necessidade de que ela faça parte de uma decisão e estratégia nacional unificada. A evolução da resistência requer sua unificação e escalada sob a bandeira de uma única Frente de Resistência que determine o momento, a forma e o local das ações de resistência – especialmente na Cisjordânia ocupada, onde a situação é particularmente perigosa, dados os crimes dos colonos e as políticas de ocupação, como assentamentos, judaização e anexação. Esforços devem ser feitos para pressionar e enfraquecer a ocupação na Cisjordânia, ao mesmo tempo em que se alivia a pressão sobre os combatentes em Gaza.
A resistência nas frentes diplomática, internacional e jurídica não deve ser ignorada. Devemos capitalizar as mudanças na mobilização global, que se espera que se tornem uma ferramenta importante e influente, criando oportunidades para expandir a pressão internacional à medida que ondas de solidariedade popular crescem em cidades europeias e americanas, campanhas de boicote se intensificam e empresas se recusam a se envolver com os sistemas de ocupação. Devemos traduzir a simpatia popular em pressões parlamentares, judiciais e econômicas que impulsionem uma mudança no equilíbrio de poder.
Finalmente, a essência da resistência nesta fase é uma mudança de atos individuais de resistência para uma ação nacional coletiva e calculada, capaz de infligir maior dor ao inimigo, tendo também em conta as circunstâncias no terreno e na arena internacional, e de reduzir os encargos sobre a base popular que apoia a resistência.
A Frente para Libertação da Palestina assinou o acordo de Pequim prometendo unidade entre os diversos grupos políticos palestinos. Mas muitos como EUA e União Europeia não dialogam com a entidade por classificá-la de terrorista. Vocês estão dispostos a não participar de um futuro governo, para não inviabilizá-lo?
Desde o estabelecimento da Autoridade Palestina e a formação de seus primeiros governos, a Frente tem mantido uma posição consistente, caracterizada pela clareza e independência nacionais. Recusou-se a participar de qualquer um dos governos da Autoridade Palestina, pois sua legitimidade se baseava nos Acordos de Oslo, aos quais a Frente se opunha. A Frente tem confrontado rigorosamente quaisquer práticas ou decisões negativas que afetem a vida e os direitos das pessoas, mas nunca foi um obstáculo à formação de governos. Em vez disso, sempre foi a voz nacional da oposição, clamando pela correção de rumos, avaliando o desempenho e combatendo a corrupção. Essa abordagem reflete a postura nacional duradoura da Frente, livre de considerações emocionais ou facciosas.
A Frente assumiu uma posição notável em 2006, às vésperas da vitória do Hamas nas eleições legislativas, quando anunciou sua confiança no governo formado pelo Hamas no Conselho Legislativo. Isso não se deveu ao apoio total às políticas ou programas do Hamas, mas à rejeição dos Acordos de Oslo como referência para o governo. Ao se abster de se opor ao governo do Hamas, a Frente também evitou ser vista como aliada à crescente divisão que se seguiu às eleições. Afirmou o respeito pelos resultados eleitorais e o direito do partido vencedor de formar um governo e demonstrar sua capacidade de administrar os assuntos do povo. Esse comportamento ilustra que a postura da Frente em relação ao governo se baseia no interesse nacional supremo, e não em interesses particulares ou faccionais.
Hoje, diante das grandes mudanças no cenário palestino, discutir a participação da Frente em qualquer governo de unidade nacional é prematuro. Para a Frente, a questão fundamental não é sua própria participação, mas garantir que o governo cumpra seu objetivo principal: cumprir seus deveres e responsabilidades para com o povo palestino de acordo com um programa nacional que priorize o interesse nacional sobre os interesses faccionais, encerre o período de divisão e má gestão da Autoridade, e transforme o governo em um instrumento de luta para o povo palestino, em vez de um fardo para ele.
Em suma, a posição da Frente é consistente: apoia qualquer medida nacional que restaure a unidade e fortaleça o desempenho das instituições palestinas. Qualquer decisão futura relativa à participação ou não participação será determinada com base no que serve à unidade, aos interesses e aos objetivos do povo palestino.
O Irã é um amigo histórico da FPLP. Os acontecimentos desse ano como a derrubada do governo sírio e os ataques de Israel contra o Irã enfraqueceram a troca com Teerã?
O Irã foi e continua sendo um amigo histórico do povo palestino e da resistência, incluindo a Frente Popular. Os eventos ocorridos neste ano, como a queda do governo sírio e a guerra criminosa contra o Irã, embora tenham causado algumas repercussões e perturbações aqui e ali, não afetaram de forma alguma o relacionamento com Teerã de forma a reduzir ou enfraquecer a cooperação. Pelo contrário, o relacionamento continua a se desenvolver, com base no respeito aos princípios nacionais palestinos, no direito do nosso povo à libertação e à autodeterminação e no apoio contínuo às facções da resistência em diversas formas. Isso reflete a posição distinta e em evolução do Irã.
Portanto, o apoio do Irã ao povo palestino nunca esteve vinculado a mudanças temporárias no cenário regional. Baseia-se em um princípio firme: o direito do povo palestino de resistir e alcançar a libertação e a rejeição da ocupação. Esse apoio abrange todas as dimensões possíveis – relacionadas às lutas políticas, jurídicas e diplomáticas e, em certas áreas, logísticas – para servir à firmeza e à resistência do nosso povo.
Em suma, o relacionamento com Teerã é estável, forte e em constante evolução. Baseia-se no apoio contínuo ao nosso povo e aos seus direitos, sem ser afetado por eventos regionais ou desafios enfrentados pela República Islâmica. Esse compromisso torna esse relacionamento uma alavanca estratégica para o povo palestino em sua resistência e projeto nacional.
Vocês acreditam na perspectiva de reconciliação entre Hamas e Fatah?
Acreditamos que a reconciliação entre o Hamas e o Fatah é possível e realista, desde que haja uma vontade genuína de ambos os lados e que o interesse nacional seja colocado acima de qualquer cálculo de faccões ou partidário. Os desafios são significativos e o povo palestino não pode mais suportar a continuação da divisão, que limitou severamente sua capacidade de permanecer firme e enfrentar a ocupação. É por isso que a vontade compartilhada de construir pontes de confiança e retornar à tomada de decisões palestina unificada é tão importante.
Ao longo dos anos de divisão e até o momento presente, a Frente não poupou esforços para alcançar a reconciliação e pôr fim à cisão. Acredita que qualquer passo em direção à reconciliação deve ser apoiado por um papel árabe genuíno e sério, fornecendo as garantias políticas, econômicas e diplomáticas necessárias. Deve também haver uma estrutura nacional abrangente que garanta a distribuição justa de responsabilidades, respeite e unifique as instituições legítimas e restaure os direitos civis e políticos a todos os palestinos.
Estamos otimistas porque experiências passadas mostraram que a unidade é possível quando todos colocam o interesse supremo do nosso povo acima de tudo e transcendem as estreitas preocupações faccionais.
Qual a posição da FNPLP sobre as execuções acontecendo em Gaza de acusados de traição pró-Israel?
A posição da Frente sobre as execuções realizadas em Gaza contra os acusados de colaborar com a ocupação deve ser entendida no contexto da complexa realidade da Faixa de Gaza. Por meio de suas políticas e repetidas guerras, a ocupação buscou minar a estabilidade interna, atacar as forças policiais e criar gangues armadas que cometeram assassinatos, agressões, roubos e ataques contra combatentes da resistência durante os períodos de guerra. Dada a ausência de um governo central eficaz devido aos ataques contra quartéis-generais, oficiais e policiais, era natural que a resistência tomasse medidas rigorosas para proteger a frente interna e garantir a firmeza do povo.
O que a resistência faz, incluindo a execução de sentenças sob o Código Penal Revolucionário da OLP, enquadra-se no contexto de esgotar todas as medidas legais disponíveis e perseguir qualquer pessoa que tente minar a segurança interna ou criar brechas para que a ocupação e seus colaboradores enfraqueçam a firmeza e a resistência de nosso povo. Esse trabalho reflete um consenso nacional sobre a proteção da frente interna de todas as tentativas de sabotagem e caos, por meio das quais a ocupação busca romper a unidade palestina e disseminar a desordem.
A Frente enfatiza que a segurança da resistência é parte integrante da segurança do povo palestino e de sua causa nacional. Perseguir os agentes da ocupação e aqueles que se desviaram da frente nacional é um meio de proteger tanto a resistência quanto o povo, salvaguardando seu espaço e unidade política. Essas medidas de segurança nacional refletem uma decisão nacional coletiva baseada na parceria na proteção do projeto nacional e na consciência compartilhada do perigo que representa para o nosso povo a guerra de extermínio sionista e as tentativas da ocupação de incitar conflitos internos.
Uma vez alcançada a estabilidade e terminada a agressão, certamente haverá uma autoridade governamental legítima presente no local para implementar todas as medidas legais e administrativas necessárias, começando com investigações abrangentes e transparentes, prosseguindo com julgamentos justos de acordo com as estruturas legais aprovadas e estendendo-se a programas de reconciliação nacional e medidas de reabilitação e justiça transicional.
Editado por: Luís Indriunas
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