Djavan e a brecha do portão

Djavan e a brecha do portão

Por: O Poder Popular ·

Por Lúcio Verçoza - Sociólogo e autor do livro “Os homens-cangurus dos canaviais alagoanos: um estudo sobre trabalho e saúde” (Edufal/Fapesp). Escreve semanalmente a coluna Balaio de Ouricuri, no jornal A Voz do Povo.

Um portão de ferro pintado de cinza. Na brecha, entre o ferrolho e o cadeado, havia o olho verde dela.

Eu tenho uma namorada viva no interior
Maria das Mercedes linda como um beija-flor
Ontem eu recebi carta dela cheirando à fulô

Ele, dentro da garagem de uma casa simples da Ponta Grossa, ensaiava com a banda Luz, Som e Dimensão (LSD). Os olhos dele miravam ora o braço da guitarra, ora o olho verde dela. A moça, na calçada, permanecia com rosto colado na brecha do portão. Maceió era pequeno, o corpo da moça era magro e o som que saía da garagem era vasto como o mundo. Vasto-mundo, como o das noites dançantes no Clube da Portuguesa.

Ele era nome de navio desconhecido. Um nome de navio em sonho de mãe. Ela era nome de lagoa. Nome de lagoa sem proa. Juntos, poderiam ter formado um apelido carinhoso de casal, mas ela era tímida. Tinha mãe de voltar cedo. Ele era músico. Tinha chão de ir embora. Ele foi para o Rio de Janeiro. Ela ficou.

Lá pros quarenta
Lá pros quarenta eu vou

Nunca namoraram. Nunca passaram dos olhares pela brecha do portão. Quando ele voltou para a apresentação da turnê Lilás, nos anos 1980, ela era uma mulher separada, com quatro filhos pequenos e conservava o mesmo olhar palpitante. Em meio à multidão, ele não reconheceria o olho dela arrodeado por maquiagem. Apenas intuiria um arrepio de recordação.

Eu quis escrever para o velho endereço
Sobre tudo que eu conheço da cidade grande
Como fui infame, esqueci o seu sobrenome
Se é Pereira, Moreira, Ferreira
Só sei que acaba com “eira”, como aquela bananeira

Quando a conheci, ela era uma senhora com netos. Hoje, beira chegar aos bisnetos. Seu sobrenome é Pereira, sua mãe se chamava Maura e seu primeiro nome não é Maria. É bem provável que Djavan diga a verdade quando afirma não ter escrito essa música para ela, pois não houve carta, beijo ou promessas – apenas uma curta troca de olhares pelo portão. Mas, é fascinante que, ainda que ele não saiba da existência dela, a sua música sabia e a encontrou. Com algum atraso, a carta chegou – como quem mesmo não a vendo, a vigia.

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