Educação domiciliar: ofensiva contra a infância

Educação domiciliar: ofensiva contra a infância

Por: Redação ·

Com a aprovação do Projeto de Lei 3.179/2012, deputados e alguns setores da sociedade colocam-se contra a educação pública e contra o próprio potencial de desenvolvimento das crianças brasileiras.
por Gabriel Monteiro - Revista O Ipê

No dia 19 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 3.179/2012, que segue para o Senado como Projeto de Lei 1.388/2022 e visa regulamentar a educação domiciliar, ou como é mais conhecida, o homeschooling. O PL, de autoria do deputado bolsonarista Lincoln Portela, fundamentalista religioso e envolvido em polêmicas relacionadas à Escola Sem Partido, propõe alteração na Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional. Dos representantes do Distrito Federal na Câmara, apenas Érika Kokay (PT) e Israel Batista (PSB) votaram contra.

De acordo com o PL, para ofertar a educação domiciliar, será necessário preencher alguns requisitos: matrícula anual em instituição de ensino credenciada e formalização da opção pela educação domiciliar pelos representantes legais da criança ou do jovem; um dos responsáveis deve possuir escolaridade de nível superior ou em educação profissional tecnológica; cumprimento dos currículos anuais estabelecidos pela Base Nacional Comum Curricular; relatório periódico das atividades realizadas pelo estudante e envio de relatórios trimestrais dessas atividades; acompanhamento semestral de docente tutor da instituição de ensino em que estiver matriculado; garantia de convivência em comunidade do estudante. Estas são algumas das exigências e responsabilidades atribuídas às famílias, às instituições de ensino e ao Estado.

Mesmo que se assumisse a tese de que a educação domiciliar possa ser positiva, é preciso apontar que o PL demanda uma estrutura capaz de cumprir com: fiscalização constante, prestação de contas por parte da família, acompanhamento periódico do Estado, descrições detalhadas do desenvolvimento da criança etc. Sabemos que esse controle é uma tarefa difícil para imensa maioria das escolas, que dirá para os lares das/os estudantes. Além disso, é evidente que a educação domiciliar, por mais bem implementada que seja, nunca será tão competente quanto uma escola para o desenvolvimento integral da criança.
Pondo os pingos nos is

Quando se fala em educação domiciliar, não é mencionado que a proposta se baseia na falsa premissa de que as famílias são proibidas de educar seus filhos, responsabilidade que seria apropriada por instituições de ensino. A ideia de uma esfera privada na educação é quase tão antiga quanto a própria história da educação, sendo validada pela Constituição Federal no art. 205, que institui a educação como direito de todos e dever do Estado e da família. A família brasileira sempre pôde educar seus filhos, levá-los a atividades fora da escola, como aulas de esportes ou de artes, contratar professores particulares e assim por diante.

A família complementa e supre lacunas que a escola não consegue ofertar e vice-versa. O processo educativo em nossa sociedade tem uma dimensão afetivo-intelectual que depende da ação conjunta entre Estado, sociedade e família. Não é permitido ao Estado privar a família do dever de educar seus filhos, nem à família privar o Estado e a sociedade do dever de educar seus cidadãos.

Toda criança é ao mesmo tempo filha e cidadã, sua formação integral se dá nas esferas pública e familiar, onde seu desenvolvimento deve estar protegido de qualquer tipo de abuso que possa comprometê-lo. A criança pode, por diversos motivos, romper vínculo com sua família, mas é pouco provável que deixe de ser considerada cidadã. A criança enquanto filha/o recebe constantemente educação de seu núcleo familiar e, enquanto cidadã, tem sua educação referida à toda a sociedade. Sua formação não deve atender apenas ao interesse familiar, mas levar em consideração o mundo em que vive e convive.


Em defesa da socialização

É preciso considerar também algumas argumentações que parte da esquerda reproduz acriticamente. Uma delas é a de que a educação domiciliar compromete o processo de socialização da criança. Que não restem dúvidas: isso está absolutamente correto. O problema, contudo, é o significado comumente atribuído à socialização, tratada como sinônimo de se relacionar com outras pessoas. Uma das principais funções da escola, se não a principal, seria fazer com que a criança aprenda a conviver em sociedade. A fragilidade desse argumento reside na redução do papel da escola a simples transmissora das regras de convívio social, como empatia, gentileza, justeza ou qualquer outra característica que se espere de um indivíduo. O problema é que essas características podem ser desenvolvidas por meio da orientação familiar, sem necessidade da escola.

Quando defendemos o papel da escola na socialização, defendemos, na verdade, a manutenção da única forma, em nossa sociedade, de estimular a aquisição de conhecimentos para o desenvolvimento pessoal através das relações sociais que conformam o processo educativo. As áreas da pedagogia e da psicologia nos ajudam a compreender tal processo pelo encontro de três entidades: o aprendiz, o ser mais experiente e a cultura. Para que o aprendiz adquira um novo conhecimento, ele depende de outra pessoa já experiente para guiá-lo nessa descoberta. O papel dessa pessoa em sala de aula é ocupado não só pelo professor, mas também por outras crianças com vivências diversas daquela que está em posição de aprendiz.

A criança usufrui dos seus cinco sentidos desde muito cedo, mas é só pelo convívio em sociedade que poderá desenvolver funções culturais como pensamento abstrato, fala, consciência etc. Portanto, é necessário construir um ambiente propício a esse processo, no qual a qualidade da mediação cultural será de grande importância para o desenvolvimento integral das crianças. A atuação de um corpo pedagógico capacitado, que compreenda o desenvolvimento da criança em sua totalidade, nos aspectos físico, motor, psicológico, intelectual e afetivo, será determinante nesse momento.

Não é só falso, mas irresponsável e abusivo com as crianças pretender, como faz o PL, que um responsável com qualquer curso superior goze dos conhecimentos necessários para orientar seu trajeto escolar. Sabemos ser necessário todo um corpo pedagógico, composto por diretor, coordenador, psicólogo, orientador educacional, professores, tutores e toda uma infraestrutura para garantir o mínimo de qualidade na educação. O problema se agrava pelo fato de a educação domiciliar dever seguir as exigências curriculares da Base Nacional Comum Curricular, que abrange áreas e conteúdos extremamente diversificados, de tal sorte que mesmo que se contratasse um professor particular, as chances de existirem graves lacunas na formação da criança seguem muito altas.

Outro aspecto decisivo que a educação domiciliar jamais conseguirá reproduzir é a pluralidade e diversidade de crianças convivendo juntas em um mesmo ambiente. Em qualquer sala de aula, ocorre um verdadeiro encontro de culturas. Com a adequada atuação do professor, as crianças expandem seu repertório de vivências e passam a ressignificá-las nas relações entre pares, dando vazão ao processo criativo e imaginativo, impulsionando seu desenvolvimento.

Crianças aprendem com crianças em um processo dialógico e livre da vigilância e controle constante dos adultos. Longe dos olhares dos pais, as crianças são capazes, até certo ponto, de exercer sua própria autonomia, decidindo quem serão seus amigos, lidando com suas emoções, resolvendo conflitos e brincando juntas. Nenhum espaço extraescolar é capaz de reproduzir a riqueza dessas trocas, pois serão poucas as crianças envolvidas e haverá um direcionamento excessivo ao brincar. O papel da socialização vai muito além de fazer amizades, é o que orientará o desenvolvimento integral do ser humano e não pode ser restrito ao domicílio de cada criança sem graves consequências.
Partido sem escola

O PL que regulamenta a educação domiciliar não é praticável e nem adequado ao desenvolvimento integral dos estudantes. O que estaria por trás do esforço para legalizar essa modalidade de ensino? Trata-se de mais uma tentativa de desmonte da educação do Brasil pelos que representam o que há de mais reacionário em nossa classe política.

Grande parte das figuras que defendem a educação domiciliar falam em prol da chamada “Escola Sem Partido”, que visa a afastar uma suposta doutrinação de esquerda que os professores estariam impondo aos alunos. Não nos debruçaremos sobre a insanidade desse tipo de alegação, mas pode-se perceber que os argumentos coincidem, como o controle dos pais sobre os conteúdos e o modo com o qual são ensinados aos seus filhos. Porém, a força da educação básica privada já indica a existência desse controle familiar. Nela, as famílias determinam o que suas crianças aprenderão por meio da lógica do consumo. Cada escola vende um futuro para criança, compreendido como um dos mais importantes investimentos. Existem períodos em que determinados produtos estão em alta e depois saem de moda, como aconteceu com o ensino preparatório para vestibular, com o ensino empreendedor, com o ensino bilíngue, e que tem no ensino domiciliar a versão atual desta busca desenfreada pelo ensino enquanto consumo privado.

Assim como o mercado soube criar e satisfazer essas necessidades específicas de ensino, não demorará muito para ocupar o espaço aberto pelo ensino domiciliar, ofertando o “melhor” ensino possível em troca de mensalidades inacessíveis à maioria da população. Ao tempo em que se desmonta a educação pública, abrem-se possibilidades para ampliar o mercado privado às custas da qualidade da educação a que as gerações futuras terão acesso.

Fortalecendo a iniciativa privada, sonega-se da população o direito a um ensino público de qualidade. Não que a educação pública atualmente seja o espaço de educação emancipatória que desejamos, mas é um campo de disputa para que venha a se tornar um dia. Cada passo dado na regulamentação de projetos como o da educação domiciliar é um ataque ao futuro das crianças, tanto no que diz respeito ao seu desenvolvimento, quanto à construção de um Brasil mais justo.

Compartilhe nas redes sociais