
EMERGENCISTAS E SAÚDE COLETIVA: POR UM RESGATE POLÍTICO E SANITARISTA DA MEDICINA DE EMERGÊNCIA NO BRASIL
Por Rita Barbosa, militante do PCB em Mato Grosso do Sul
INTRODUÇÃO
Em 2020, o mundo foi palco de um evento catastrófico e traumatizante, cujas sequelas persistem entre nós até hoje. A pandemia de COVID-19 evidenciou a fragilidade da vida humana, escancarando as disparidades sociais em saúde e reforçando a importância da formação de profissionais devidamente capacitados para prestar os cuidados iniciais em situações ameaçadoras à vida - a qualquer um, a qualquer hora, para qualquer coisa. No escopo médico, a especialidade correspondente a tais cuidados é conhecida como Medicina de Emergência.
No ano passado, Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, foi sede do IX Congresso Brasileiro de Medicina de Emergência (CBMEDE), reunindo profissionais emergencistas do mundo inteiro para debates, palestras e atualizações da área. Pergunto-me volta e meia se as pessoas presentes sabiam que estavam pisando em um estado marcado ativamente por conflitos agrários, genocídio indígena e uma por uma Rede de Urgência e Emergência (RUE) cada vez mais defasada, ineficiente e desgastada. O que a Medicina de Emergência tem a ver com os ataques de policiais e fazendeiros contra áreas de retomada indígena no interior de Mato Grosso do Sul?
Os últimos anos têm sido duros para o Sistema Único de Saúde (SUS), o maior sistema público e universal de saúde do mundo. O descrédito na ciência, alavancado pelo financiamento público de fake news em saúde durante o governo Bolsonaro, associado às práticas de desfinanciamento e de desmonte de políticas públicas históricas culmina em um sistema cada vez mais fragilizado. [1] Enquanto médica atuante na área de emergência, meu pensamento ao receber uma pessoa em estado crítico na Sala Vermelha é, na maioria das vezes: o que vai matar meu paciente primeiro? Da mesma forma, provoco: o que vai matar o SUS primeiro?
Especificamente em Campo Grande, o cenário que a RUE vivencia na gestão da prefeita Adriane Lopes, do partido Progressistas, é assombroso. Trabalhamos diariamente com a falta de insumos e equipamentos, sem radiografia, sem coletores de urina, sem cateter nasal para oxigênio, sem aparelhos de radiografia, sem medicações básicas ou mesmo equipo para aplicação de soluções e medicações intravenosas. Jogadas políticas seguem favorecendo um amadorismo na gestão da saúde pública do município que se evidencia, no meu dia a dia, em ver pessoas adoecendo e por vezes morrendo por falta do básico. Enquanto profissional defensora apaixonada do SUS, não exagero ao dizer que essa realidade me dói e me mata aos poucos. Sem condições dignas para trabalhar, técnicos de enfermagem recebendo 20 reais por hora de plantão, falta de profissionais, sobrecarga emocional, uma população cada vez mais agressiva e hostil… O que vai me matar primeiro?
A dor se agrava mais ao saber que essa realidade possivelmente se expande para o resto do Brasil. A RUE se encontra dominada pelas parcerias público-privadas (PPP), organizações sociais em saúde (OSS) e demais estratégias de privatização dos serviços públicos, com a pejotização da força de trabalho do SUS e, por conseguinte, a precarização das relações trabalhistas na área da saúde. [2] Essas estratégias equivalem a cuspir na cara das milhares de pessoas que marcharam e lutaram durante as décadas de 70 e 80 no movimento pela Reforma Sanitária no Brasil.
Com o fascismo em ascensão, os direitos sociais ficam gradativamente mais fragilizados e sujeitos à destruição. [3] Valores como universalidade, equidade e integralidade chocam-se com a perspectiva moralista, racista, sexista, transfóbica e capacitista propagada pelo fascismo. Em paralelo, presenciamos também o avanço voraz do neoliberalismo, que, por sua vez, demanda obrigatoriamente o fim do SUS. Um sistema universal e gratuito, pautado em prevenção e promoção de saúde, em atenção integral, não é compatível com a lógica de mercado e com as dinâmicas de lucro e acumulação capitalistas. [4]
Diante desse cenário, qual o papel de médicos emergencistas na luta em defesa do SUS?
A HISTÓRIA NÃO CONTADA DA MEDICINA DE EMERGÊNCIA
Para responder ao questionamento colocado, é imperioso que revisemos a construção histórica do que hoje conhecemos como Medicina de Emergência. De forma mais estruturada, a ME surge como área de conhecimento a partir da I Guerra Mundial, visando à prestação de assistência aos soldados feridos em campo. A assistência rápida e a priorização dos casos mais graves formaram a base para os sistemas de triagem e atendimento de emergência, os quais, por sua vez, culminaram no desenvolvimento dos sistemas de atenção pré-hospitalar e dos serviços de ambulâncias. [5]
A partir da década de 1960, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos, profissionais com formação em diferentes áreas se agrupam em sociedades e passam a promover a formação de profissionais especializados nos cuidados de emergência, dando início às primeiras residências e aos primeiros especialistas em ME na Europa e na América do Norte. [6] No Brasil, três marcos principais na história da especialidade são a criação da disciplina de Emergências Clínicas no curso de Medicina da USP em 1992; a criação da primeira residência de ME em Porto Alegre, em 1996; e, finalmente, o reconhecimento oficial da Medicina de Emergência como especialidade médica em 2015. [7]
Um outro eixo histórico da Medicina de Emergência - e também da Medicina de Família e Comunidade - que é comumente e convenientemente “esquecido” diz respeito à União Soviética. Em 1918, na URSS, foi criado o Comissariado Popular de Saúde (Narkomzdrav), sendo nomeado o médico Nikolai Semashko como o Comissário de Saúde do Povo. [8] A gestão de Semashko, embasada na experiência médica de Zemstvo (uma forma de auto-administração local em províncias centrais do Império Russo na segunda metade do século XIX), desenvolve um sistema de saúde pautado em territorialidade, caracterizado por serviços de ampla distribuição, acesso gratuito e facilitado, e oferta de um cuidado qualificado de alto nível. [9]
Em um de seus textos, Semashko declara: “A organização do sistema de saúde, de acordo com princípios baseados nos distritos, permite aos provedores de saúde a oportunidade de conhecer melhor seu território, as condições de vida e de trabalho de sua população, de identificar os doentes crônicos e recorrentes, de conduzir não apenas medidas médicas mas também medidas preventivas, de lidar melhor com a emergência e disseminação de doenças infecciosas. Dessa forma, o médico do distrito se torna o ‘médico local’, um amigo da família. O conhecimento de sua área e dos seus habitantes permite um melhor reconhecimento e tratamento das doenças”. [10]
Além do aspecto regionalizado e territorializado, o que veio a ser conhecido como Modelo Semashko trazia como inovação a sua estratégia de financiamento. Não mais acoplado ao modelo de contribuição individual - que predominava no período pré-revolução, quando cerca de 25% dos trabalhadores conseguiam ter acesso aos seguros privados - o sistema de saúde soviético era gratuito para todos os cidadãos e financiado a partir do orçamento público da URSS. [9] É nesse cenário que, em 1919, é criado o Sistema Médico de Emergência Soviético (Skoraya Meditsinskaya Pomosch), apoiado em uma filosofia central que também embasaria o desenvolvimento da Atenção Primária na URSS: levar o médico ao paciente. [11]
O Skoraya foi considerado um subsistema especializado na prestação local de cuidados médicos em casos de acidentes ou diante de doenças súbitas ameaçadoras à vida, como hemorragias, rebaixamento do nível de consciência e insuficiência respiratória. Além disso, também era função desse subsistema a regulação e o transporte adequados de todos os pacientes com indicação de hospitalização imediata. Centrado em estações de emergência espalhadas pelas áreas urbana e rural, com ambulâncias cuja equipe básica era composta por ao menos uma pessoa médica, uma paramédica e uma enfermeira, o Skoraya incentivava a produção de conhecimentos e tecnologias entre seus profissionais que ajudassem a otimizar o desenvolvimento das políticas públicas e das ações de assistência e gestão em cuidados de emergência. [12]
A partir da década de 30, iniciam as primeiras equipes especializadas na assistência de emergência pré-hospitalar obstétrica e pediátrica. A partir da década de 40, principalmente sob coordenação da médica soviética Natalya Andreyevna Lengauer, novas “brigadas especializadas” são criadas e fortalecidas - por exemplo, as brigadas psiquiátrica, neurológica, toxicológica, de ressuscitação e a tromboembólica. Esta última foi responsável pelo desenvolvimento de um sistema de transmissão de ECG por radiotelefone até uma estação especializada, que podia então prestar assistência direcionada e proporcional à necessidade dos casos. [12]
Um dos primeiros gestores dentro do Skoraya, A. S. Puchkov, foi responsável pela reestruturação do sistema de atenção pré-hospitalar (APH), desenvolvendo, por exemplo, um formulário de acompanhamento que era enviado pelos hospitais às centrais da APH a fim de monitorar a compatibilidade entre as hipóteses diagnósticas, as condutas iniciais e o desfecho final intrahospitalar dos pacientes. Puchkov também foi responsável por instaurar, em 1926, o atendimento domiciliar de emergências - serviço até então inédito a nível mundial, quando os cuidados de emergência eram restritos às fábricas, vias públicas e hospitais. No mesmo período, o Skoraya também foi responsável pelo investimento massivo na criação e na expansão de hospitais especializados para cuidados de emergência distribuídos por toda a União Soviética. Um desses hospitais foi berço do Instituto N. V. Sklifosovsky de Pesquisa em Medicina de Emergência, criado em 1926. [13]
Quanto à formação, egressos das faculdades médicas da URSS que desejassem seguir especialização em Medicina de Emergência deveriam passar pelo treinamento específico do Skoraya. Tal treinamento era composto por pelo menos seis meses de treinamento intrahospitalar em um centro de referência em cuidados de emergência, se tornando um “emergencista generalista”. Poderia progredir então para três ou quatro meses de treinamento em uma das unidades especializadas, até eventualmente se converter em um emergencista especialista. A partir de então, passaria de três a quatro meses por ano trabalhando em unidades de APH especializadas e os outros meses como parte da equipe especializada em centros hospitalares de cuidados em emergência. [14]
Esse trajeto da construção de uma prática de emergência pública, gratuita, de qualidade, distribuída por todo o território, com valorização da formação de profissionais especialistas e com estímulos à produção científica na área evidencia a inevitável interface entre a Medicina de Emergência, a Saúde Pública e a política, de forma geral. E apesar de algo tão grande e histórico quanto o Skoraya existir desde 1919 - quase 100 anos antes do reconhecimento da ME como especialidade no Brasil -, pouquíssimo se fala sobre ele. Vale indagar por quais motivos a experiência soviética, comunista, pautada em um sistema de saúde público e gratuito, é aniquilada e apagada do histórico da especialidade, em detrimento da supervalorização das experiências britânicas e estadunidenses de 1960 em diante. A quem serve a Medicina de Emergência “ocidental”?
O SUS É COMUNISTA?
Em 19 de setembro de 1990 é publicada a lei federal nº 8.080, que cria o Sistema Único de Saúde no Brasil - o maior sistema público de saúde do mundo. Nosso querido SUS carrega muitas semelhanças com o Modelo Semashko e mesmo a forma como nossa Rede de Urgência e Emergência se organiza e opera é absurdamente semelhante - apesar de ainda muito inferior - à experiência do Skoraya. O que seria o “lema dos emergencistas” para os gringos, aqui está incrustrado não apenas na RUE, mas no SUS como um todo através de seus princípios, na lei 8080: integralidade, equidade e universalidade.
A luta sanitarista brasileira compõe o movimento da Saúde Coletiva e Medicina Social, que desde os anos 1970 banhava epidemiologistas e estudiosos de saúde pública por toda a América Latina. Influenciados pelas experiências soviéticas e cubanas em saúde, grandes nomes como a socióloga mexicana Asa Laurell e o epidemiologista equatoriano Jaime Breilh despontam na produção e divulgação de uma nova perspectiva de saúde. Pautada na interdisciplinaridade entre as ciências sociais, humanas e da saúde, os olhares da Saúde Coletiva e da Medicina Social superam o limitante paradigma biomédico. Mais que isso, denotam através da Epidemiologia Crítica e da noção de determinação social do processo saúde-doença que a lógica biomédica isolada serve diretamente ao neoliberalismo e tenta ocultar discrepâncias graves nos processos de adoecimento e morte, às custas da vida de populações mais pobres, racializadas e marginalizadas. [15]
Como fruto de uma crítica marxista ao modelo biomédico da saúde, a luta sanitarista brasileira é, em essência, anticapitalista e antiimperialista. Não é surpresa que o principal produto dessa luta - o SUS - carregue em seus fundamentos noções e valores que contrapõem a lógica neoliberal. Não é só papo de militância, é constitucional: no Brasil, a saúde não é mercadoria. Na URSS, sob o Modelo Semashko, a saúde não era mercadoria. Assim sendo, no mundo ultracapitalista em que vivemos, em que tudo e todos - inclusive nossas subjetividades - são mercadoria, onde se situa o SUS?
O SUS se posiciona do lado da resistência. E desde sua criação ele tem resistido. Resiste tanto aos ataques crueis de governos fascistas quanto às estratégias frias de desfinanciamento e sucateamento do “Centrão”. Resiste também - e talvez principalmente - aos ataques de supostos governos de esquerda, que usam de discursos floreados para tentar mascarar suas políticas de austeridade fiscal e suas alianças com as grandes corporações privadas de saúde do Brasil.
O SUS resiste tal qual o corpo humano tenta resistir à resposta inflamatória desordenada durante um quadro infeccioso, o que chamamos de sepse. Todavia, se não há o reconhecimento adequado e o manejo eficiente e precoce da sepse, a tendência é de que os mecanismos de resistência do corpo sejam superados, ultrapassados, evoluindo para o choque séptico, para a disfunção de múltiplos órgãos e sistemas, e, enfim, para o óbito. Qual o protocolo de ressuscitação do SUS? Qual o prognóstico do SUS?
A DETERMINAÇÃO SOCIAL E A MEDICINA DE EMERGÊNCIA
“A melhor forma de comprovar empiricamente o caráter histórico da doença não é conferida pelo estudo de suas características nos indivíduos, mas sim quanto ao processo que ocorre na coletividade humana.” Asa Cristina Laurell, 1976.
Para correlacionar emergencistas e a luta sanitarista, é indispensável destacar o desenvolvimento histórico e conceitual da Saúde Coletiva, como um ramo brasileiro dentro do movimento latino-americano da Medicina Social. Tal movimento surge na década de 1970, com objetivo de reformular criticamente os conceitos sobre o processo saúde-doença e, dessa forma, propor uma nova perspectiva para a produção de pesquisas e políticas públicas.
Em “A doença como processo social”, Everardo Duarte Nunes descreve quatro momentos distintos na construção do conceito de doença. Primeiramente, no século XVIII, destacam-se as relações entre Estado, poder e saúde. Há uma aproximação do social como componente de análise em saúde, evidenciado por investigação e elaboração de indicadores materno-infantis, de higiene, de doenças infecciosas e parasitárias, dentre outras. Há também, nesse período, a criação da Polícia Médica, com o objetivo de “colocar a vida econômica e social a serviço da política e do poder do Estado”. [16]
Ainda nessa primeira etapa, há a divulgação ampla da teoria malthusiana para embasar as práticas de saúde de um Estado burguês. A perspectiva de “superpovoamento” e esgotamento de recursos naturais é utilizada para justificar o desmonte de qualquer prática beneficente e assistencial - serviriam para manter um excedente populacional vivo às custas de contas públicas. [16]
Essa perspectiva é duramente criticada por Engels em “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, de 1834. No texto, o autor aponta como essa construção ideológica sustentou a promulgação da “nova lei dos pobres” na Inglaterra, promovendo a redução dos subsídios estatais para a população pobre e restringindo a assistência pública às “casas de trabalho” (workhouses). Engels descreve as péssimas condições de vida nessas casas e relata uma série de casos de adoecimento por infecções, fome e violência, além de destacar a adoção de práticas manicomiais, negligentes e abusivas que não raramente culminaram na morte dos trabalhadores abrigados. [17]
Durante o século XIX, com o advento da bacteriologia, emerge a segunda etapa, caracterizada por uma expansão e consolidação do modelo biomédico. Sob forte influência do positivismo, há um deslocamento de foco do social para o escopo individual, associado ao fortalecimento da noção de unicausalidade para a doença, que passa a ser vista como variações do tido como “normal”. [18]
A terceira fase, no início do século XX, é marcada pela crise do capitalismo e pela consolidação do modelo multicausal. As contradições do capitalismo escancaradas e a conscientização de setores marginalizados da população evidenciam a insustentabilidade do modelo unicausal. Dessa forma, a ciência burguesa progride para o modelo multicausal, assumindo de forma rasa a complexidade envolvida na investigação etiológica dos processos de saúde e doença. [19]
É nesse contexto que surge o modelo da história natural da doença, caracterizado pela tríade ecológica (agente, ambiente e hospedeiro). Há, cada vez mais, um apagamento do aspecto histórico em detrimento do aspecto natural, isto é, predomina uma observação estática e simplista da realidade. Isso reforça o caráter burguês de um modelo que busca fatores superficiais, inconvenientes e controláveis para definir como alvo de suas intervenções, ainda incapaz de se direcionar para as causas estruturais do adoecimento. [16]
Finalmente, na segunda metade do século XX, pesquisadores latinoamericanos estabelecem uma crítica radical aos modelos até então vigentes, dando início à quarta etapa: a da Medicina Social. Nessa fase, o processo saúde-doença não deve ser analisado apenas pela perspectiva biológica ou pela tríade ecológica, mas também pelos processos sociais, sobretudo quanto à produção e reprodução social. [20]
Em 1976, Asa Cristina Laurell, socióloga mexicana, publica seu texto “A saúde-doença como processo social”, quase como um manifesto deste novo movimento político. Nele, Laurell faz uma análise crítica dos modelo vigentes até o momento, e descreve o que vem se construindo como uma proposta alternativa de práxis em saúde pública, pautada sobretudo no materialismo histórico e dialético como método de investigação. A autora cita estudos que evidenciam a classe social e o processo de trabalho como conceitos centrais para entender as dinâmicas de saúde e adoecimento em uma sociedade. [21]
Um estudo citado compara as causas de morte no México e em Cuba, países que, à época, possuíam um nível similar de desenvolvimento econômico, porém com diferentes relações sociais de produção. Um dos principais achados se refere à mortalidade por causas infecto-parasitárias, sendo responsável por 40% das mortes no intervalo avaliado no México, e apenas 11% no território cubano, este com predomínio das causas crônicas e não-transmissíveis.
A autora cita também um estudo feito na Costa Rica, correlacionando mortalidade infantil e ocupação paterna, evidenciando uma mortalidade quatro vezes maior para crianças proletárias urbanas abaixo dos dois anos e cinco vezes maior para crianças camponesas na mesma faixa etária em comparação às crianças de alta e média burguesa.
Segundo Laurell, “o processo saúde-doença é determinado pelo modo como o homem se apropria da natureza em um dado momento (...), por meio de processo de trabalho baseado em determinado desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção”. Nesse trecho se evidencia um conceito que será central para a Medicina Social latinoamericana, bem como para seu ramo brasileiro, a Saúde Coletiva: a determinação social do processo saúde-doença.
Segundo o pesquisador brasileiro Guilherme Albuquerque, “a forma como se organiza a produção da vida em sociedade determina diferentes formas de viver, adoecer e morrer, para os diferentes grupos sociais”. No mesmo texto, o autor declara que “em sociedades de classes, as relações que se estabelecem entre as classes determinam diferentes possibilidades e restrições ao desenvolvimento da vida e, consequentemente, diferentes formas ou possibilidades de viver, adoecer e morrer”. [22]
A correlação mais direta entre a determinação social do processo saúde-doença e a prática da Medicina de Emergência pode ser explicitada ao analisar um estudo brasileiro de 2022. Em “Association of urban inequality and income segregation with COVID-19 mortality in Brazil”, Sousa Filho et al analisaram a mortalidade geral por COVID-19 entre março de 2020 e fevereiro de 2021 em 422 municípios brasileiros, considerando os índices Gini e de dissimilaridade para estimar a iniquidade na distribuição social de renda nos municípios. O estudo concluiu que maiores índices de iniquidade e segregação de renda estavam diretamente associadas à maior mortalidade por COVID. [23]
Esses dados reforçam a proposta que Lacaz faz em seu artigo “O sujeito n(d)a saúde coletiva e pós modernismo”, de 2001, ao destacar a classe social como sujeito central das práticas em Saúde Coletiva. [24] Essa noção é reforçada no artigo “Marxismo como referencial teórico-metodológico em saúde coletiva: implicações para a revisão sistemática e síntese de evidências”, publicado na Revista da Escola de Enfermagem da USP em 2013. Nele, as autoras descrevem que “a inserção desigual dos sujeitos no trabalho e suas condições de vida desiguais produzem manifestações desiguais no corpo. Ou seja, os desgastes dos trabalhadores dependem de sua inserção de classe”. [25]
CONCLUSÃO
Frente a essas evidências, é possível presumir que, para além de “qualquer um, a qualquer hora, com qualquer coisa”, é importante para emergencistas compreender que diferentes grupos sociais irão se apresentar com quadros clínicos específicos. Alguns mais graves que outros, não necessariamente só por um ponto de vista biológico.
O princípio da equidade nos força a enxergar que existe uma especificidade na condução de um infarto agudo do miocárdio em um homem cis, branco, com convênio particular, que faz seu acompanhamento regular com o Cardiologista e que tem acesso a consultas, exames, medicamentos, além de uma provável menor exposição a determiandos fatores agravantes de risco cardiovascular, como estresse, jornadas laborais exaustivas e alimentação restrita a carboidratos baratos. Por outro lado, há uma outra mentalidade em cena ao receber uma travesti, preta, em situação de rua, sem familiares, usuária de múltiplas substâncias, com um quadro de insuficiência respiratória aguda após agressão física em via pública.
Para além da apresentação aguda e individual dos casos, existe um recorte social muito nítido de quem tem o direito à vida e de quem tem como obrigação a morte. Quem tem acesso a cuidados de qualidade na emergência? A gestão pública tem investido na qualificação da mão de obra e das condições de trabalho das emergências e prontos-socorros tanto quanto os hospitais privados?
Enquanto profissionais de saúde atuantes nesse cenário, temos o privilégio de uma relação íntima com a vida e a morte, polos pulsantes nessa dinâmica de saúde-doença. Estudamos e nos capacitamos para saber fazer as melhores intervenções possíveis, no melhor tempo possível, para tentar aliviar o sofrimento, adiar mortes evitáveis ou mesmo promover dignidade nos processos ativos de fim de vida. Assistimos de camarote as consequências de um mundo capitalista em crise, dominado por projetos muito bem estruturados de morte da população mais pobre - o que, por vezes, inclui nós mesmos, profissionais da saúde.
As baixas remunerações para profissionais da emergência, sobretudo da enfermagem, acarreta uma necessidade direta de mais plantões para pôr comida na mesa. A falta de insumos e materiais básicos demanda que trabalhemos o dobro para conseguir prestar um cuidado minimamente adequado. Isso tudo nos causa mais cansaço, nos drena mais energia e nos rouba tempo de viver. Esse tempo que também poderia ser usado para descansar, para criar ou mesmo para se organizar politicamente. Entender a determinação social do processo saúde-doença também passa pelo entendimento de como isso se dá no nosso espaço de trabalho, nas nossas relações de trabalho na Rede de Urgência e Emergência. Trabalhadores e trabalhadoras do SUS, de forma geral, estão esgotados e é inegável que isso faz parte do plano de desmonte do SUS e, por conseguinte, de manutenção do status quo a favor da burguesia.
Apesar de tudo que nos tiram, não podem nos tirar a indignação, a raiva, o ódio contra um sistema moedor de gente. Também não devemos abrir mão da nossa humanidade, da nossa solidariedade entre pares, membros de uma mesma classe - a trabalhadora - que podem e devem se unir para sobreviver e lutar pela superação do capitalismo e pela construção de uma sociedade em que os modos de viver, adoecer e morrer sejam melhor distribuídos. Pelo direito de viver e morrer com dignidade, parece-me um lema mais adequado, abrasileirado, para a Medicina de Emergência.
“Já é tarde para uma solução pacífica. As classes vão se opondo cada vez mais nitidamente, o espírito de resistência cresce dia a dia entre os operários, a cólera torna-se mais intensa, as escaramuças isoladas da guerrilha confluem para combates e manifestações mais importantes e em breve um pequeno incidente bastará para desencadear a avalanche. Então, certamente ecoará por todo o país o grito: Guerra aos palácios, paz nos campos! - e já será tarde para que os ricos possam se pôr em guarda”.
ENGELS, 1834, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.
REFERÊNCIAS
Galhardi CP, Freire NP, Fagundes MCM, Minayo MC de S, Cunha ICKO. Fake news e hesitação vacinal no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva. 2022 May;27(5):1849–58.
Machado CV. O SUS e a privatização: tensões e possibilidades para a universalidade e o direito à saúde. Cadernos de Saúde Pública. 2018 Aug 6;34(7).
Barroco ML da S. Direitos humanos, neoconservadorismo e neofascismo no Brasil contemporâneo. Serviço Social & Sociedade [Internet]. 2022 Apr;(143):12–21. Available from: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/zjrwPzBctDGqj84D74Vg4cv/?format=pdf&lang=pt
Carnut L. “O que o burguês faz lamentando... o fascista faz sorrindo”: neofascismo, capital internacional, burguesia associada e o Sistema Único de Saúde. Civitas, Rev Ciênc Soc [Internet]. 2022;22:e41512. Available from: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2022.1.41512
Borges LAA. O reconhecimento da especialidade Medicina de Emergência. JBMEDE - Jornal Brasileiro de Medicina de Emergência. 2024 Jun 19;4(2).
Bloem C. História da Medicina de Emergência. Revista Brasileira de Medicina de Emergência. 2021;1(1).
Benincá VM, Guimarães HP. A história da medicina de emergência brasileira: as pedras nos caminhos moldaram nosso protagonismo. JBMEDE - Jornal Brasileiro de Medicina de Emergência. 2024 Mar 28;4(1).
Egorysheva IV, Sherstneva EV. The Narkomzdrav of the Russian Socialist Federal Republic Organizational Input into Struggle with Social Diseases During 1920s. Problemy sotsial’noi gigieny, zdravookhraneniia i istorii meditsiny [Internet]. 2018 Jul;26(4):243–6. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30365277/
Sheiman I, Shishkin S, Shevsky V. The evolving Semashko model of primary health care: the case of the Russian Federation. Risk Management and Healthcare Policy. 2018 Nov;Volume 11:209–20.
Reshetnikov VA, Nesvizhsky YV, Kasimovskaya NA. ВКЛАД Н.А. СЕМАШКО В РАЗВИТИЕ МЕДИЦИНСКОЙ ПРОФИЛАКТИКИ В РОССИИ (К 140-ЛЕТИЮ СО ДНЯ РОЖДЕНИЯ). Sechenov Medical Journal [Internet]. 2014 Jun;3(17):29-33. Available from: https://www.sechenovmedj.com/jour/article/view/753
Raithaus L, Scribner R, Ivanov P. Emergency medical service in the Soviet Union. Critical Care Medicine. 1974 Mar;2(2):64–7.
Komarov BD. Emergency medical care in the Soviet Union. The American Journal of Emergency Medicine. 1984 Sep 1;2(5):453–5.
Petrikov SS, M. Sh. Khubutiya, Rogal ML, Kabanova SA, Goldfarb YS. Creation and Establishment of the State Emergency Medical Services and Disaster Medicine Services in Russia (to the 100th Anniversary of the N.V. Sklifosovsky Research Institute for Emergency Medicine). Russian Sklifosovsky Journal Emergency Medical Care. 2023 Nov 24;12(3):509–27.
Storey PB. Emergency medical care in the Soviet Union. A study of the Skoraya. JAMA. 1971 Aug 2;217(5):588–92.
Paim JS. A reforma sanitária brasileira e o Sistema Único de Saúde: dialogando com hipóteses concorrentes. Physis: Revista de Saúde Coletiva. 2008;18(4):625–44.
Nunes ED. A doença como processo social. In: Canesqui AM. Ciência e Saúde para o Ensino Médico. São Paulo: Hucitec; 2000. p. 217-29.
Engels F. The Condition of the Working Class in England. Oxford England ; New York: Oxford University Press; 1993.
Puttini RF, Pereira Junior A, Oliveira LR de. Modelos explicativos em saúde coletiva: abordagem biopsicossocial e auto-organização. Physis: Revista de Saúde Coletiva [Internet]. 2010 [cited 2020 Nov 8];20(3):753–67. Available from: https://www.scielo.br/pdf/physis/v20n3/v20n3a04.pdf
Oliveira MA de C, Egry EY. A historicidade das teorias interpretativas do processo saúde-doença. Revista da Escola de Enfermagem da USP [Internet]. 2000 Mar 1;34:9–15. Available from: https://www.scielo.br/j/reeusp/a/9pCLGTRV9LMh9TN7tVmcKgb/?lang=pt
Osmo A, Schraiber LB. O campo da Saúde Coletiva no Brasil: definições e debates em sua constituição. Saude soc [Internet]. 2015Apr;24:205–18. Available from: https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S01018
Laurell AC. A saúde-doença como processo social. Rev Latino Am Salud [Internet]. 1982;2:7-25. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/23089490/574657748/name/saudedoenca.pdf
Albuquerque GSC de, Silva MJ de S e. Sobre a saúde, os determinantes da saúde e a determinação social da saúde. Saúde em Debate [Internet]. 2014;38(103). Available from: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Q4fVqRpm5XfVnfq8HSCymkH/?format=pdf&lang=pt
Sousa Filho JF de, Silva UM, Lima LL, Paiva ASS, Santos GF, Andrade RFS, et al. Association of urban inequality and income segregation with COVID-19 mortality in Brazil. Guimaraes RM, editor. PLOS ONE. 2022 Nov 15;17(11):e0277441.
Lacaz FAC. O sujeito n(d)a saúde coletiva e pós-modernismo. Ciencia & Saude Coletiva. 2001 Jan 1;6(1):233–42.
Soares CB, Campos CMS, Yonekura T. Marxismo como referencial teórico-metodológico em saúde coletiva: implicações para a revisão sistemática e síntese de evidências. Rev esc enferm USP [Internet]. 2013Dec;47(6):1403–9. Available from: https://doi.org/10.1590/S0080-623420130000600022
Acompanhe todas as mídias do nosso jornal: https://linktr.ee/jornalopoderpopular e contribua pelo Pix jornalopoderpopular@gmail.comLinktreeJornal O Poder Popular | Twitter, Instagram, Facebook | LinktreeUm jornal a serviço da classe trabalhadora, das lutas populares e do socialismo!
Acompanhe todas as mídias do nosso jornal: https://linktr.ee/jornalopoderpopular e contribua pelo Pix jornalopoderpopular@gmail.com
- Editoriais
- O Jornal