Ensino domiciliar: fábrica de Bolsonaros

Por: Redação ·

Por Ian Kelvin Mattos Costa

Andes - Sindicato Nacional

Os cidadãos de bem atacam novamente. O ensino domiciliar volta a tramitar na Câmara dos Deputados em regime de urgência. O Projeto de Lei 2401/2019, da autoria do Poder Executivo dispõe de alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente e na LDB - Lei de diretrizes e bases da educação - para agilizar a implementação do direito a educação domiciliar. Essa é uma pauta conservadora sustentada pelo governo Bolsonaro desde seu início, sendo esta uma das metas para os primeiros cem dias de governo. Buscando agradar a base reacionária e conservadora, o ensino domiciliar é uma opção para retirar seus filhos das “garras ideológicas” da escola. Voltamos a questão da argumentação “não ideológica” contra a ideologia dos professores e professoras doutrinadores, acusados de formar uma consciência maligna nos jovens.

Isso sim é uma pura reprodução ideológica disfarçada de natural, inata, contra “a ideologia que está aí”. É uma ideologia maquiada porque traz para si uma face naturalizada. Ao apontar que o “outro” é ideológico, o sentido que a burguesia toma para a sua própria ideologia é de: o que é ideologia é construído, se é construído é inventado, logo, não é natural. E a classe burguesa, com seu maior representante, coloca em prática a reprodução desta ideologia “não ideológica”, em um processo de legitimação.

Se me coloco como oposto ao ideológico, ou seja, ao inventado, eu seria o “natural”, o normal. Nesse sentido, a intenção é naturalizar suas formas de pensamento, seus valores, crenças, comportamentos e, é claro, seu domínio. A ideologia necessita de legitimação para a ação, cobrindo um espaço variado e afirmando-se como sistema justificativo de dominação. Essa ideologia reacionária e conservadora se expressa em uma histeria fantasiosa aliada aos diversos preconceitos que a classe média e a burguesia reacionária carregam consigo (e que o governo Bolsonaro representa muito bem). O machismo, racismo, a intolerância religiosa e a xenofobia são expressadas cotidianamente por membros do governo e seus defensores.

O modelo de ensino domiciliar apresenta uma base de sustentação dupla: ideológica e religiosa. Os defensores afirmam que os responsáveis pelas crianças devem ter o direito de escolher como educá-las. Eles as ensinariam por contra própria ou contratariam professores particulares. Alguns argumentam que esse modelo se daria para que as crianças pudessem aprender e desenvolver os conceitos do criacionismo. Além disso, os defensores do ensino domiciliar alegam ter o direito de não deixar suas crianças e jovens frequentarem escolas, pois são dotadas de posicionamentos ideológicos esquerdistas – abordagem que também é sustentada pelo Escola Sem Partido.

Em 2018 o STF decidiu que a educação domiciliar não é inconstitucional, mas necessitava de uma normatização para ser liberada. Em 2021 voltou a avançar um projeto da Câmara. A então relatora do projeto Deputada Luísa Canziani afirmou que “a educação domiciliar não vai deixar de existir, mesmo sem regulamentação. Por isso, prefiro que o Estado traga alguma forma de balizar e fiscalizar a prática”. Hoje 17/05/2022, volta a ser pauta urgente na briga pela liberação deste modelo de ensino.

Após uma breve busca sobre o Projeto de Lei, aparentemente são esses os pontos determinados pelo ensino domiciliar:

• Um dos responsáveis pela criança deve ter formação ou estar matriculado no ensino superior;
• Os alunos devem estar vinculados a uma escola pública ou particular, que monitoraria as atividades feitas em casa;
•  Os conteúdos desenvolvidos devem seguir a BNCC.
• A criança deve ser socializada.
• A alteração na LDB vai permitir o ensino domiciliar para toda educação básica, da pré-escola até o ensino médio: a proposta exige que o ensino domiciliar seja vinculado ao mundo do trabalho e a prática social.
• Manutenção do cadastro, a instituição na qual o educando estaria matriculado deveria ser atualizado anualmente.
• Acompanhamento do desenvolvimento do educando por um docente tutor da instituição que o e o educando estiver matriculado, também passaria por avaliações anuais de aprendizagem.
• A proposta proíbe a opção de ensino domiciliar em casos onde o responsável legal da criança ou adolescente foi condenado ou cumpre algum crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente; na Lei Maria da Penha; Código Penal sobre crimes contra a liberdade individual; Lei antidrogas; Lei dos Crimes Hediondos.

As descrições sobre os processos de elaboração da proposta acerca da educação domiciliar são completamente superficiais, algo comum e presente na elaboração de políticas públicas no Estado Burguês ultimamente. De que maneira será feita a socialização do aluno? Quem vai sistematizar os conteúdos da BNCC dentro da melhor didática e metodologia de ensino? Como será vinculado o ensino domiciliar ao mundo do trabalho e a prática social? Os responsáveis farão isso com base em que interdisciplinaridade? São questões fáceis de se responder superficialmente, mas na realidade concreta sabemos que não é bem assim.

Se na escola já temos milhares de dificuldades no desenvolvimento pedagógico e didático, ausência de profissionais, precarização do conhecimento crítico e problemas estruturais, imaginem só se todo esse processo de ensino-aprendizagem ficar sob responsabilidade de pessoas completamente incompetentes para a questão.

Outro exemplo de superficialidade é quando passaram a reforma do Enem para 2024 e o secretário de Educação Básica afirmou que os alunos do ensino técnico terão uma bonificação no exame, mas até hoje não a explicou. Assim como os processos do ensino domiciliar, primeiro eles passam o projeto de lei e depois vão estruturar, na calada da noite, o que será feito.

Notem as problematizações: se as pautas que sustentam a defesa do ensino domiciliar são também religiosas, em que realidade os responsáveis deste aluno seguiriam a BNCC? Se esses defensores do ensino domiciliar querem promover o ensino religioso e o criacionismo, entrarão em choque, por mais superficial que seja, contra o desenvolvimento crítico e científico dentro da BNCC. É uma proposta insustentável na realidade concreta, suas definições jamais serão cumpridas como descrito. Os responsáveis teriam de contratar profissionais desde a alfabetização até o ensino médio, ou seja, seriam necessários em média oito professores para desenvolver todas as disciplinas necessárias. Ilusão.

Ano eleitoral, o governo Bolsonaro está tentando cumprir promessas de pauta para os evangélicos conservadores e reacionários para manter sua base fundamentalista de apoio, afinal, agora o ouro ficou um pouco mais difícil. Nem mesmo os setores da burguesia educacional apoiam esta proposta de ensino domiciliar, pois vai contra os interesses econômicos de transformar a educação em mercadoria e os educandos em clientes - para isso eles precisam das crianças nas escolas, não em casa.

Em nota, a ONG que é mantida pelo Bradesco, Itaú, Fundação Lemann, Vale, Gol, Natura, Fundação Roberto Marinho entre outro, chamada de Todos Pela Educação, afirmou que à medida que implementa o ensino domiciliar é “equivocada e absolutamente fora do tempo.”, a organização também afirmou que a “restrição do convívio com crianças e adultos fora do círculo íntimo da família, a ausência de ideias e visões de mundo contraditores as que são expostas em casa, bem como a troca de experiencias e interações mais diversas, inibem o pleno desenvolvimento dessas crianças e jovens”.

A Câmara dos Deputados, para a surpresa de ninguém, servindo aos interesses do governo Bolsonaro e suas pautas, além de blindá-lo contra mais de cem processos de impeachment, também pauta com urgência suas bobagens. O ensino domiciliar é um retrocesso monumental para a educação brasileira. Os setores da burguesia educacional defendem o processo de socialização necessário para o desenvolvimento das crianças e adolescentes, é claro, essas crianças precisam estar dentro da escola, se possível, nas deles – escolas privadas, através de vagas compradas pelo Estado ou das mensalidades pagas pelos responsáveis. Mas tudo bem, pelo menos estamos de acordo com uma questão: o ensino domiciliar não presta e só traz atraso e problemáticas que levariam décadas para serem superadas, isso se houver como superar traumas físicos, psicológicos e intelectuais.

De acordo com o Ministério da Saúde, 81% dos casos de violência sexual contra crianças acontecem em ambiente doméstico. Isso é extremamente grave pois abre brechas para a atuação destes criminosos. Outra brecha é sobre o crime de abandono intelectual, previsto no Código Penal, caso os responsáveis deixem de garantir o processo educacional do sujeito, são passiveis desta acusação. Mas a PL do ensino domiciliar não esqueceu desta, também tem alteração no texto que abre um escape para evitar a acusação de abandono intelectual. As deputadas do PL, Chris Tonietto, Bia Kicis e Caroline de Toni somaram dois parágrafos que prevê, caso responsáveis que optarem pelo ensino domiciliar, não sejam acusados deste crime de abandono intelectual.

Crianças e jovens precisam de socialização, precisam conviver em conjunto no processo contínuo de construção de conhecimento. Precisam cientificamente aprender o mundo real, diverso, multicultural, multirreligioso; e compreender de forma crítica a realidade que estão inseridos. Deixar de estudar o desenvolvimento histórico da sociedade em que eles vivem, suas causas e seus resultantes é um erro brutal. Querem ensinar crianças e adolescentes em casa, querem deixar de lado todos os processos de ensino-aprendizagem sistematizados por profissionais que dedicaram e dedicam a vida para aprimorar metodologias e didáticas, lutando contra o pauperismo aplicado sob a educação e no esforço permanente de defender a educação pública e promover o ensino crítico.

A escola é uma instituição social que promove (e deve promover) a socialização na diferença, onde os indivíduos compartilham de conhecimento e vivência com indivíduos distintos - as vezes antagônicos. Através desses conflitos e contradições surgem novas determinações no processo de socialização. Conhecer o outro para reconhecer a si mesmo. A escola deve ser um ambiente onde os sujeitos devem aprender a conviver com crenças, valores, raças, classes e outros tipos de características socioambientais das quais somos compostos e que eles não vão conseguir encontrar dentro de casa. A escola é um espaço para o desenvolvimento intelectual, individual e coletivo. É um espaço que deve possibilitar e promover ao sujeito o reconhecimento de suas capacidades, seja nas artes, ciências ou esportes. A escola deve ser o local onde os indivíduos se desenvolvam intelectualmente e fisicamente, aprenda os processos de constituição da sua realidade sócio-histórica e compreenda as mais variadas formas de conhecimento.

Ensino domiciliar só fará desenvolver crianças e jovens dentro de uma bolha ideológica, possivelmente religiosa, sem pedagogias e sem processos de socialização. Sem participação de profissionais da educação. Imaginem comigo que tipos de jovens e adultos que resultariam desse processo de ensino domiciliar? Uma massa de indivíduos reacionários e provavelmente fundamentalistas religiosos, machistas, racistas, xenofóbicos, LGBTfóbicos, intolerantes e alienados da realidade concreta e seus processos constitutivos. Sujeitos acríticos que não vão compreender o mundo social que estão inseridos, passivos de reproduções ideológicas inconsciente tornando-os objetos de manipulação dos poderes religiosos e políticos. Provavelmente não vão conseguir desenvolver as ferramentas psicológicas e intelectuais para conviver numa diversidade social, com suas múltiplas características e expressões. Sujeitos incapazes de socialização, viverão em pequenas bolhas sociais composta por sujeitos iguais com os mesmos valores, crenças, comportamentos e hábitos. Não podemos aceitar uma fábrica de bolsonaros.

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