Escolas cívico-militares são mais seguras? O ensino é melhor? Militar e cívico-militar é a mesma coisa? Ponte ouviu especialistas para responder principais perguntas sobre o sistema
Paulo Victor Ribeiro - Ponte Jornalismo
São Paulo será mais um estado brasileiro com escolas públicas cívico-militares. Aprovada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), em sessão tumultuada que contou com manifestação contrária e a prisão de jovens, a proposta foi sancionada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) em 28 de maio.
A mudança no sistema suscitou novamente discussões sobre os modelos educacionais, e uma enxurrada de desinformação sobre o que são escolas cívico-militares, como elas funcionam e qual o seu impacto em crianças e adolescentes, nos profissionais da educação e nas comunidades ao seu redor.
Para tentar responder essas dúvidas e oferecer um olhar cítico ao modelo de ensino, a Ponte conversou com três especialistas no tema para entender as principais questões envolvidas. Veja as principais dúvidas sobre as escolas cívico-militares abaixo:
O que são escolas cívico-militares? Elas são diferentes de escolas militares?
Desde a revogação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, o Pecim, em 2023, pelo governo Lula, perfis favoráveis ao modelo de ensino divulgam, nas redes sociais, vídeos em apoio ao sistema. Em vários deles, no entanto, o que está sendo mostrado são escolas militares. E colégios militares e colégios cívico-militares não são a mesma coisa.
Escolas militares são aquelas pertencentes às forças militares ou às forças auxiliares – Forças Armadas, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros –, e podem ser federais, estaduais ou municipais. Nestes colégios, todos os aspectos são geridos pelas instituições, que definem as regras de conduta, vestimenta e demais normativas internas. Nas instituições das Forças Armadas há, inclusive, o controle do Ministério da Defesa sobre o conteúdo programático de ensino, ao invés deste aspecto estar subordinado ao Ministério da Educação, como em outras instituições de ensino.
Neles há, também melhor infraestrutura, quadros profissionais com melhores salários e uma forma de seleção do público que quer atender, através de processos seletivos ou de obrigatoriedade de grau de filiação com membro das forças militares, por exemplo. Para Catarina Santos, professora associada da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação, isso é muito importante, afinal são escolas “que, por natureza, já oferecem condições para entregar resultados”.
O mesmo não é verdade quando o assunto são escolas cívico-militares. Nestes colégios, é feita uma adaptação do sistema tradicional de ensino público. Militares passam a ser responsáveis por todos os aspectos não-letivos da escola – organização, código de conduta, regras de comportamento, segurança e atividades extra-classe –, instaurando, em uma escola com os mesmos recursos financeiros e infraestrutura física das demais escolas públicas, um sistema que se pretende superior. Para Adilson Paes de Souza, doutor em psicologia escolar e mestre em direitos humanos, importa-se, na verdade, o pior do sistema militar.
A escola pública deixa de ser, alerta Miriam Fábia, doutora em educação, professora associada da Universidade Federal de Goiás (UFG) e coordenadora da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação, um espaço de formação, exploração e vivência dos jovens, para se tornar um “modelo autoritário que desmonta o princípio constitucional da gestão democrática e da democratização das relações no interior da escola”. Para Souza, esse é um sistema “eugênico, totalitário e bitolante”.
As escolas militares têm o melhor ensino?
O governador de Sâo Paulo Tarcísio de Freitas afirmou, quando sancionou a lei que implementa o modelo no estado, que o objetivo é “fazer com que a disciplina seja um vetor da melhoria da qualidade de ensino”. Mas Santos, Fábia e Souza são categóricos: não existem indícios que levem a crer em superioridade na qualidade de ensino de escolas cívico-militares quando comparadas com escolas públicas civis. O que há, eles ressaltam, é uma alteração no público atendido pelas escolas cívico-militares, o que pode se refletir em um aumento artificial dos resultados escolares.
Isso porque, ao importar do sistema militar regras de conduta, comportamento e vestimenta, o que a escola passa a fazer, os especialistas explicam, é violentar sistematicamente os alunos que não fazem parte do padrão almejado para a escola. Em suma, pessoas periféricas, negras, LGBTQ+, neurodivergentes e demais grupos vulnerabilizados não são acolhidos no ambiente escolar. Pelo contrário, essa nova estrutura os repele, causando uma substituição do público atendido e promovendo, de maneira falsa, pela busca por alunos com melhores condições sociais e econômicas, uma melhora nos índices de ensino.
“Essas escolas, para justificar sua existência, que são melhores que as outras, vão na lógica da entrega de resultados. E aí, para entregar resultados, eles mandam embora os mais vulneráveis, os periferizados”, Santos analisa. “Embora o discurso seja ‘vamos militarizar as escolas de vulneráveis’, o público da escola, após a sua militarização, muda completamente. Quando se estabelece um padrão, aqueles que têm mais marcadores de diversidade no seu corpo, mais violentados serão.”
Ainda assim, Fábia atenta, os índices educacionais de escolas cívico-militares podem até superar o de algumas escolas públicas civis que carecem de quadro profissional, infraestrutura e recursos, mas não surpreendem em comparação com colégios como os dos Institutos Federais. “Não é a militarização, mas um conjunto de fatores para que se possa incidir naquilo que se exige como a qualidade e o rendimento escolar na educação básica”, a professora explica.
Santos reitera a compreensão: “Basta olhar os Institutos Federais, algumas escolas públicas, como o Dom Pedro II [no Rio de Janeiro], escolas de educação básica em vários lugares, o Colégio de Aplicação [em São Paulo], por exemplo, e se verá que a gente tem outras escolas não militares que estão entregando os mesmos resultados das escolas militares”.
Para Souza, há ainda um fator importante ao discutir a qualidade de ensino de escolas cívico-militares: a filosofia que sustenta a educação promovida nesses espaços. Independente do nível educacional, ele alerta, esse ensino não serve para permitir o desenvolvimento pleno do ser humano e a construção de cidadania, mas para extensão do projeto de poder dos militares.
“O treinamento militar visa apagar as diferenças e criar um bloco único, não só de condutas, como filas, maneiras de sentar, levantar, cruzar as pernas e falar, no sentido de que eles querem apagar a individualidade do jovem, mas também que eles também querem apagar a individualidade no pensamento, eliminando o pensamento crítico, porque se você critica, você pode ser punido”, analisa o especialista. “É uma educação única e tão somente para obedecer e cumprir ordens. Dentro de um projeto totalitário, a cidadania plena é aquele jovem que é apto para cumprir ordens e executar o que lhe é mandado sem questionar.”
Escolas cívico-militares são mais seguras?
Escolas cívico-militares inserem, no organograma e no interior das unidades escolares, policiais militares da reserva e terceiriza para eles, entre outras funções, a de segurança da unidade escolar. Ainda que a segurança física da comunidade escolar eventualmente possa ser afetada de maneira positiva pela presença militar dentro da escola, Miriam Fábia contrapõe isso ao explicar que a violência passa, nesse cenário, a ocupar lugar dentro da escola, sendo transferida aos profissionais da segurança, e afetando diretamente alunos vulnerabilizados e os profissionais da educação, que são levados “a um voto de silêncio em relação à tudo aquilo que acontece ali dentro” pela doutrina militar.
Para Santos, escolas cívico-militares introjetam, na verdade, mais violência: “via de regra essas escolas têm vários tipos de violência, porque a militarização em si já é uma violência. Impor essas regras rígidas do quartel à escola já é uma violência, assim como negar a diversidade dos sujeitos, negar as diferentes formas de expressão”, argumenta a professora. “E aí os conflitos dentro dessa escola aumentam. A gente está falando dos conflitos visíveis: das denúncias de racismo, de assédio, de violência física, de expulsão. Não há nenhum dado científico que diga que essas escolas se tornam mais seguras.”
No Paraná, estado gerido pelo governador de extrema-direita Ratinho Jr. (PSD) e modelo para as escolas cívico-militares, o Ministério Público tem recebido denúncias de violências, intimidações e ameaças contra estudantes. Um processo administrativo foi aberto pela promotoria para investigar as denúncias e solicitar providências. Casos de agressão física e sexual por militares contra alunos também foram registrados no Paraná, e as violências não se limitam ao estado.
O que acontece com os alunos que vão mal em uma escola cívico-militar?
Segundo especialistas, escolas cívico-militares fazem, desde a implementação, mudanças no público-alvo das escolas públicas, substituindo gradativamente jovens vulnerabilizados que façam parte do corpo discente por jovens que possuem aderência ao modelo militar. Isso acontece através de violências veladas e explícitas, um conjunto de normativas que viola identidades individuais e uma transferência da disciplina militar para o interior da escola.
Assim, Fábia aponta, é criado “um problema em relação ao acesso e permanência de estudantes nessas escolas”, coibindo que jovens acessem esse espaço e, aos já inseridos nele, promovendo o abandono e a evasão escolar.
Quem ganha com a implementação das escolas cívico-militares?
No discurso dos governos estaduais que implementaram escolas cívico-militares, todos ganham: os alunos, com melhor educação; seus pais, por garantirem a segurança de seus filhos enquanto eles estão na escola; a sociedade, pela formação de jovens cidadãos.
Para Souza, porém, quem ganha são os militares. Segundo ele, escolas cívico-militares expandem a área de atuação militar para todos os aspectos da vida cotidiana, reforçando a ideia que descende da Doutrina de Segurança Nacional [implementada durante a ditadura militar de 1964] de que os militares são a reserva moral da nação – e, portanto, os mais aptos a conduzir qualquer atividade. “A base de tudo está no mito, na ideia propagada de que os militares são a suprema reserva moral da nação. A ideia é que com os militares tudo vai melhorar, o nível de educação vai melhorar, as crianças serão melhor formadas e educadas e nós seremos melhores cidadãos”, analisa. “Ou seja, esse modelo é uma incubadora de cidadãos de bem. É um perigo esse conceito para a sociedade brasileira.”
Mas além de prestígio e de espaço nos serviços públicos, há quem esteja ganhando dinheiro com escolas cívico-militares. Em reportagem publicada no início de junho de 2024, o Metrópoles revelou que uma associação ligada ao Capitão Davi Lima, suplente de deputado federal pelo PL, recebe milhões de reais de prefeituras do interior de São Paulo, em contratos sem licitação, para intermediar a transformação de escolas civis em escolas cívico-militares. O texto levantou contratos da Associação Brasileira de Escolas Cívico-Militares, a Abemil, com ao menos dez municípios, e valores que chegam a R$ 11 milhões.
Quantas escolas cívico-militares existem no Brasil? Em que estados?
Escolas cívico-militares existem em todos os estados da federação. Mesmo após o fim do Pecim, que destinava recursos federais para a manutenção do modelo nos estados, escolas foram mantidas com recursos locais.
Durante a existência do Pecim, foram mantidas 216 escolas no modelo. Após seu fim, ao menos 49 se mantiveram ativas no sistema cívico-militar. Em 2023, existiam cerca de mil unidades mistas nos estados.
Como vão funcionar essas escolas em São Paulo?
Segundo o governo Tarcísio de Freitas, é planejada a criação ou conversão de 50 a 100 escolas para o sistema cívico-militar – o número exato ainda não foi divulgado. O texto prevê que este processo deve levar em conta a vontade da comunidade escolar para o novo modelo, mas ressalta que essas unidades devem estar em locais com alto “índice de vulnerabilidade social”, isto é, na periferia.
A presença militar na periferia sempre significou mais violência e doutrinação dos corpos. Isso é analisado por Flavia Bischain, coordenadora da subsede Oeste do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) e professora da rede pública estadual na Brasilândia, zona norte de São Paulo: “a periferia é justamente onde a polícia tem atuado com mais violência contra a juventude negra, e o que a gente viu na Alesp foi uma pequena demonstração do porque o Tarcísio quer colocar polícia nas escolas, que é para reprimir estudantes. Nitidamente tem um caráter ideológico nessa atuação, inclusive pensando nas eleições, para satisfazer a sua base eleitoral”.
Para especialistas, jovens vulneráveis, que estão constantemente na mira militar, não terão ganho ao conviver diariamente com a doutrina e a supervisão militar, assim como não haverá ganhos à comunidade. Pelo contrário, a expectativa é de que isso amplie as violações de direitos para um local onde elas, até agora, não costumavam ocorrer de maneira sistemática: o ambiente escolar. Fábia explora a lógica da medida: “é a polícia, que comete a violência contra os estudantes que estão em um país democrático manifestando a sua discordância, que é truculenta, que é violenta e que violenta essa juventude, que vai cuidar da educação dessa juventude. Não parece, no mínimo, contraditório?”.
Por que os professores resistem tanto a esse sistema?
Professores e organizações que os representam se opõem ao sistema cívico-militar porque o modelo reduz o papel social da escola pública, ao transformar o ambiente aberto a questionamentos e discussão em um local de submissão a regramentos e disciplina hierarquizada. Isso afeta os jovens estudantes, mas, como pontua Fábia, também os profissionais da educação, que passam a habitar um ambiente em que o silêncio e a censura afetam a todos.
Há também a desvalorização profissional. Em São Paulo, por exemplo, a nova lei prevê, aos militares da reserva que atuarão no interior das escolas, uma verba de gratificação de R$ 5.692,40 ao mês, considerando jornadas de 40 horas semanais. Esse valor será acrescido de 50% se o membro da reserva militar tiver patente de coordenador ou oficial, e se somará aos demais vencimentos do militar. Aos professores, o piso da categoria é de R$ 4.633,44.
Sem formação que os prepare para o trato com crianças e adolescentes, militares receberão mais do que professores para levar, às periferias, a lógica militar. Souza é claro sobre o motivo: “esse é mais um exemplo da conta que nós estamos pagando por termos feito uma transição democrática mal-feita, inacabada. Nós não resolvemos o passado ditatorial e a ditadura está cada vez mais presente na nossa vida, produzindo efeito e mostrando as suas garras. A escola cívico-militar é uma delas”.
Acompanhe todas as mídias do nosso jornal: https://linktr.ee/jornalopoderpopular e contribua pelo Pix jornalpoderpopular@gmail.com