Espaço Cultural: Para celebrar um coração militante

Espaço Cultural: Para celebrar um coração militante

Por: Redação ·

Por Marcela Carvalho, publicado originalmente no jornal O Momento

“Te contarei muitas coisas,
filho. Te criarei tão forte […]”

Fala materna
Jacinta Passos, Poemas Políticos, 1951.

Neste ano em que seguem as comemorações dos 100 anos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a poesia da baiana Jacinta Passos sobrevive não apenas em certas evidências de sensibilidade estética que o caráter processual do refinamento da sua arte literária resguarda, mas naquilo que fundamentalmente evidencia o cerne da nossa contínua inquietação enquanto sujeitos ativos na história e interlocutores comunistas: a defesa do humano e da dignidade do ser social.
Para acender a poesia de uma mulher com coração militante [1], não precisa de muito. Jacinta “recolheu e encontrou no povo” [2] – ao mesmo passo que se desenhava sua trajetória enquanto poeta, jornalista, militante e mãe – o solo das reflexões mais essenciais às suas criações. Entre uma lúcida compreensão acerca do lírico e a vontade de realização artística de fundo humanístico, seu terceiro livro, Poemas Políticos, publicado em 1951, abraça com profundidade poética a realidade concreta e objetiva do terreno social e histórico que vivenciou, transpondo assim, o drama humano onde se descortinavam uma realidade mergulhada entre as angústias e incertezas do cenário pós-guerra.

Sob o palpitar da realidade, Jacinta evoca: “Dizei-me, curva, aonde vou?”

É na sua vocação à esperança e ao desejo de transformação ao celebrar seu encontro com o PCB entres os versos dos poemas “Rio” e “O ano foi vinte e dois” que se revela um equilibrado sentimento em suas palavras. Aqui, debruçada sobre a metáfora, sua escrita apaixonada distancia-se do terreno da ostensividade – onde por vezes operam uma apreensão da realidade superficial na literatura – como quem prepara suas asas para alçar voo “a posição de primeira plana na moderna poesia brasileira” [3]. Se, em sua primeira fase, Jacinta envereda a sua criação entre as paisagens e canções da cultura popular bem como os temas que tocam a infância e a luta das mulheres – e por que não, o amor – como fonte rica e inesgotável de compreensão de “uma vida que vale por si” [4], em Poemas Políticos seu sentimento de mundo, sobre o “rio de águas inúmeras” que figura a imagem do PCB, se eleva com simplicidade e exuberância na forma, ao encontrar a vazão da sua razão poética numa vida de “doçuras e dores” que se entrelaça à vida do Partido, “Esperança nossa”.

O que mais poderia fazer figurar sensível e nitidamente o humano se não seu enraizamento em um rico painel de imagens vividas e imaginadas naquilo que em sua realidade mais profunda a escrita da poetisa baiana Jacinta Passos capta? Ao completarmos memoráveis 100 anos de Partido Comunista Brasileiro “vivo, tão vivo”, que o resgate de seu eu lírico mais maduro, braço da “criatura de desejo e sonho”, seja como o desaguar das possibilidades de pensamento e prática revolucionária onde beleza e verdade se encontram, confiantes na realização do socialismo enquanto nascimento de um novo mundo.

O rio

Tantos rios como eu abriram leito de pedras
e pranto. Um dia perguntávamos:
– Dizei-me, curva, aonde vou? casa tronco rocha sois
aqueles que ficam, minha lei é não parar. Sigo
fio de água, água humilde sou, para onde? Ó curva,
falai. Água de revolta, espuma e ódio nos poros
na garganta no útero, pranto de mulher, água
de fel antigo, quem é meu semelhante? Dizei, aonde vou?
Leito de pedras e pranto. Súbito, próximo,
atravessou olhai, ele!
ali na frente, vivo, tão vivo,
ele sim! o rio das águas inúmeras. Correi
doçuras e dores, punhos, Partido, esperança nossa.
Nascimento

O ano foi vinte e dois

Criatura de desejo
e sonho. Carne e luar na boca das profecias.
Aqui está recém-nascido úmido de lágrimas
e leite, filho das dores, criança concebida
na injustiça.

[1] Extraído de “Jacinta Passos: Coração militante. Obra completa: poesia e prosa, biografia e fortuna crítica” por Janaína Amado. 2010, Salvador.
[2] Janaína Amado sobre Jacinta Passos. Documentário: Se me quiseres amar, 2021.
[3] Antônio Candido, “O poeta e a poetisa”. 1945, Diário de São Paulo.
[4] Canção da Partida, por Jacinta Passos. 1945, São Paulo.

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