por G. Lessa - membro do Comitê Central do PCB
Alguns comentaristas e narradores esportivos estão visivelmente incomodados com as derrotas de seleções europeias para seleções de outros continentes. São, ao mesmo tempo, vítimas e agentes do eurocentrismo. Confundem poder econômico e maior acesso a conhecimento técnico com talento para jogar. Igualadas a parte tática e a preparação física, duas dimensões atualmente acessíveis a qualquer país, o determinante da performance será o estilo de jogo, fundado na história da corporalidade de cada nação.
Os países, grupos sociais ou regiões com corporalidades mais híbridas, menos decalcadas exclusivamente pela contenção dos gestos própria das religiões universalistas (cristianismo, islamismo, budismo e hinduísmo) e do capitalismo, possuem repertório maior para lidar com um esporte no qual a proibição do uso das mãos impõe a utilização coordenada de todas as outras partes do corpo. As misturas ou sínteses de corporalidades possuem forte relação com as formas particulares nas quais o capitalismo se desenvolveu em cada país e região.
Nos lugares nos quais o capitalismo foi implantado mais rápido e em sua forma clássica, a corporalidade das populações tendeu a se empobrecer e enrijecer devido à imposição generalizada de uma rotina de trabalho alienado nas fazendas, fábricas e outras empresas. Surgiu um corpo rígido, austero, regrado, imitador dos movimentos e do ritmo das máquinas, negador das corporalidades pré-capitalistas, que eram muito mais flexíveis. O futebol foi criado no coração da Revolução Industrial como reação operária a esta situação imposta pelas relações capitalistas.
A essência do futebol é a proletária negação das mãos, os instrumentos essenciais do trabalho humano, como estratégia lúdica para superar, pelo menos no espaço do lazer, a alienação do corpo sob o capitalismo. Proibindo as mãos, se cancela a imitação do trabalho e se abre caminho para o resto do corpo atuar em condições de imprecisão, de acaso, de incerteza e de criatividade, o que gera emoções arrebatadoras. Por outro lado, o futebol não nega importantes dimensões da modernidade: por exemplo, o caráter geométrico do campo (racionalismo) e a quantificação da performance em um placar (competitividade). Isto instalará uma tensão permanente entre ludicidade e resultados. Esta resistência operária lúdica ganhará alcance mundial com o espalhamento planetário das ferrovias e indústrias.
No século XX, os estilos de jogar futebol mais eficientes foram criados em países de capitalismo não clássico, sejam coloniais/dependentes ou prussianos: Uruguai, Brasil, Argentina, Itália e Alemanha. Nações cujo atraso relativo da industrialização permitiu por mais tempo a sobrevivência de corporalidades pré-capitalistas, mais preparadas para os desafios motores do futebol, e possibilitaram, ao mesmo tempo, a existência de estádios e dos indispensáveis avanços técnicos na preparação física. Estes estilos de jogar futebol puderam sobreviver, até certo ponto (por meio de escolas, aprendizagem a partir de imagens gravadas etc), ao desaparecimento das condições históricas de sua formação, o que parece ocorrer principalmente nos casos italiano e alemão.
A partir da última década do século XX, complexas e contraditórias mudanças sociais, ideológicas e políticas permitiram a incorporação dos filhos de famílias de imigrantes nas seleções de vários países europeus e asiáticos. O hibridismo de corporalidades resultante elevou a qualidade técnica individual em várias seleções europeias, como a Inglaterra, a Bélgica e, principalmente, a França, que venceu duas copas. Na outra ponta, o maior intercâmbio entre os continentes e os avanços da infraestrutura para o futebol em alguns países da África e da Ásia elevaram o padrão de jogo das seleções destes continentes.
Portanto, no futebol contemporâneo, a Europa introduziu as corporalidades da África e de outras partes do mundo em suas seleções (e clubes) e, no mesmo processo, a África e outras partes do mundo incorporaram avanços técnicos e táticos europeus nas suas equipes. Esta situação diminuiu as diferenças de competitividades entre os continentes durantes a atual Copa do Mundo, explicando as derrotas da Alemanha, da França, da Espanha e da Bélgica para selecionados africanos ou asiáticos. A atual crônica esportiva nunca compreenderá o fenômeno se, primeiro, não superar o eurocentrismo e, segundo, não perceber que o capitalismo tende a moldar uma corporalidade alienada, contrária a todo jogo bonito e mesmo à eficiência dentro de campo.
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