Governo Federal omisso e a inversão da responsabilidade na luta por moradia
Ana Cirilo - Militante da UJC no ES e dirigente do MNLM
O Brasil segue enfrentando um déficit habitacional estrutural que atinge diretamente a classe trabalhadora. De acordo com os dados mais recentes da Fundação João Pinheiro (2022), o país tem um déficit de 5,8 milhões de moradias, ao mesmo tempo em que existem cerca de 6 milhões de imóveis vazios em áreas urbanas, segundo levantamento do IBGE. Essa contradição revela uma realidade cruel: enquanto imóveis ociosos servem à especulação imobiliária, milhões de pessoas vivem sem teto ou em condições precárias.
Nesse cenário, os movimentos populares de luta pela moradia, como o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), cumprem um papel essencial: denunciar a injustiça da terra parada e reivindicar o cumprimento do que já está previsto na Constituição Federal. O artigo 6º estabelece a moradia como direito social, e o artigo 182 determina que a propriedade urbana deve cumprir sua função social. O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) reforça esse princípio ao obrigar o Estado a assegurar que o uso da propriedade atenda ao bem coletivo.
Apesar disso, vemos uma inversão perversa: o Estado burguês, omisso em sua função de garantir moradia digna, transfere para os movimentos populares a responsabilidade de apresentar soluções em tempo recorde, sem interlocutores qualificados para trazerem soluções reais que atendam a voz do povo, que coloque o povo na liderança das negociações — enquanto estes, formados por trabalhadores precarizados, lutam pelo mais básico: o direito de morar.
A criminalização das ocupações é expressão dessa lógica burguesa. O poder público cobra dos movimentos aquilo que ele mesmo não cumpre. Exige que o povo, que já sofre com desemprego e exploração, seja criminalizado e não tenha garantia técnica de executar seu próprio planejamento, enquanto mantém imóveis públicos e privados parados, aguardando valorização pelo mercado. Essa postura não é apenas injusta: é vergonhosa e criminosa. Ao invés de criminalizar o povo, deveria-se responsabilizar o Estado e a burguesia pela manutenção de prédios ociosos que, por lei, deveriam estar cumprindo função social.
Do ponto de vista marxista-leninista, trata-se de mais um exemplo da natureza de classe do Estado: ele atua para proteger os interesses da propriedade privada e da especulação imobiliária, e não os direitos da classe trabalhadora. Como afirmava Lênin, o Estado burguês não é neutro: é um instrumento de dominação de uma classe sobre outra. No campo da moradia, isso se expressa na proteção do lucro dos especuladores em detrimento da vida do povo pobre.
Os movimentos populares de moradia não lutam apenas por um teto. Reivindicam a reforma urbana e o direito à cidade em sua totalidade: habitações dignas, mobilidade urbana acessível e sustentável, saneamento básico, saúde, educação, emprego e espaços de participação popular real. Querem construir cidades inclusivas, inteligentes, com cooperativas de trabalho, cozinhas solidárias e planejamento coletivo, onde o povo tenha voz e decisão sobre o futuro dos territórios.
Diante da iminência de despejos, como o que ameaça a Ocupação José Carlos Luz Marques, no Espírito Santo, fica evidente o caráter seletivo da justiça e do poder público. O governo federal, ao não apresentar soluções efetivas, se coloca como cúmplice da especulação imobiliária e do aprofundamento da desigualdade.
É preciso inverter essa lógica: todo poder emana do povo. E é vergonhoso que o trabalho que deveria ser do Estado — planejar, executar e garantir políticas de habitação — recaia sobre os ombros de trabalhadores já esmagados pela precariedade. Isso é se aproveitar do povo e de seu desespero. É preciso que o Estado garanta que o povo tenha interlocutores e atores nessa luta qualificados. Que tenham condições de perpetuar nossa voz.
O que precisamos neste momento não é de despejo, mas de tempo e condições para negociação que se enquadre dentro das possibilidades cotidianas de trabalhadores, que ainda doam suas vidas e tempo de construção para o bem coletivo. A construção de projetos de moradia popular exige qualificação técnica, debates internos e articulação com aliados nessa luta — e isso não se resolve da noite para o dia.
Cada ocupação nasce de uma emergência, porque famílias não têm para onde ir, mas se consolida como parte de um processo coletivo e duradouro.
É necessário que esse processo seja respeitado, sem pressões ou remoções forçadas, garantindo que o povo tenha espaço para decidir como quer morar e para construir soluções que sejam justas e sustentáveis.
Ao invés de despejar famílias, o governo deveria estar sendo processado por manter imóveis públicos em desuso. Porque o verdadeiro crime é do Estado: abandonar prédios do povo enquanto o povo dorme na rua.
Todo poder vem do povo. E é com organização popular que vamos conquistar cidades justas, inclusivas e construídas por quem nelas vive e trabalha.
Não se trata apenas de moradia. Trata-se do direito pleno à cidade, da construção de uma sociedade onde a vida esteja acima do lucro, e em que a organização popular seja reconhecida como motor de transformação.
Não é o povo organizado que deve ser criminalizado, mas sim o Estado que mantém imóveis em desuso e se omite diante de uma emergência habitacional. O verdadeiro crime é deixar de cumprir a Constituição, em não respeitar o planejamento e garantir o tempo para que o povo atue e dite suas próprias reivindicações.
Não iremos nos render a pressões ou manobras políticas que em nada respondem às nossas necessidades reais. Convocamos o Governo ao diálogo, para garantir nossa permanência e, sobretudo, o respeito à nossa organização popular. É preciso respeitar o tempo do povo trabalhador — tempo que não pode ser sequestrado apenas para enriquecer os de cima, esgotando nossos corpos e nossas mentes em rotinas que nos roubam o direito de viver, de organizar e de decidir sobre nossas próprias vidas. Quando esse tempo é negado, o que se perpetua é a dominação de uma classe cruel, que suga até o último centavo da nossa força de trabalho e ainda ousa colocar nossas famílias na rua. Nós afirmamos: nosso tempo é de luta, de construção coletiva e de conquista do direito à cidade, não de exploração e expropriação.
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