Imperialismo, relações étnico-raciais e lutas anticoloniais

Por: O Poder Popular ·

Por Jacqueline Botelho - Doutora em Serviço Social.Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da UFF/Niterói. Líder do Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Projetos Societários, Educação e Questão Agrária na Formação Social Brasileira e militante comunista do PCB e do Coletivo Negro Minervino de Oliveira;

Muniz Ferreira - Doutor em História Econômica. Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Relações Internacionais [Lieri] e membro do Comitê Central do PCB;

Márcia Lemos - Doutora em História Social. Professora do Departamento de História e do Programa de Pós Graduação em Letras:Cultura, educação e Linguagens da Universidade do Sudoeste da Bahia. Líder do Laboratório de Estudos Marxistas – UESB.

A revista Germinal, neste número, expõe um conjunto de reflexões que analisa o combate ao racismo pelo viés da construção permanente e intransigente da revolução socialista. Convictos de que o caminho até a revolução brasileira é germinado pela filosofia da práxis – questionada quanto às suas possibilidades de contribuição ao aniquilamento das opressões, especialmente pela ação burguesa penetrada nas lutas sociais, via ação ultraliberal e conservadora no Estado brasileiro, empenhado no anticomunismo e na fragilização das lutas pelo pacote de contrarreformas, hasteando a bandeira do empreendedorismo –, apresentamos um material de pesquisa que reafirma a atualidade da categoria classe social para a interpretação das opressões étnico-raciais, especialmente quando partimos da premissa de que raça e gênero informam a classe sobre quem ela é, e como se movimenta. Isto nos faz afirmar não ser possível ler a classe trabalhadora sem o debate étnico-racial, o colocando na centralidade da luta de classes.

Quando a guerra mundial de 1914-1918 versava sobre a redistribuição das colônias, na contemporaneidade capitalista, a guerra de todos os dias tem o Estado capitalista como protagonista na livre abertura dos territórios, com a desregulamentação dos mercados e superexploração da força de trabalho pelas transnacionais, que ameaçam a sobrevivência de grandes populações pela degradação ambiental e concentração fundiária, capazes de impor a morte no campo e na cidade. A partir disto, o capitalismo assume novas determinações nos territórios, alinhadas com a perda de soberania nacional, extração de sobretrabalho e redução da capacidade de produção nos países que ocupam um papel de subordinação em escala planetária. Cresce o investimento no individualismo como uma das ideologias motoras do desenvolvimento capitalista, abrindo sendas para a consolidação do empreendedorismo como alternativa à classe trabalhadora. Tal estratégia, estabelece elos importantes entre capitalismo, racismo e sexismo, posto que torna do indivíduo o que é da sociedade. No caso do encontro com o racismo, ajuda a identificar na grande maioria da classe trabalhadora indivíduos classificados pela “raça” e cor como naturalmente desajustados e não-empregáveis, restando-lhes os postos de trabalho mais precarizados (BOTELHO,2022).

Com isso, o racismo autoriza que o Estado seja livre para realizar e incentivar investimentos onde possa haver “retorno”, na mercantilização da vida social. Sob a lógica racialista, os territórios majoritariamente negros (favelas, quilombos, assentamentos) são condenados como territórios “atrasados” (pela suposta incapacidade natural dos seus habitantes), e perigosos, onde justifica-se o baixo investimento do Estado em políticas públicas para esta população (reforma agrária, educação, saúde, saneamento básico) e a violência como mecanismo de controle. Dessa forma, a ação capitalista volta-separa o controle sobre territórios e corpos negros,criminalização de experiências de movimentos populares que buscam apontar alternativas ao capitalismo. Como tática de convencimento, utiliza-se a propaganda da guerra às drogas, ao mesmo tempo em que cresce a indústria de armas, favorecendo o capitalismo pela eliminação e isolamento dos inimigos potenciais ao sistema e ampliação de lucros pelo controle de armamentos (BOTELHO,2022).

Lenin (2008) fala sobre os caminhos-de-ferro abertos no século XIX, que pareciam constituir-se de forma civilizadora por aqueles que embelezaram a escravização moderna. A partir da denúncia da subjugação colonial e do estrangulamento financeiro da grande maioria da população do planeta por uma pequena parcela de países, Lenin aponta as marcas de sangue e suor deixadas pelo capitalismo, que por sua vez está muito longe da propriedade privada conquistada pelo trabalho do pequeno patrão, da livre concorrência e da democracia, que foram palavras de ordem para o recrutamento de operários e camponeses. O pensamento marxista, que toma a história do capitalismo e a trama das relações sociais de (re)produção da existência, assim como as instituições que as sustentam, como determinantes da sociabilidade burguesa, fornece a chave para a compreensão dos processos de expropriação, cercamento de terras e escravização, indicando a associação histórica entre capitalismo e racismo, que tem no colonialismo a construção da objetividade esmagadora, capaz de garantir que o continente africano seja tomado como representação do atraso ainda na atualidade.

O ganense N’Krumah expôs os limites para o aproveitamento das potencialidades econômicas do continente africano. Tratava-se de um território de extensiva fragmentação político- territorial, com dependência absoluta das tecnologias industriais, capitais estrangeiros, atraso da agricultura e controle ostensivo das riquezas naturais pelos monopólios ocidentais, representando o pior legado do colonialismo (FERREIRA, 2002).

Apesar de ser apresentado pelo sistema de opressões como uma barreira possível de ser transposta nessa ordem societária, o racismo aparece na sociedade capitalista como um pilar inegociável para a manutenção da estrutura de exploração e produção de mais-valor. Ele atua como arma ideológica de dominação e opera via consenso na naturalização da pobreza e da desigualdade. Neste sentido, buscar combater a desigualdade apontando apenas para a generalidade da classe, tornaria invisível a maioria negra da população.

É necessário avançar no conhecimento e compreensão sobre o modo de vida da população negra e indígena, seus saberes e cultura que, apesar de servirem como resistência, foram antes violentados pelo capitalismo, desde a acumulação primitiva do capital até a ação devastadora de expropriação de terras quilombolas, indígenas e ribeirinhas, que destroem progressivamente as condições de manutenção do modo de vida de trabalhadores rurais, povos e comunidades tradicionais. Sobretudo, o racismo produz na sociedade o convencimento de que a população negra, quilombola, indígena não tem competência para ocupar terras e produzir sobre elas, posto que seria a ação capitalista a portadora do desenvolvimento civilizatório. Tais premissas, para além de serem desconstruídas pela luta das comunidades, de intelectuais docentes organizados nas instituições de ensino, de mulheres negras que estruturam ações nas periferias das cidades e que preservam a cultura negra,necessitam ser analisadas em suas determinações e contradições, e é sob esse aspecto que este número também contribui.

O racismo sabota as análises sobre desemprego estrutural, questão agrária e urbana, precarização da educação, entre outras que interessam à classe trabalhadora, posto que produz, pela relação orgânica com o modo de produção capitalista, uma objetividade esmagadora, capaz de criar, como condição natural, um “lugar de negro”, que é um lugar da escassez material, da ausência de condições dignas de saúde e moradia, de formação escolar.

Partimos da compreensão de que não existe capitalismo sem racismo, e que o aprofundamento do segundo garante condições perversas de exploração da força de trabalho. A ação colonialista no Brasil é reforçada pelas relações que sustentam o capitalismo dependente e toda a sua organização voltada à superexploração do trabalho, em um país que sai da sociedade escravista para uma sociedade capitalista dependente. O Estado que controla a mão de obra escrava,aprofunda a sua estratégia de violência na sociedade capitalista, onde se torna mais sofisticada pela elaboração das políticas de segurança pública.

A chamada “independência do Brasil” revelou o Estado brasileiro, em sua formação e origem, comprometido com interesses dominantes externos na manutenção da dependência do país em relação à Portugal e Inglaterra, em que pesa o fato de “o primeiro Imperador brasileiro ter sido filho do rei de Portugal; ele foi Pedro I no Brasil e Pedro IV, algum tempo depois, em Portugal” (COUTINHO, 2006, p.175).

A feição antidemocrática, assumida pela “revolução burguesa no Brasil”, sustenta o processo de desigualdade de temporalidades históricas, na medida em que a transição do capitalismo competitivo ao monopolista no país ocorre por caminhos que fogem ao modelo universal de democracia burguesa, ou seja, a burguesia brasileira nunca possuiu forte orientação democrática e nacionalista, direcionada à construção de um desenvolvimento interno e autônomo. Ao contrário, a transição democrática foi marcada por uma forma de dominação burguesa que Florestan Fernandes (1976) qualifica de democracia restrita. Isto é, restrita aos membros das classes dominantes que universalizam seus interesses de classe para toda a nação, através da mediação do Estado e de seus organismos privados de hegemonia. O que significa dizer que “o país transitou da ‘democracia dos oligarcas’ à ‘democracia do grande capital’, com clara dissociação entre desenvolvimento capitalista e regime político democrático” (IAMAMOTO, 2007, p.131).

Os negros representaram o contingente populacional massivo segregado na sociedade capitalista no pós-abolição, cujo desafio torna-se, para além de demonstrar objetivamente esta segregação – como política de classe operacionalizada pelo Estado desde então –, denunciar permanentemente o mito da democracia racial,uma estratégia de dominação burguesa.Foram quase quatro séculos de trabalho compulsório negro no Brasil, como parte do processo de acumulação primitiva experimentado por países como Inglaterra, França,Espanha e Portugal, garantindo, a partir da criação da unidade escravo-mercadoria, relações sociais permanentes de estratificação, com forte hierarquia e subordinação entre senhores e escravos. A escravização no Brasil para o negro representou algo diverso do que foi experimentado no continente africano, posto que, nesse processo, foi transformado em mercadoria (MOURA, 1988). No pós-abolição, setores conservadores se ocuparam na produção de uma historiografia racista sobre o negro brasileiro, fundamentada no eugenismo, e produtora de um apagamento da história da resistência negra à escravização.

O racismo estrutural é capaz de organizar formas expressivas de “exclusão” do negro do acesso ao trabalho e à escola. Em nossa formação sócio-histórica, o negro no escravismo foi tratado como “besta selvagem”, e, na sociedade capitalista, se aproxima da figura racialista do “matuto”, que nada seria capaz de produzir e criar sobre a terra, restando-lhe a condição de retirante. Nesta sociedade, estas representações estão vivas e se manifestam explicitamente pela discriminação e perpetuação da naturalização das desigualdades sociais promovidas pelo capitalismo, que atribui diretamente as causas da pobreza e violência à “natureza” da população negra e indígena.

A historiografia sobre o negro brasileiro oculta que, no pós-abolição, havia três portas fechadas para o negro no Brasil:o acesso à terra, o acesso à escola e o acesso ao trabalho. Ela nega a política de embranquecimento da população, a ação eugenista do Estado, assim como a educação racista no Brasil,que traz como referências Monteiro Lobato (escritor que manteve correspondências com Renato Kehl,um dos expoentes do pensamento eugenista no Brasil,com a finalidade de pensar formas de livrar o país dos negros). Clóvis Moura (2019) denuncia que os estudos sobre o negro são o reflexo da estrutura da sociedade brasileira, e irá destacar que o nosso pensamento social foi quase todo influenciado pela ideologia do colonialismo.

A violência como forma de fazer política está presente em nossa formação social. Nas Américas, a experiência da escravidão moderna apresenta como farsa a liberdade prometida pelo liberalismo. Aos negros não restava alternativa a não ser a condição servil.A existência da população negra nas Américas é a denúncia da violência empregada contra negras e negros. Chegaram pela violência capitalista e permanecem ocupando o lugar de classes perigosas, que, para a estratégia racista de dominação, devem ser perseguidas, encarceradas e silenciadas. O Estado brasileiro em sua formação constituiu aparatos de tortura contra o povo negro para afirmar o poder político das classes economicamente dominantes. O negro e a mulher negra passam a representar tudo aquilo que não se quer ser. A negação da humanidade, não apenas como justificativa para os senhores escravizarem, mas também na atualidade, como presença de um corpo que justifica a necessidade da violência do Estado. A religiosidade africana, o jongo, a capoeira são ainda hoje tomados como profanos, e aos negros, especialmente quando mulheres negras,foi reforçada a exploração sexual de seu corpo e autorizados abusos de ordem física e psicológica.

O racismo, na medida em que anda de mãos dadas com a meritocracia, e, na atualidade com a empregabilidade e com a pedagogia das competências, encontra abrigo na sociedade de classes. A produção neoliberal da imagem de uma sociedade civil harmônica, com ausência de conflitos, garante uma aparência de enfrentamento ao racismo, tomado como elemento que transborda nas relações humanas em atitudes de preconceito e discriminação, fruto de ações individuais. Tal imagem, seduz à uma leitura do racismo em sua aparência, ou seja, meramente como reação. No plano das reações, o capitalismo convida para interpretações imbuídas de subjetivismos, que desconsideram a relação entre objetividade e subjetividade na reprodução social da vida.

Neste número da revista Germinal queremos trazer o grito negro como aquele que reconhece a identidade historicamente produzida para lhe oprimir, mas que afirma a sua existência para denunciar que a vida de negros e negras é permanente luta pela liberdade. Somos chamados a pensar sobre isto não apenas quando a condição geral de vida da população degenera, mas desde o primeiro olhar e ação que nos classificam como negros. Obviamente não podemos realizar essa reflexão negligenciando a existência histórica do embranquecimento como estratégia de cooptação racista.Esse debate torna-se esvaziado, quando não olhamos novamente para a classe, sem a qual escapam toda a organização do sistema de opressões, capaz de colocar brancos contra negros, negros contra negros, trabalhadores contra trabalhadores. Vamos precisar perguntar como os dominantes dominam, como os ricos enriquecem, como “os senhores”de hoje se mantém no poder e justificam a violência como necessária.

Tais reflexões evidenciam a atualidade do debate sobre Imperialismo, relações étnico-raciais e lutas anticoloniais. Nesta perspectiva, o Dossiê é aberto na seção Entrevista, de forma extraordinária, com as análises de dois intelectuais, historicamente comprometidos com o desvendar da aparência fenomênica dos temas em tela e engajados nas lutas pela emancipação real da classe trabalhadora. Estamos falando de José Luís de Oliveira Cabaço e Wilson do Nascimento Barbosa, que dispensam apresentação, mas que o faremos brevemente em homenagem às suas trajetórias. Cabaço foi um dos líderes da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), hoje é professor emérito da Universidade Técnica de Moçambique, sua tese Moçambique: identidades, colonialismo e libertação foi premiada pela Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e publicada em 2009 pela Editora Unesp. Wilson Barbosa, historiador e economista, professor da USP, autor de vários livros,foi militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e também atuou no governo da Frelimo. Eles responderam um conjunto de questões elaboradas pelo Comitê editorialda revista. A primeira entrevista é de José Luís Cabaço e apresenta uma análise rigorosa do processo de independência de Moçambique. A segunda é de Wilson Barbosa e aborda a luta contra o racismo e a nova agressão fascista no Brasil.

Na seção Debate estão reunidos vinte e três artigos de pesquisadores e pesquisadoras, oriundos/as de diversas partes do Brasil, que têm se dedicado à produção do conhecimento sobre as determinações do imperialismo, das relações étnico-raciais e das lutas anticoloniais como constitutivas da forma societária capitalista no século XXI.

O primeiro texto é de Cristiane Luíza Sabino de Souza, autora do livro Racismo e luta de classes na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente, publicado pela Hucitec, professora do Departamento do Serviço Social da UFSC. No artigo,a autora apresenta um instigante debate sobre a relação entre racismo e superexploração da força de trabalho no Brasil, articulado ao capitalismo dependente latino-americano e a ideologia da “branquitude”.

Em seguida, Deivison Faustino e Walter Lippold trazem para a leitora e o leitor as categorias do colonialismo digital, da acumulação primitiva de dados e do racismo algorítmico no sentido de atualizar as análises sobre reificação e mercantilização das relações sob a ação do imperialismo e do subimperialismo no mundo contemporâneo.

Lorraine Marie Farias de Araujo aponta como o capital, durante o processo de colonização, produziu o racismo estrutural e o relaciona com as categorias desumanização, fetiche da mercadoria e alienação. Na mesma senda, Guilherme Pessoa Dutra afirma a constituição de sociedades capitalistas racializadas que criaram o negro como um não-ser em “conexão com a dinâmica das estruturas produtivas e reprodutivas.” No artigo do José Geraldo da Costa, a resistência da população negra, escravizada no Vale do Paraíba, chama a refletir sobre o Jongo (Caxambu) como parte de uma tradição que se consolidou no conflito.

Na sequência, Rian Ferreira Rodrigues percorre a polissemia do conceito ideologia para discutir as determinações do racismo e superar a aparência do fenômeno em benefício de uma construção efetiva de sua suspensão. Já Marcos Augusto de Castro Peres, Ariane Moreno da Silva Reis e Marcela Souza do Nascimento revisitam o racismo estrutural na obra de Silvio de Almeida a partir do materialismo histórico no sentido de pensar a questão racial brasileira. E Dayanade Souza convida a leitora e o leitor a examinar as determinações da forma societária capitalista que envolve a empresa colonial e marca o genocídio da população negra no Brasil,no passado e no presente.Seguindo ainda nesta perspectiva, Paulo Roberto Félix dos Santos, Laryssa Gabriella Gonçalves dos Santos, Gabriel Seixas Silva, Maxsuelly Santos e Rafaella Vitória Silva de Carvalho destacam a articulação entre neoliberalismo, “controle sociorracial” e “disciplinamento” operado pelo Estado contra a classe trabalhadora racializada no sistema prisional de Sergipe.

Com Miléia Santos Almeida, o Dossiê abre espaço para as reflexões teóricas que abordam o trabalho produtivo e reprodutivo das mulheres na sociedade capitalista e patriarcal. Dialogando com a tradição marxiana e a epistemologia feminista contemporânea, a autora provoca o debate sobre o processo de colonização e a constituição de um capitalismo generificado e racializado. Nesta mesma linha, Rayane Noronha Oliveira articula o conceito de “Justiça reprodutiva” e democracia para a população negra no intuito de discutir a emancipação humana a partir das contradições do sistema capitalista, que engendra relações sociais racistas e cisheteropatriarcais. Rhaysa Sampaio Ruas da Fonseca propõe-se a fazer um balanço dos escritos “tardios” de Marx e das formulações de intelectuais negros, negras e periféricos acerca da raça, gênero e classe sob o arco do marxismo amefricano ou atlântico, pensado a partir da Teoria Unitária.

Suelen Julio traz a temática da educação antirracista com foco na superação dos estereótipos criados para as mulheres indígenas, chamando a atenção para a exiguidade de pesquisas sobre os povos originários e a necessidade de localizá-los como sujeitos sociais na formação brasileira. Também destaca a premência de uma educação ampla e consistente de enfrentamento ao racismo. Ana Joza de Lima, Susana Jimenez e Valdemarin Coelho Gomes, tendo como referência o estudo da obra da antropóloga marxista estadunidense Eleanor Leacock, refletem acerca da educação como forma de opressão de gênero e estrutura de dominação conforme empregada pelo Programa jesuítico para disciplinar os povos montagnais-naskapi no Canadá.

Sara de Araujo Pessoa, Fernanda da Silva Lima e Felipe de Araujo Chersoni retomam a denúncia sobre a violência estatal, em específico do sistema de justiça penal, a partir do estudo do “Movimento Mães de Maio”, de modo a destacara importância das mobilizações populares nas lutas contra o encarceramento em massa e o genocídio da população negra periférica do Brasil, consideradas a partir das determinações que marcam o capitalismo dependente no país.

Aruã Silva de Lima elege para seu artigo uma análise necessária acerca da “questão negra”,sob a perspectiva dos comunistas brasileiros e do movimento comunista internacional, entre 1923 e 1929. O autor aponta para as limitações da direção do PCB no efetivo combate ao racismo no período,assim como destaca a dificuldade para a construção de uma agenda antirracista pelo Partido marcada pelos debates internacionais. Pedro Costa e Kíssila Mendes são ousados na crítica a atual “guerra às drogas” ao analisar as formulações do Marx sobre as Guerras do Ópio, associando anticolonialismo, antiproibicionismo e antiimperialismo.

Gustavo Koszeniewski Rolim reforça no Dossiê as análises em torno de formações socioeconômicas marcadas pela ação imperialista e lutas anticoloniais. O autor aborda as publicações brasileiras que refletiram acerca de Guiné-Bissau e Cabo Verde em seus processos de libertação nacional, destacando uma produção que trata da realidade africana balizada pelas preocupações dos intelectuais que vivenciam a “abertura” da Ditadura Civil-Militar brasileira (c. 1978-1985). Amanda Vega Hidalgo presenteia a Germinal com um estudo cuja centralidade é um pequeno país africano, Djibuti,marcado pelo “investimento em grandes projetos de infraestruturas financiados pela China”.

O artigo ilumina o movimento do capital internacional no século XXI e os eixos que determinam, de forma dialética e histórica, à economia africana a sua condição de periferia. Fernando David Márquez Duarte e Lidia Suárez Sánchez apresentam uma análise diacrônica e sincrônica da guerra na Ucrânia. Para cientistas sociais é sempre um desafio perscrutar fenômenos hodiernos como observadores diretos. Este esforço resultou numa escrita que aborda a complexidade da disputa imperialista na região e a legitimação de políticas autoritárias, repressivas e racistas que, longe de mitigar a violência, enseja a guerra, expropria a classe trabalhadora local e fecha as fronteiras para migrantes africanos e árabes pobres. O texto do Daniel Alves Azevedo mantém o debate sobre a violência, localizando-a como uma forma intrínseca ao colonialismo europeu,enquanto um procedimento de dominação que se reproduz na atualidade sob as marcas da racialização. Para fazê-lo, dialoga com Aimé Césaire, Frantz Fanon, Achille Mbembe, Silvio Luiz de Almeida, Stephen Graham e Marc Ferro.

Eduardo Maia, na contramão dos modismos acadêmicos, perfeitamente difundidos pelo mercado editorial, coloca em discussão o conceito de necropolítica como uma ferramenta teórica, do historiador camaronês Achille Mbembe. O faz a partir do exame da biopolítica e contesta o diálogo entre Mbembe e Marx. Públio Dezopa Parreira traz “apontamentos sobre a dialética entre liberdade e emancipação”. Em que pese não ser um artigo que trata do tema central do Dossiê, consideramos que ao problematizar os distintos matizes que perfazem o debate sobre “Imperialismo, relações étnico- raciais e lutas anticoloniais”, é mais do que necessário “deslocar o problema da liberdade formal do homem abstrato para a emancipação humana”, como Marx o fez e Dezopa destaca em sua análise.

A seção dos Artigos é aberta com o texto “Materialismo e dialética na tese de doutoramento de Marx”, de Michael Gonçalves Cordeiro. Nele busca-se demonstrar os fundamentos da filosofia de Epicuro e suas influências nos estudos de Marx sobre o materialismo histórico-dialético. A seguir, André Dioney Fonseca e Maria Lília Imbiriba Sousa Colares iniciam um conjunto de reflexões, caras ao escopo da Germinal, que tratam da privatização da educação à luz de István Mészáros,expondo os limites das políticas reformistas e a urgência de um sistema educacional que supere a contradição capital-trabalho. Priscila Monteiro Chaves e Guilherme Luiz Formigheri Fuá de Lima retomam a contrarreforma do Ensino Médio a partir do estudo do Instituto iungo na Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina. Depreende-se dessa experiência, a valorização do individualismo e do voluntariado de forma acrítica ao processo de divisão social do trabalho e sua expropriação pelo capital. Alzira Lobo de Arruda Campos, Rafael Lopes de Sousa e Luiz Antônio Dias analisam “a versão dos primeiros trotskistas brasileiros sobre educação popular,registrada em dois cursos oferecidos na sede paulista da União dos Trabalhadores Gráficos, em 1933.” O artigo debate a dissidência no interior do Partido Comunista Brasileiro no período, as perspectivas sobre uma “escola proletária” e formação de uma vanguarda revolucionária.

Ana Beatriz dos Santos Carneiro, Carlos Henrique Ferreira Magalhães e Marcelo Paula de Melo apresentam um conjunto de reflexões sobre a formação da Educação Física no Brasil enquanto área de conhecimento, centrando esforços em debater a criação de um setor progressista ou campo crítico, influenciado pelas ideias de Paulo Ghiraldelli Junior,na década de 1980 do século XX, e suas aproximações, ou não, com o marxismo. Júlio César Maia e Michele Silva Sacardo mantêm a Educação Física como objeto de pesquisa, mas passam a analisar as Diretrizes Curriculares Nacionais. A Pedagogia Histórico-Crítica referencia a avaliação do “ideário neoliberal” presente nas Diretrizes e propostas de formação para os profissionais da área.

José Antonio Dias e Geraldo Augusto Locks retomam a imprescindível crítica a BNCC a partir do estudo da Geografia e da problematização da interdisciplinaridade na realidade brasileira. Lucas Martins de Avelar, Leandro Jorge Coelho, Simone Sendin Moreira Guimarães e Rones de Deus Paranhos encerram a seção Artigos, avaliando a apreensão dos conceitos na formação dos docentes da Biologia. A partir da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica, a análise aponta para a necessidade dos conceitos tornarem-se um saber no processo de desenvolvimento humano e não abstrações destituídas de sentido.

Na seção Clássico/Documentos, a Germinal tem a honra de apresentar o texto “O delírio racial como inimigo do progresso humano”, de György Lukács, publicado originalmente em 1956, aqui traduzido por André Figueiredo Brandão. Lukács expõe uma refinada análise sobre a trajetória do nazismo e como este fundamenta sua legitimação na teoria racial,apontando a destruição desse regime de opressão e dominação racial como condição salutar à humanização da humanidade. A atualidade desconcertante deste clássico marxista, também toma forma no manuscrito “O genocídio”, de Pier Paolo Pasolini, traduzido por Anita Helena Schlesener, divulgado em 1995, mas nascido de uma intervenção oral na festa do jornalL’unitàde Milão no ano de 1974. O cineasta, poeta e escritor traz reflexões sobre a realidade italiana do seu tempo, cuja analogia com a atual sociedade do consumo, simulada sob a ficção da liberdade e tolerância, produz passividade, consenso e imobilização.

Seguem nesta seção dois documentos que registram algumas das controvérsias presentes na história do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que completa 100 anos de existência e luta em 2022. O primeiro, “Brasil – A fascistização do Estado na transição do Capitalismo subdesenvolvido ao Capitalismo monopolista de Estado dependente e associado ao Imperialismo”, é a intervenção do Luiz Carlos Prestes no Seminário latino-americano, realizado em Moscou, em 1977, por ocasião do 60º aniversário da Revolução de Outubro. O texto é apresentado por Anita Leocadia Prestes e transcrito por Luzia Beatriz Ramos Alves. O segundo é um extrato do depoimento de Otávio Brandão ao CPDOC/FGV, em 1977, cujo preâmbulo foi formulado pelo Filipe Leite Pinheiro, que polemiza os “Cinquenta anos de ostracismo” do histórico militante comunista.

Na seção Resenhas, com a instigante contribuição de Carlos Zacarias Figueirôa de Sena Júnior, inauguramos com o filme Marighella, de Wagner Moura, produzido no Brasil em 2019, a abertura da Germinal para análise de produções culturais. E André Almeida Santos apresenta de forma didática o livro Formas e tendências de precarização do trabalho docente:o precariado professoral e o professorado estável-formal nas redes públicas brasileiras, escrito por Amanda Moreira da Silva e publicado em 2020 pela CRV.

Por fim, a revista Germinal, sempre atenta aos temas conjunturais e a necessidade de partilhar o conhecimento produzido pela humanidade, apresenta este número imbuída do sentido de contribuir e ampliar o debate sobre as determinações que demarcam a forma societária capitalista, generificada e racializada no século XXI. Nosso agradecimento a todas as pessoas envolvidas nessa complexa engenharia: leitoras e leitores, autoras e autores,avaliadoras e avaliadores, equipe e comissão editorial!

Que a luta pela emancipação da classe trabalhadora seja uma constante, mas que a “vida seja leve”, pois àqueles/as que produzem a riqueza do mundo cabe o “bom, o belo e o justo”!

Referências:

BOTELHO, J. A fase contemporânea do imperialismo e o aprofundamento do racismo como estratégia de dominação.In: FERNANDES, L.E. (org.). Introdução ao imperialismo tardio. São Paulo: Ruptura Editorial; Lavra Palavra, 2022.p.225-247.

COUTINHO, C. N. Intervenções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2006.

FERREIRA, M. A engenharia da subordinação – os Estados Unidos e o subdesenvolvimento africano nas décadas de 80 e 90. Caderno CRH, Salvador: UFBA, V. 15, n.36, p. 127-136, jan./jun. 2002

FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1976

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2002. 6 v.

IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007.

LENIN, V. I. O programa agrário da social democracia na primeira Revolução Russa de 1905-1907. São Paulo:Livraria Editora Ciências Humanas, 1980.

LENIN, V. I. O imperialismo: fase superior do capitalismo. Trad. Leila Prado. São Paulo: Centauro, 2008.

MOURA, C. Rebelião na senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Ciências Humanas, 1988.

MOURA, C. Sociologia do Negro Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.

Publicado originalmente em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/issue/view/2315

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