
“israel” matou quase 3.000 palestinos que procuravam comida em Gaza
Por Riley Sparks - Jornalista canadense especializada na cobertura de migrações e direitos humanos. Reportagem publicada no The New Humanitarian em 15/09/2025. - Site da FEPAL
Esses ataques configuram crimes de guerra, crimes contra a humanidade e atos de genocídio, indicam especialistas
Nos últimos 23 meses, as forças israelenses mataram quase 3.000 pessoas que tentavam conseguir ajuda na Faixa de Gaza e feriram quase 20.000 outras. Há mais de um ano, o The New Humanitarian vem conduzindo uma investigação de código aberto documentando essas mortes, que agora estamos publicando como um banco de dados e uma linha do tempo de acesso público.
Desde o final de maio, quando a Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla em inglês), apoiada por EUA e Israel, começou a operar, os ataques contra pessoas que buscavam ajuda aumentaram dramaticamente, atraindo atenção e condenação mundial.
Mas esses ataques não são uma aberração. Eles representam a intensificação de uma tática letal que tem sido uma parte central da estratégia israelense – uma tática que ajudou a precipitar uma fome, permitir o massacre agora rotineiro de pessoas que tentam coletar comida e outros suprimentos essenciais, e negar aos palestinos as necessidades básicas para sustentar a vida em Gaza.
Nosso banco de dados contém informações sobre quase 200 ataques contra pessoas que buscavam ajuda em Gaza entre janeiro de 2024 e o final de julho deste ano, resultando em mais de 1.200 mortos e quase 4.700 feridos. Esses números são uma estimativa conservadora e não incluem ataques ou números de vítimas nas proximidades dos locais da GHF, que abriram em 27 de maio. Suspendemos nossa documentação no final de julho para termos tempo adequado de checagem dos fatos antes da publicação.
Com as mortes próximas aos locais da GHF adicionadas – assim como os números do escritório de direitos humanos da ONU (OHCHR) sobre vítimas relacionadas à ajuda em outras partes de Gaza em agosto e início de setembro – o total cumulativo de ataques israelenses contra pessoas em busca de ajuda chega a pelo menos 2.957 mortos nos últimos 23 meses. Nesse mesmo período, pelo menos 19.866 pessoas ficaram feridas, de acordo com nossa documentação e números do ministério da saúde em Gaza.
Isso representa cerca de 4,6% das mais de 64.600 mortes registradas pelo ministério da saúde em Gaza durante esse período, e pouco mais de 12% de todos os feridos.
“Esses não são incidentes isolados. Não são apenas incidentes semelhantes. São um padrão e refletem uma política e uma aceitação, por parte do Estado, de que isso deve continuar indefinidamente”, disse Adil Haque, professor de direito internacional na Universidade Rutgers, nos EUA, um dos vários especialistas jurídicos com quem o The New Humanitarian compartilhou as conclusões do banco de dados antes da publicação.
Esses especialistas disseram ao The New Humanitarian que esses ataques repetidos são graves violações do direito humanitário internacional que provavelmente configuram crimes de guerra, crimes contra a humanidade e atos de genocídio.
Tanto a frequência dos ataques quanto o número de vítimas aumentaram dramaticamente desde o final de maio, quando a GHF – apoiada por EUA e Israel – começou a operar e Israel passou a permitir uma quantidade limitada de ajuda no norte de Gaza. Antes disso, registramos 663 mortos em ataques israelenses contra pessoas que buscavam ajuda. Em pouco mais de três meses desde então, quase 2.300 pessoas foram mortas.
“Se os líderes israelenses fossem simplesmente indiferentes à morte de tantos palestinos que buscavam ajuda, sem se importar de um jeito ou de outro, então a condenação internacional e a responsabilidade potencial por crimes de guerra deveriam ser suficientes para levá-los a mudar suas políticas e impedir ou reprimir tais mortes. Mas a indisposição deles em arcar com tais custos é uma evidência de que pretendem que essas mortes continuem”, disse Haque.
Observando os incidentes ao longo do tempo, emergem padrões claramente discerníveis mostrando como Israel tem usado os ataques contra pessoas em busca de ajuda como uma ferramenta para diferentes propósitos em diferentes momentos da guerra: controle de multidões letal, deslocamento forçado e destruição da capacidade coletiva dos palestinos em Gaza de sobreviver.
Esperamos que este banco de dados público seja usado como ponto de partida para novas investigações, pesquisas e responsabilização. Cada incidente nele contido é um potencial crime de guerra, e os padrões mais amplos que eles coletivamente formam fornecem uma visão crucial das estratégias militares de Israel e de sua intenção ao longo da guerra. O banco de dados pode ser acessado na matéria original. Abaixo, você encontrará uma explicação de nossa metodologia.
Metodologia
Para compilar este banco de dados, acompanhamos incidentes em que forças israelenses mataram ou feriram civis recebendo ajuda. Isso inclui pessoas em cozinhas comunitárias ou padarias, retirando pacotes em armazéns humanitários, aguardando comboios, recolhendo lançamentos aéreos ou pegando água.
Excluímos ataques que aparentemente tiveram como alvo trabalhadores humanitários ou infraestrutura humanitária sem outras vítimas civis. Esses incidentes já são acompanhados por projetos como o Aid Worker Security Database. Ao focar nos beneficiários da ajuda, esperamos compreender como esses ataques se conectam a outros elementos da estratégia israelense.
Na elaboração de nossa abordagem, consultamos metodologias usadas pelo OHCHR e pelo grupo de monitoramento Armed Conflict Location & Event Data (ACLED).
Registramos ataques e fizemos uma estimativa conservadora de vítimas monitorando inúmeras atualizações em redes sociais e evidências visuais compartilhadas por pessoas em Gaza, além de relatórios da ONU, ONGs e veículos de mídia. Sempre que possível, cruzamos os dados com bancos de dados mantidos pelo ACLED e pelos grupos de pesquisa Airwars e Forensic Architecture, que documentam vítimas civis em Gaza.
Acompanhamos mais de 500 incidentes, mas incluímos apenas aqueles relatados por várias fontes independentes de mídia ou ONGs, ou pela ONU. Incidentes com qualquer incerteza sobre o alvo ou as circunstâncias foram excluídos.
Quando as fontes divergiam sobre os números de vítimas, geralmente usamos o menor número, a menos que um número maior fosse claramente mais preciso. Se as fontes relatavam apenas números aproximados (por exemplo, “alguns” ou “vários”), seguimos a metodologia usada pelo ACLED e utilizamos o número equivalente mais baixo (dois para “alguns”, três para “vários” ou “muitos” etc.). Isso foi relevante principalmente para números de feridos. As mortes costumam ser relatadas com mais precisão.
Temos confiança de que nossa estimativa não é um superdimensionamento, mas essa abordagem provavelmente subestima o número de feridos – particularmente em incidentes recentes com muitas vítimas perto da passagem de fronteira de Zikim, no norte, e em locais da GHF, onde frequentemente vimos relatos iniciais descreverem “vários” feridos, e depois evidências visuais ou relatórios de hospitais ou ONGs médicas indicarem dezenas ou centenas de vítimas.
Por todas essas razões, o número real provavelmente é maior que nossa estimativa.
Nossa análise se baseou no trabalho de jornalistas e pesquisadores palestinos que reportaram apesar do perigo constante em Gaza, incluindo muitos mortos por ataques israelenses – Mohammad Salama, Hussam al-Masri, Mariam Abu Daqqa, Ahmed Abu Aziz, Hossam Shabat, Ismail al-Ghoul, Rami al-Rifi, Anas al-Sharif, Mohammed Qreiqeh, Ibrahim Zaher e Mohammed Noufal, entre muitos outros.
Observamos uma queda significativa nas evidências visuais e nas reportagens em campo. A maioria dos primeiros ataques foi fotografada ou filmada e reportada por jornalistas em tempo real. Agora, muitos são relatados apenas nas redes sociais ou sem documentação visual.
A explicação é simples: as forças israelenses mataram pelo menos 197 jornalistas em Gaza, segundo o Committee to Protect Journalists, que está investigando outros 130 casos. A ONU coloca o número de jornalistas mortos em pelo menos 247. Essas mortes significam que restam menos pessoas para relatar o que está acontecendo.
Os que permanecem – assim como médicos, equipes de defesa civil e trabalhadores humanitários – continuam sendo alvo das forças israelenses e enfrentam enormes desafios para se deslocar e trabalhar. As autoridades israelenses também se recusaram a permitir a entrada de jornalistas internacionais em Gaza desde o início de sua campanha militar. Além disso, as áreas onde a maior parte da ajuda agora é permitida já foram despovoadas e são de difícil e perigoso acesso.
A documentação em redes sociais também é frágil. Várias fontes úteis de informação desapareceram ou foram removidas das plataformas enquanto trabalhávamos neste projeto.
No final de junho, o colaborador do The New Humanitarian Hani Qarmoot caminhou até Beit Lahia para buscar farinha de um comboio de ajuda. Ele viu as forças israelenses atirarem contra pessoas que esperavam, matando pelo menos três, incluindo um menino de cerca de 10 anos.
Qarmoot parece ter sido o único jornalista presente. Encontramos postagens em grupos comunitários no Telegram confirmando detalhes de seu relato – incluindo a rota dos caminhões de ajuda e relatos de disparos israelenses na área. Mas sem ele, é provável que esse incidente e as circunstâncias em torno dessas mortes não tivessem sido totalmente registrados, essencialmente apagando qualquer possibilidade de responsabilização ou justiça para as três pessoas mortas.
Com base em tudo o que vimos ao documentar esses padrões, está claro que existem muitos incidentes semelhantes que talvez nunca sejam contabilizados.
* Jornalista canadense especializada na cobertura de migrações e direitos humanos. Reportagem publicada no The New Humanitarian em 15/09/2025.
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