"Líder"

"Líder"

Por: O Poder Popular · Busto de Lenin na Itália em Cavriago

Texto de Antonio Gramsci sobre a morte de Lenin publicado a 1 de março de 1924 no início da terceira série do jornal italiano L'Ordine Nuovo

“Líder”

O Bolchevique

Cada Estado é uma ditadura. Cada Estado não pode deixar de ter um governo constituído por um número restrito de homens que, por sua vez, se organizam a volta de um dotado de maior capacidade e de maior clarividência. Até quando for necessário um Estado, qualquer que seja a classe dominante pôr-se-á o problema de ter chefes, de ter um chefe. Que alguns socialistas, os quais se dizem ainda marxistas e revolucionários, digam querer a ditadura do proletariado, mas não querer a ditadura dos “chefes”, não querer que o comando se individualize, se personalize; que se diga querer a ditadura, mas não querê-la na forma em que é historicamente possível, só revela todo um objetivo político, toda uma preparação teórica “revolucionária”.

Na questão da ditadura proletária, o problema essencial não é o da personificação física da função de comando. O problema essencial consiste na natureza das relações que os chefes ou o chefe têm com o Partido da classe operária, das relações que existem entre este Partido e a classe operária: são elas puramente hierárquicas, de tipo militar, ou são de carácter histórico e orgânico? O chefe, o Partido, são elementos da classe operária, são uma parte da classe operária, representam-lhe os interesses e as aspirações mais profundas a vitais, ou são dela uma excrescência, ou são uma simples sobreposição violenta? Como se formou este Partido, como se desenvolveu, por que processo se verificou a seleção dos homens que o dirigem? Porque é que se tornou o Partido da classe operária? Aconteceu isto por acaso? O problema passa a ser o de todo o desenvolvimento histórico da classe operária, que lentamente se constitui na luta contra a burguesia, regista uma vitória ou outra, sofre muitas derrotas; e não apenas da classe operária de um país, mas de toda a classe operária mundial, com as suas diferenciações superficiais e, todavia, tão importantes em cada momento separado, com a sua substancial unidade e homogeneidade.

O problema passa a ser o da vitalidade do marxismo, do seu ser ou não ser a interpretação mais segura e profunda da natureza e da história, da possibilidade de dar também um método infalível à intuição genial do homem político, um instrumento de extrema precisão para explorar o futuro, para prever os acontecimentos de massa, para os dirigir e, portanto, controlá-los.

O proletariado internacional teve e tem ainda um vivo exemplo de um partido revolucionário que exerce a ditadura da classe; teve, e já não tem infelizmente, o exemplo vivo mais característico e expressivo do que seja um chefe revolucionário, o camarada Lenine.

O camarada Lenine foi o iniciador de um novo processo de desenvolvimento da história (mas foi-o porque era também o expoente e o último mais individualizado momento), de todo um processo de desenvolvimento da história passada, não só da Rússia mas do mundo inteiro. Tinha-se tornado, por acaso, o chefe do Partido bolchevista? Foi por acaso que o Partido bolchevista se tornou no partido dirigente do proletariado russo e, portanto, da nação russa? A seleção durou trinta anos, foi muito fatigante, assumiu frequentemente as formas aparentemente mais estranhas e absurdas. Teve lugar no campo internacional, em contato com as mais avançadas civilizações capitalistas da Europa central e ocidental, na luta dos partidos e das fracções que constituíam a II Internacional antes da guerra. Continuou no seio da minoria do socialismo internacional que ficou imune, pelo menos parcialmente, do contágio social-patriótico. Continuou na Rússia na luta para ter a maioria do proletariado, na luta para compreender e interpretar as necessidades e aspirações de uma classe camponesa inumerável, dispersa por um imenso território. Continua ainda, cada dia, porque em cada dia precisa de compreender, prever, prover.

Esta seleção foi uma luta de fracções, de pequenos grupos, foi luta individual, quis dizer cisões e unificações, paragens, exílio, prisão, atentados: foi resistência contra o desânimo e contra o orgulho, quis dizer sofrer a fome tendo à disposição milhões em ouro, quis dizer conservar o espírito de um simples operário no comboio dos czares, não desesperar mesmo se tudo parecia perdido mas recomeçar, com paciência, com tenacidade, mantendo todo o sangue-frio e o sorriso nos lábios quando os outros perdiam a cabeça. O Partido Comunista Russo, com o seu dirigente Lenine, tinha-se de tal modo ligado a todo o desenvolvimento do seu proletariado russo, a todo o desenvolvimento, portanto, da inteira nação russa, que não é possível imaginar sequer um sem o outro, o proletariado classe dominante sem que o Partido Comunista seja o partido de governo e, portanto, sem que o Comité Central do Partido seja o inspirador da política do governo; sem que Lenine fosse o chefe do Estado.

O próprio pensamento da grande maioria dos burgueses russos que diziam: uma república com Lenine como chefe, sem o Partido Comunista, seria até o nosso ideal – tinha um grande significado histórico. Era a prova de que o proletariado exercia não só um domínio físico mas dominava também espiritualmente. No fundo, confusamente, até o burguês russo compreendia que Lenine não poderia tornar-se e permanecer chefe do Estado sem o domínio do proletariado, sem que o Partido Comunista fosse o partido do governo; a sua consciência de classe impedia-os ainda de reconhecer, para além da sua derrota física, imediata, também a sua derrota ideológica e histórica; mas a dúvida já os assaltava e esta dúvida exprimia-se naquela frase.

Apresenta-se uma outra questão. E possível, hoje, no período da revolução mundial, que existam “chefes” fora da classe operária, que existam “chefes” não marxistas, que não estejam ligados estreitamente à classe que encarna o desenvolvimento progressivo de todo o ser humano? Temos em Itália um regime fascista, temos como chefe do fascismo Benito Mussolini, temos uma ideologia oficial onde o “chefe” divinizado, é declarado infalível, é preconizado organizador e inspirador de um renascido Sagrado Império Romano. Vemos impressos nos jornais, diariamente, dezenas e centenas de telegramas de homenagem das vastas tribus locais ao “chefe”. Vemos as fotografias: a máscara mais dura de um rosto que já vimos nos comícios socialistas. Conhecemos aquele rosto: conhecemos aquele rodar dos olhos nas órbitas que, no passado, com a sua ferocidade mecânica, devia causar vómitos à burguesia e hoje ao proletariado. Conhecemos aquele punho sempre fechado como ameaça. Conhecemos todo este mecanismo, todo este armamento e compreendemos que isso possa impressionar e mover a maçã-de-Adão da juventude das escolas burguesas; é verdadeiramente impressionante, mesmo visto de perto, e causa espanto. Mas “chefe”? Vimos a semana vermelha de Junho de 1914. Mais de três milhões de trabalhadores nas ruas, respondendo ao apelo de Benito Mussolini, que há cerca de um ano, desde o excídio de Roccagorga, os tinha preparado para a grande jornada, com todos os meios de propaganda postos a disposição do “chefe” do Partido Socialista de então, de Benito Mussolini: desde a vinheta de Scalarini ao grande processo no Tribunal de Milão. Três milhões de trabalhadores vieram para a rua: faltou o “chefe”, que era Benito Mussolini. Faltou como “chefe”, não como indivíduo, porque contam que, como indivíduo, era corajoso e que em Milão desafiava o cordão e as armas dos carabineiros. Faltou como “chefe” porque não era tal, porque, segundo a sua própria confissão nem sequer conseguia vencer, no interno da direção do Partido Socialista, as miseráveis intrigas de Arturo Vella ou de Angelica Balabanof.

Ele era então, como hoje, o tipo concentrado do pequeno-burguês italiano, raivoso, feroz mistura de todos os detritos deixados no solo nacional pelos vários séculos de dominação dos estrangeiros e dos padrões: não podia ser o chefe do proletariado; passou a ser o ditador da burguesia que ama as faces ferozes quando volta a ser borbónica, que espera ver na classe operária o mesmo terror que sentia por aquele rodar dos olhos e aquele punho fechado estendido numa ameaça.

A ditadura do proletariado é expansiva, não repressiva. Verifica-se um contínuo movimento da base para a cúpula, uma contínua renovação através de todas as capilaridades sociais, uma contínua circulação de homens. O chefe que hoje choramos encontrou uma sociedade em decomposição, uma poeira humana sem ordem nem disciplina, porque em cinco anos de guerra tinha-se esgotado a produção nascente de toda a vida social. Tudo foi reordenado e reconstruído, da fábrica ao governo, sob a direção e o controlo do proletariado, com os meios de uma classe nova no governo e na história.

Benito Mussolini conquistou o governo e mantém-no com a repressão mais violenta e arbitrária. Não pensou organizar uma classe mas só o pessoal de uma administração. Desmontou alguns maquinismos do Estado, mais para ver como eram feitos e adquirir a prática no oficio do que por uma necessidade originária. A sua doutrina está toda na máscara física, no rodar dos olhos nas órbitas, no punho fechado sempre estendido numa ameaça…

Roma não é estranha a estes cenários cheios de pó. Viu Rómulo, viu César Augusto e viu, no seu crepúsculo, Rómulo Augustolo.

Texto publicado originalmente no Volume III dos Escritos Políticos de Gramsci publicado em 1977 pela Seara Nova. Tradução de Manuel Simões.

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