Lula lá, Caiado cá: considerações acerca do processo congressual da União Estadual dos Estudantes e horizonte de luta dos estudantes goianos

Por: Antonio Lima Júnior ·

Por Pedro Henrique Valeriano, estudante de História da UFG e membro do CAHIS UFG. Publicado originalmentem em PCB-GO.

O sistema capitalista se encontra em uma verdadeira “era” de crise estrutural que se arrasta desde os anos 1970. Os níveis sociais, políticos, econômicos e culturais a internalizam e reproduzem processos deletérios que lhes são próprios e que assumem feições particulares em cada país segundo a sua forma de inserção na economia mundial e no sistema de Estados.

Essa crise tem comportado ciclos de expansão insuficientes para a sua superação em termos estruturais, sucedidos por ciclos de recessão que prontamente recolocam as dinâmicas destrutivas. Todavia, desde 2008, vivemos um ciclo de recessão em todo o sistema socioeconômico mundial que até os dias de hoje não possui uma perspectiva clara de retomada de um ciclo de expansão, ainda que no contexto da referida “era” de crise estrutural.

Na sociedade brasileira, entre as propostas apresentadas para a superação da manifestação do ciclo de recessão no país, anteriormente assinalado, circunscritas nos limites da ordem vigente, três são preponderantes em termos de maior capacidade política no campo do combate das ideias:

I – a primeira é do neoliberalismo cadavérico, marcado pelas políticas de austeridade, certo tipo limitado de representatividade progressista (como a defesa de maior representatividade de populações normativamente pauperizadas e vítimas de opressão, como mulheres, negras/os e LGBTs em espaços de poder, sempre sem medidas suficientemente radicais para aplacar suas demandas históricas) e pós-política (ou seja, a despolitização e/ou negação dos conflitos de classe e a defesa de uma política criadora de consensos em torno da gestão do aparato de Estado, negando as ideologias em favor de uma dita racionalidade) – pode ser resumido como “não somos de esquerda nem de direita”;

II – a outra faceta são os movimentos neofascistas, fachos e até mesmo nazistas; uma extrema direita que apresenta como solução para as questões pertinentes da classe trabalhadora a forma mais extremada do neoliberalismo, calcado na austeridade fiscal, mas também no combate às estruturas de poder autônomo da classe, como sindicatos, grêmios, centros acadêmicos (CAs), fóruns e afins, no impulsionamento do negacionismo, na destruição dos povos originários em favor da especulação fundiária, na repressão da juventude periférica e negra via aparelhos de controle do Estado;

III – o último desses projetos é o neodesenvolvimentismo progressista, baseado na conciliação de classe e crente, em sua prática política, da tese de Fim da História, segundo a qual o tempo das mudanças radicais via revoluções se encerrou, restando-nos apenas lutar pela institucionalidade e por medidas pontuais de curto prazo, tendo em vista que não haveria mais a possibilidade de essas estruturas se transformarem efetivamente, de modo que nos sobraria apenas a luta por uma “gestão mais humana” do capitalismo. Isso ocorre via aparelhamento das entidades de poder da classe trabalhadora, instrumentalizadas em favor de um projeto eleitoreiro de gestão das instituições públicas –  entidades que muitas vezes apenas funcionam como instrumento eleitoral  ou correia de transmissão desse projeto, hegemonizado pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

O chamado “projeto do golpe de 2016”, que destituiu a Presidenta Dilma e que emplacou um regime acachapante de reformas neoliberais – Teto de Gastos (2017), Reforma Trabalhista (2017), Novo Ensino Médio (2016), Reforma da Previdência (2019), venda fatiada (subsidiários, participações em ações, reservas de petróleo e outros tipos de ativos) da Petrobras (2015-2022), privatização da Eletrobras (2022) e Arcabouço Fiscal (2023) –, o que destruiu o pacto de classes instituído na Constituição de 1988, restringiu funções públicas de caráter social, reestruturou o aparato de Estado e reduziu margens de independência econômica do país. O projeto do golpe não deve ser compreendido como um programa meramente de direita ou de uma dada facção política, mas sim como um projeto de consenso entre as forças políticas do campo institucional, sempre mediado pelo ocupante do Poder Executivo da vez, em consonância com os movimentos dos Poderes Legislativo e Judiciário e da sociedade civil do mundo do capital (articulações empresariais, estruturas de mídia, think tanks, institutos e fundações liberais etc.).

Assim, cabe a nós compreender que esse consenso, construído em mediações cotidianas, opera uma destruição da capacidade de organização da classe trabalhadora em favor de uma maior capacidade de articulação do campo burguês, sobretudo em termos de presença nas tomadas de decisão do Estado. Organismos da classe trabalhadora (sindicatos, organizações populares, entidades estudantis), por sua vez, tendem a se restringir aos limites de uma espécie de “neoliberalismo progressista” representado pelo campo democrático popular (PT, PDT, PSB, PCdoB e, agora, o PSOL).

A crise estrutural pode estar se desenvolvendo como uma crise progressiva do sistema do capital, num movimento histórico em que o velho está morrendo e o novo não está pronto para nascer, proporcionando a confluência de uma série de episódios marcados por monstros e aberrações. Neste momento, na sociedade brasileira, a disputa pelos rumos do país se apresenta sob grandes contradições, entre as quais, destacamos três: um grande partido de feição popular que pede a bênção do capital para operar politicamente em favor desse mesmo capital; um sistema público de saúde que tem à sua frente operadores políticos que atentam contra a saúde pública e o bem-estar social, inclusive promovendo a descredibilização dele próprio para a sua privatização; e uma guerra às drogas mobilizada para gerar a terceira maior população carcerária do mundo e o genocídio cotidiano da juventude negra e periférica.

Lula lá, caiado cá!

O projeto do golpe é um programa de consenso do campo institucional operado via mediações federais, estaduais e municipais. No caso de Goiás, é dirigido pelas elites tradicionais e fundiárias, tendo o Governo Caiado e os partidos União Brasil e Republicanos como principais bases desse campo. A UDR (União Democrática Ruralista), por sua vez, promove a mediação estadual e nacional com a chamada “Bancada do Boi”. Dessa forma, o projeto do golpe em Goiás tem maior aproximação com o campo ultraneoliberal e fascistoide, com Caiado e sua base política conduzindo uma conciliação a nível estadual mais à direita. Isso se apresenta tanto pela cooptação da oposição quanto pelo domínio sobre os Poderes Legislativo e Judiciário, permitindo-lhes uma enorme capacidade de operar politicamente. A título de exemplos, destacamos:

I – o desaguamento da candidatura de Gustavo Mendanha e depois sua entrada para o MDB – partido que integra o campo do governo, liderado por Daniel Vilela, vice-governador e representante de uma elite mais urbana;

II – o fato de que, apesar de Goiás ser um dos estados com melhor desempenho econômico em matéria de finanças públicas, ainda é regido pelo Regime de Recuperação Fiscal (RRF), a face estadual do teto de gastos e do controle do receituário público;

III – a inatividade do campo democrático popular no estado e sua órbita ao Palácio das Esmeraldas. Para exemplificar, elencamos alguns elementos: 1.  mesmo com apenas três deputados na Alego (Assembleia Legislativa do Estado de Goiás), um deputado petista  ocupa a Mesa Diretora; 2. a leniência do campo de luta das/os trabalhadoras/es da saúde e da educação em relação ao governo Caiado, como o fato de que, mesmo com a reforma do Estatuto do Magistério, que aumentou a carga horária sem reposição salarial, após um concurso de 8 mil vagas para a educação estadual, tudo ocorreu sem combate das lideranças dessa categoria; 3. a conveniência mostrada pela Reitoria da UFG – dirigida por uma antiga militante do PT – em sentar com o governador para discutir planos de expansão da pesquisa agrícola e da criação de um campus da universidade em Anápolis, onde há menos de cinco anos rifou o Campus Jataí e o Campus Catalão.

Portanto, em face das condições históricas do estado e do país, Caiado opera uma conciliação de classes em favor das ideias e dos interesses da burguesia em Goiás, que defendem a manutenção do Estado como importante reprodutor do capital periférico, a caça aos movimentos populares, antissistêmicos e radicais, e a defesa garantista da propriedade privada da terra.

Além disso, as políticas de educação também vêm no sentido de conduzir a manutenção e a ampliação de aparelhos públicos de hegemonia conservadora, reacionária e capitalista no estado, com destaque para os colégios militarizados. No que tange aos grêmios, a orientação, para os poucos que ainda existem, é a de que permaneçam dependentes e subordinados às direções escolares via clientelismos, laços políticos e repressão, efetuando uma profunda despolitização das entidades de base. Não por acaso, poucas são as ações de resistência estudantil ao NEM (Novo Ensino Médio) na Rede Pública Estadual.

Para além, a rede de ensino superior no estado é a que mais sofre. Desde antes de Caiado e sua coalizão reacionária, durante os oito anos de governo Marconi, a UEG (Universidade Estadual de Goiás) viveu uma expansão que a consolidou como a maior instituição de ensino superior estadual do país, bem como uma das maiores do Brasil. Contudo, a expansão fora de perfil quantitativo e não qualitativo, sendo concebida como política para aproximar Marconi do eleitorado no interior. Hoje, a UEG contempla 40 campi espalhados pelo estado, com um orçamento de cerca de R$ 320 milhões, distribuído de forma assimétrica entre os campi, que atuam apenas com o básico do básico, sem orçamento adequado, seja para garantir limpeza e segurança, seja para propiciar as condições mínimas para o desenvolvimento técnico-científico das/os estudantes. O campus Laranjeira, por exemplo, onde as/os estudantes de Cinema, apesar de deterem um aparato capaz, precisam desembolsar recursos próprios para irem a eventos e conseguirem ampliar sua formação. Outros campi do interior passam por um contexto ainda mais precário com estudantes sendo, na maioria das vezes, excluídas/os de uma formação plena e universal.

As Ifes (Instituições Federais de Ensino Superior) convivem internamente com impactos distintos quanto à implementação das políticas de austeridade fiscal. De um lado, o sucateamento das faculdades e dos cursos de humanidades – como é o caso da FL, FH, FCS, FAFIL e FE da Universidade Federal de Goiás (UFG) ou todo o Campus Regional de Goiás –; de outro, a ampliação de recursos materiais àquelas faculdades e aos cursos que contemplam diretamente interesses do latifúndio (seja por meio de acesso a fundos de desenvolvimento do estado e da União, seja pela via de projetos desenvolvidos de forma vinculada ao privado). Salientamos, ainda, que a política de austeridade fiscal, na sua lógica de implementação, ataca o direito de alunas/os à assistência e à permanência, sobretudo, pessoas negras e trans, aquelas que mais sofrem com cortes de auxílios e restrição de permanência nas casas de estudantes.

A privatização das Ifes deve ser pensada como parte de um projeto por meio do qual  os cursos e os programas que podem formar quadros técnicos, conduzir pesquisas que satisfaçam aos interesses do capitalismo fundiário e manter o capital obtenham mais investimentos e mais acesso aos fundos de pesquisa, ao passo que cursos que formam profissionais que atuarão em serviços sociais recebam menos investimentos e fundos.

As IES (Instituições de Ensino Superior) privadas, por sua vez, que respondem pela maior parte das/os estudantes do estado, são viabilizadas via programas públicos de financiamento, em especial o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), – sendo este último campeão de endividamento, o que, para aqueles que defendem a austeridade, pouco ou nada importam os custos de milhões ao erário público. A intenção desses programas, apesar de aparentarem política redistributiva, é em essência o aprisionamento da juventude a um endividamento monstruoso, acarretando gastos futuros ao pagamento do que deveria ser um direito de livre acesso. Se na década de 1980 e 1990 lutávamos para que a educação básica fosse um direito constitucional, hoje devemos lutar para que o ensino superior seja um direito, com trabalhadoras/es não tendo que pagar por sua educação superior, como ocorre no México, no Uruguai e na Argentina.

Assim, devemos ter em mente que os oligopólios da Educação (Fundação Lehman, Grupo Khroton e afins) defendem programas lulopetistas, como Fies e Prouni (Programa Universidade Para Todos), não por sua dita capacidade de responder às mazelas sociais, mas pelos contratos e ganhos bilionários que recebem do Estado por intermédio desse financiamento. Ora, se o direito à educação superior é tão importante para esse governo, por que não fazer isso com uma expansão qualitativa das universidades? Não expandir por expandir, como Marconi fez na UEG ou como foi feito no Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), outro programa lulopetista, mas via concursos e criação de centros formadores de pensamento crítico e produção científica, orientados com programas, projetos de pesquisa e de extensão na perspectiva de sanar dramas sociais vivenciados por nossa classe – desde o curso de Cinema referenciado na cultura popular, financiado para isso, até o curso de Contabilidade e Serviço Social, que pensarão políticas públicas redistributivas.

No que tange ao ensino médio, podemos compreender os colégios militarizados não apenas como aparelhos públicos de hegemonia, mas também como parte da política de (in)segurança pública, pois operam, em nível ideológico, o mesmo que a PM e o Bope operam como instrumento explícito de assassinato da juventude. Não por acaso,  Goiás tem, atualmente, a segunda polícia que mais mata no Brasil: três a cada 10 assassinatos no estado são provocados por ação policial. Essas mortes estão concentradas na juventude negra, pobre e da periferia.

A polícia é bem remunerada justamente para provocar não apenas o assassinato, mas também o distanciamento das populações de bairros periféricos com relação às populações das regiões nobres da cidade, como ocorre entre o Garavelo e o Marista em Goiânia. Essa política não inibe organizações de comércio ilegal paraestatal, como o CV (Comando Vermelho), pois continuam atuando e regulando o comércio paraestatal nas periferias e fornecendo a estabilidade para seus negócios sem provocar guerra aberta com as instituições de repressão legais. Em outros termos, a guerra às drogas se torna apenas a justificativa legal para conduzir o cerceamento da classe trabalhadora negra e parda das periferias. Como já apontado, esse afastamento também é conduzido via o distanciamento físico do povo trabalhador para com as áreas nobres da cidade, afastando-nos fisicamente via o transporte público ineficiente, o que, de forma prática, nos inibe o direito à cidade, oferecendo apenas as linhas que levam, de forma demorada, ao trabalho.

Por Paz, Auxílio, Ônibus e Moradia – contra o Projeto do Golpe e pelo Socialismo!

O Movimento por uma Universidade Popular (MUP) entende que a luta por uma universidade popular e um movimento estudantil organizado nas bases demanda que a UEE (União Estadual dos Estudantes) seja orientada a reestruturar as entidades de base sob viés autônomo e independente. Para além da defesa e do respeito da diretoria eleita em cada mandato de entidade – CAs, diretórios acadêmicos (DAs) e diretórios centrais dos estudantes (DCEs)  –, a UEE deve concorrer para articular as entidades aos interesses concretos e emancipatórios presentes nas suas respectivas bases.

Portanto, trata-se de uma orientação classista das entidades estudantis, capaz de situá-las como parte da disputa entre as/os trabalhadoras/es e a burguesia, retomando as organizações estudantis de base e extirpando o consenso ideológico do projeto do golpe de 2016, em um movimento de atuação que busque proporcionar condições para a derrocada das contrarreformas neoliberais e abrir espaços para a construção de um novo pacto político, definitivamente popular e verdadeiramente democrático, no qual os interesses das/os trabalhadoras/es sejam a norma. Daí a importância da UEE promover a luta para integrar as/os estudantes na construção de um Conclat (Congresso Nacional da Classe Trabalhadora), sendo este a estrutura de poder contra-hegemônico que disputará com o poder do Estado e organizará, em conjunto de forças e entidades anticapitalistas, a construção do Poder Popular e do Socialismo. Diante disso, tornam-se tarefas imediatas das/os estudantes de Goiás:

– politizar as entidades e formar uma correlação de forças que impeça o Governo Lula III se tornar o 3° governo do golpe;

– lutar pela revogação imediata do RRF, com vista a maior investimento nas redes estaduais de ensino e nos fundos de auxílio a estudantes e trabalhadoras/es;

– reestruturar a UEG com participação das/os estudantes, técnico-administrativas/os e professoras/es e criar grupos de trabalho que discutam um orçamento imperativo para essa reestruturação;

– fortalecer o Fórum Goiano pela Democracia;

– rearticular a UGES (União Goiana de Estudantes Secundaristas) e concorrer para que a UEE lidere a rearticulação dos grêmios estudantis das redes pública e privada de educação do estado;

– defender maior presença das entidades de base nas deliberações do Conselho Estadual de Educação;

– combater o tecnicismo e a pedagogia empreendedorista na Seduc (Secretaria de Estado de Educação de Goiás)! Mais concursos e menos burocracia!;

– recriar os Centros Culturais da União Nacional dos Estudantes (UNE);

– ampliar investimento e participação de entidades de base nas Secretarias e subsecretarias LGBTs, Igualdade Racial e Direitos Humanos;

– garantir o acesso ao ensino superior como direito constitucional do povo brasileiro;

– combater a guerra em curso contra o povo pobre e negro e pardo nas periferias;

– combater o genocídio às/aos indígenas e quilombolas;

– fortalecer as organizações que lutam pela reforma agrária;

– lutar contra as privatizações e desligamentos dos campi da UEG e em todas as IES públicas;

– lutar contra a EaD (Educação a Distância) e todas as formas de apropriação da educação pelo capital;

– garantir mais investimentos em auxílio estudantil e em políticas de permanência e êxito das/os estudantes;

– lutar pela jornada de trabalho de 30 horas semanais em Goiás;

– defender os direitos trabalhistas das/os jovens aprendizes e estagiárias/os.

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