
Marinaldo, a desesperança e o trabalho análogo à escravidão
Por Jeferson Garcia, membro da coordenação nacional do coletivo negro Minervino de Oliveira e do partido comunista brasileiro (Maringá/Paraná)
A maré alta se reproduz, dia a dia. Cronistas sentam-se nos bancos das praças, reunidos, tentando tirar as máscaras do mundo. O outono se repete, assim como as terças e os meses do ano. As fases da lua, a chuva, o sol, o número que se escolhe no jogo do bicho. Fevereiro sempre vem. A repetição é uma característica fundamental da natureza. Vivemos em ciclos, rotinas, padrões, hábitos e repetições. Mas nem tudo que se repete é natural.
O maranhense Marinaldo Soares Santos, de 51 anos, começou a trabalhar na roça com 10. Desde então, dormiu em tecidos de lona, bebeu água destinada aos animais, comeu comida estragada. Sua história é a de muitos e se repete como os ponteiros do relógio. Fadiga, problemas com sono, tristeza profunda. Não há saída. Quem vê Sísifo rolando a pedra até o topo da montanha não vê as mãos invisíveis que o puseram lá. Dizem que a crônica é a forma de capturar o instante, o momento, a vida que pulsa. Se for isso, não sei bem o que estou fazendo aqui. Nessa história não é a vida que pulsa.
Sentado aos pés de uma sibipiruna, observando o mundo, meu coração parou, incomodado. Vou contar o motivo. Com o fim da escravidão, muitos negros e negras recém libertos tiveram uma inserção na sociedade capitalista a partir de trabalhos análogos aos que realizavam anteriormente. Mas não só a atividade, as condições eram idênticas. Essa é a mesma realidade de hoje: são inúmeros casos de negros e nordestinos, trabalhando sem quaisquer direitos, em condições precárias e presos a latifúndios, como os de cana-de-açúcar.
As notícias se repetem nos jornais, todos os dias, com dados sobre o trabalho escravo contemporâneo. A história se repete mesmo, primeiro como tragédia, mas depois também. O agronegócio se mantém com trabalho análogo à escravidão: em 2022, 500 trabalhadores foram resgatados em condição análoga à escravidão pela Auditoria Fiscal do Trabalho. Realizavam trabalho em áreas com produção de carvão vegetal, cana de açúcar, cultivo de alho e a criação de bovinos para corte. Do total, 84% se autodeclararam negros ou pardos e 57% nasceram no Nordeste.
Na televisão, Marinaldo é apenas mais um número. Ninguém se lembrará de seu nome. Nem de seu isolamento, seu desinteresse, seu desânimo, seu pessimismo. Talvez o patrão chame todos os trabalhadores de Marinaldo. Até porque a frase certa é de que a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa. Se todos os trabalhadores têm o olhar vazio, a postura abatida, a fala lenta com dificuldade de encontrar as palavras, estes, aos olhos do amo, são todos iguais.
Mesmo tendo sido resgatado três vezes por operações do Ministério do Trabalho e Emprego (TEM) e do Ministério Público do Trabalho (MPT), Marinaldo não imaginava que o seu trabalho se configurava como análogo à escravidão. O mundo é divido em dois grupos: pelos que sofrem e sabem que poderia ser diferente e pelos desavisados que não sabiam que outra vida é possível. A vida dura é tão comum para alguns, que ela vai sendo aceita como natural. Em todos os Marinaldos há um coração, de onde a vida suga toda esperança. Até o sol, que ilumina o dia, tem direito ao descanso e ao sonho. Mas muitos Marinaldos não conhecem o calor do descanso.
— Achava que era normal, que estava passando por aquilo porque eu era pobre — disse.
Realmente, normal não é. Mas sem dúvida a vida dura é pra quem é pobre e negro. Em 2022, 30 trabalhadores foram resgatados de condições degradantes mais de uma vez. Mais de uma vez, dizem as notícias. Mais de uma vez, entendeu? Marinaldo foi resgatado em 2007, 2009 e 2010.
Não é hábito, natureza, conforto ou rotina. O que faz a vida de Marinaldo se repetir é a maré baixa de quem vive de salário, onde a estação mais longa não é o verão, mas a desesperança. É não esperar que seja diferente.
O ciclo da vida é mais curto da ponte pra cá e as rotas sempre levam para a mesma necessidade básica de se manter vivo, antes de qualquer coisa.
Dizem que as crônicas são escritas de forma pessoal e subjetiva. Quem dera essa história fosse apenas fruto da minha subjetividade também. Mas não tenho esperança. Infelizmente. O trabalhador brasileiro é uma embarcação fantasma, que nunca pode atracar e é, assim, condenada a navegar pelos oceanos do trabalho degradante para sempre. Esse holandês voador é brasileiro e navega de cabeça baixa, com rugas ao redor da boca, os olhos caídos e as mãos fechadas tentando conter as emoções, se agarrando em si mesmo.
De repente, num só golpe, a falta de fé no futuro secou a tinta da minha caneta. Desculpem o pessimismo, deve ser o ascendente em escorpião, soltando os nomes em meu ouvido. Marinaldo, Sísifo, Tântalo, Prometeu. Nunca saberemos todos os nomes. Muitos olham sem ver, gritam sem abrir a boca. Aos que possuem a garganta seca e não tem sede, devemos entregar a tinta de nossa caneta. Cronistas e Marinaldos se repetem todos os dias, entre raios de desesperanças, até que eles se juntem para parar as máquinas.
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