Meritocracia, darwinismo social e capitalismo brasileiro

Meritocracia, darwinismo social e capitalismo brasileiro

Por: O Poder Popular ·

Por Jeferson Garcia (militante do PCB e membro da Coordenação Nacional do Coletivo Negro Minervino de Oliveira) e Cássius de Brito (Militante do PCB e da Unidade Classista ASSIBGE/SN - PR)

A chegada do pensamento social darwinista no Brasil ajudou a fundamentar o pressuposto segundo o qual o sucesso ou o fracasso individual na concorrência do mercado capitalista era resultado de mérito ou demérito de cada pessoa. A transposição mecânica do princípio da seleção natural à vida social está na base da concepção de que o sucesso era condição de alguma “natureza superior”, ou o fracasso, da própria “natureza inferior”. Tais compreensões são intrinsecamente racistas, pois pregam a inferioridade do negro e transformam a sua presença no território nacional em uma explicação para o “atraso” do país”, o que podemos chamar de ideologia do colonialismo.

Assim, a suposta inferioridade racial da população negra defendida pelo social-darwinismo explicava a condição precária do povo brasileiro. Se, em sua origem, o racismo atuava ideologicamente justificando as práticas de escravização dos negros, no capitalismo pós-abolição, ele é reformulado para dar justificativa ideológica a marginalização dos negros e a sua discriminação política, econômica e social. O que permitia, por sua vez, uma maior exploração da jornada de trabalho e, também, a diminuição do valor da força de trabalho.

Os mitos raciais típicos do escravismo são reformulados no contexto da sociedade de capitalismo dependente que a sucedeu, reformulação esta que alimentou as classes dominantes do combustível ideológico capaz de justificar o peneiramento (termo de Clóvis Moura) econômico-social, racial e cultural a que o povo negro está submetido.

Com o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, subordinado econômica e intelectualmente aos países centrais, a condição de vida inferior da população negra foi muitas vezes explicada com bases social-darwinistas travestidas de liberalismo meritocrático. Se antes se bradava que a desigualdade entre brancos e negros era questão de inferioridade racial, hoje se coloca o elemento cultural para dizer que alguns povos são culturalmente mais dedicados ao trabalho que outros e, por isso, suas eventuais conquistas são decorrências naturais do esforço, do mérito. Nasce, assim, uma espécie de racismo sem raças na América Latina, copiando à mão respostas ideológicas oriundas da Europa.

Os atuais dados do PNAD Contínua ajudam a debater esse tema. O gráfico “Desigualdade racial de rendimentos no Brasil, por origem da renda1” (formulado por Gabriel Zanlorenssi e Giovanna Hemerly a partir da pesquisa do IBGE) demonstra, a partir da medição das disparidades de renda, como uma das principais fontes de renda da população branca não tem origem somente em posições mais elevadas na estrutura ocupacional brasileira (de onde poderia derivar a ideologia da meritocracia). Pelo contrário, uma fonte importante da desigualdade de renda entre brancos e não brancos são as “outras rendas” captadas pela pesquisa, vindas de pensão, doação, mesada, aluguel, arrendamento de terras, bolsa de estudos, dentre outros elementos.

Nesse quesito, brancos recebem 277% mais que negros. Poderíamos colocar aqui, também, a herança, bens materiais da família (casa, carro, apartamento, posse de terras). A vida de um estudante que começa a faculdade com seu carro próprio, apartamento perto da universidade e dinheiro para os melhores materiais é, sem dúvidas, mais fácil do que a de um estudante que não possui essas mesmas condições. Por questões óbvias e estatísticas, essa é a relação hegemônica entre brancos e negros.

Todos esses elementos colocam uma enorme vantagem para a sobrevivência da população branca na concorrência do modo de produção capitalista. Tanto a atual ideologia da meritocracia quanto os pressupostos social-darwinistas não dão conta de explicar as desigualdades sociais marcadas pela questão racial brasileira. Pelo contrário, tentam encobrir seus fundamentos histórico-políticos ligados a função social do racismo tanto na estrutura de classes como na dinâmica econômica do país.

Então, se não é a meritocracia e nem a inferioridade racial, o que explica essa condição?

É o racismo, como instrumento que possibilitou historicamente a diminuição do valor da força de trabalho negra, os menores salários, as piores condições de trabalho e acesso ao crédito e até mesmo a maior sobrevivência da população branca, quando comparada ao genocídio da população negra. Até mesmo no recebimento de aposentadorias a marca do racismo se faz presente, uma vez que, em média, brancos recebem 105,9% a mais que aposentados negros. A população negra sofre mais riscos de morrer quando jovens, trabalham a vida adulta em piores condições e, ao chegar à velhice, tem aposentadorias menores.

Tal fato tem relação direta com os empregos e a formação educacional, que é influenciada decisivamente pelo racismo, resultando em que a renda de trabalho de negros e brancos seja desigual em uma proporção de 87,6%. Uma questão salta aos olhos: não é preciso que exista uma política deliberada que abaixe a aposentadoria de pessoas negras; a lógica em funcionamento normal já faz isso, pois o “normal” é a lógica racista.

Como instrumento de dominação social, o racismo vai determinando o futuro de jovens, a possibilidade de construir seus sonhos e projetos pessoais por meio da concorrência, via de acesso à “imensa coleção de mercadorias” em que se apresenta o poder do capital. Além disso, ele corrói as perspectivas de ascensão social para trabalhadores, jogando-os no colo dos problemas ligados a depressão e ansiedade e, até mesmo, determina a longevidade e possibilidade de uma aposentadoria melhor para adultos negros e negras.

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