Mulheres de milho

Mulheres de milho

Por: O Poder Popular ·

Por Jeferson Garcia, militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira e do PCB em Maringá.

Os deuses maias criaram pessoas de barro, depois de madeira e, por fim, de milho. Os de barro eram moles e sem força, desmanchavam sob os raios do sol. Os de madeira não tinham sangue, muito menos memória. Quando enfim, fizeram os humanos com milho, os deuses perceberam que estes tinham uma capacidade enorme de ver o mundo. Com medo, os deuses nublaram os olhos para que não pudessem ver para além do espelho.

Dona Esther está trabalhando para dar cara nova à sua casa. Ela contratou o pedreiro mais em conta que conseguiu: o Gabriel, filho dela há 34 anos. Fui lá ajudar a quebrar calçada, beber cerveja, perder os olhos nas árvores desfolhadas e comer churrasco. A gente ajuda com o que pode, até porque esse céu do inverno deixa a gente preguiçoso que só. Carregamos pedra e conduzimos o carrinho de terra com todas as mãos que tínhamos. Erámos timoneiros dos barcos de terra flutuando. Enquanto ainda não tínhamos câimbras, escutávamos Candeia e Zeca Pagodinho. Conversamos sobre como transformar os poemas em sambas. Quando as câimbras chegaram, bebemos cerveja com relaxante muscular. Curioso como ouvir samba com quem você gosta é tão saboroso quanto ler livros embaixo de um cobertor. As cenas se parecem muito, ambas nos aquecem no tempo frio.

Eu fui em um dia, voltei a ajudar no outro e estou devendo novas visitas. Um pedaço um pedregulho caiu no pé do Gabriel, o vizinho olhou desconfiado com medo de quebrarmos a calçada dele e um homem com algumas latinhas de cerveja na cabeça pediu um copo d´água. A sara chegou também, já sabendo que valia por três. Ela tinha razão, se o Gabriel trabalhasse o tanto de tempo que gasta implicando, o serviço já estava pronto. Eu desconfio que eu e Gabriel somos feitos de barro. Conversa vai, conversa vem, a Dinda me contava como que os mutirões para ajudar os vizinhos e familiares era algo comum em outra época. Os laços de solidariedade eram costurados com abraços e quebravam menos que as calçadas. Hoje não, geralmente as pessoas ajudam as outras se tem algo a ganhar em troca. E, muitas vezes, estar com o outro é sinônimo de perder tempo, pois hoje é tudo tão rápido, tão empreendedor, que é preciso correr o tempo todo.

Eu ainda acho que essa falta de tempo é uma mentira do relógio. O sentido é sempre estar ganhando, seja como for. Dinda me contava sobre o passado e sem querer (ou não) me dava uma aula de como a economia política molda a forma como vemos o mundo. Em um tempo em que o critério é o indivíduo, os seus interesses, ajudar o outro só vale se ele volta para si mesmo. Um ganha se o outro lucrar. Para quê fazer mutirões se eu posso vender alguma mercadoria?

A Sara chegou depois do trabalho, carregou várias carriolas de terra, alinhou a calçada do vizinho e como os marinheiros, almoçou como quem sorve o fumo e bebe o vinho, se alimentando da companhia, sem pedir nada em troca. Uma pena ela não ter tomado café com pedacinhos de chocolate. Juntando os pedacinhos de todos, a gente recupera a unidade perdida.

Dona Dinda percebeu que aquele fim de semana é singular, mas representa uma condição humana, pedaços de nós que estamos perdendo. Mas as palavras que saíram de sua boca, como batidas de tambor, deixaram uma resposta: a solidariedade é imortal. Mas o dedo do Gabriel não é e eu me esqueci de perguntar se agora com o machucado, ele estava conseguindo usar o tênis para trabalhar, ou se os calçados estavam apertando.

Por mais que nos apertem, ainda estamos aqui para quebrar as calçadas desses que andam por aí construindo muros como quem cria ilhas, separando a vida comum. Não estamos falando só dos dedos do pé do Gabriel, presta atenção. Estamos pensando nas mulheres que, como árvores insubmissas, vivem por aí quebrando calçadas.

Seus olhos enxergam para além de seus pés, carregando a história nos cabelos brancos. Como disse um poeta: companheiros são os que comem do mesmo pão. A Dinda sabe disso, os olhos de mãe não estão nublados. Ela poderia dizer que companheiros são como as árvores que quebram calçadas, construindo raízes firmes. É nelas que encontramos forças para continuar. Quem perde suas raízes, perde sua identidade.

Talvez dona Esther seja feita de milho.

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