Por Camille Gomes e Gerlane Simões - Militantes do CNMO-PE e do PCB Pernambuco
O racismo adentra todas as áreas do desenvolvimento humano. Desde a barriga da mãe, nas maternidades, escolas, universidades, nas comunidades, nas delegacias, em todo e qualquer lugar o preto é o suspeito preferencial. No pré natal, no parto, no pós parto (tanto pra mãe quanto para o bebê que acaba de nascer), nenhum lugar do mundo é seguro para pessoas negras.
Ontem, 26 de maio de 2024, uma recém-nascida foi baleada no Hospital Barão de Lucena, região Metropolitana de Recife, quatro horas depois de nascer. Encontrava-se no 5º andar do prédio na maternidade, a altura não impediu que a bala a achasse – em Recife, as balas “perdidas” sempre encontram corpos negros, independentemente de onde estejam.
O caso aconteceu na noite do domingo (26 de maio de 2024), por volta das 19h, no hospital onde a vítima nasceu, às 14h40. À TV Globo, o pai da recém-nascida contou que ele e a esposa ouviram um barulho, mas só notaram algo estranho quando o choro da filha ficou mais forte.
“Ela estava dormindo, e, de repente, a gente escutou aquele estalo abafado. E eu escutei minha filha chorando muito alto, corri para pegar ela e, quando olhei, ao lado da cabecinha dela estava a bala”, disse.
O racismo institucional perpetua violência nos equipamentos públicos onde espera-se garantia de segurança e proteção do Estado. Mulheres negras e pardas são as principais usuárias da atenção básica à saúde. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cujos resultados foram publicados na Pesquisa Nacional de Saúde 2019 (PNS), aproximadamente 70% do público que utilizou o serviço do SUS, até a data da pesquisa, era composto por mulheres; 60,9%, eram pretas ou pardas. Um fato como este ocorrido em Recife evidencia a negligência do Estado nos principais espaços ocupados por pessoas negras. Infâncias negras em Recife são condenadas pelo racismo desde o nascimento.
Desde a era da escravização pessoas negras são vistas como aptas para o servir, indignas de serem assistidas, sem garantia e acesso aos serviços públicos básicos. Como garantir acesso ao serviço público seguro e de qualidade aos negros que por quase 400 anos estiveram à serviço dos brancos?
Poderíamos escrever esse texto a partir de vários recortes; em um recorte geográfico: o Hospital Barão de Lucena está localizado no subúrbio de Recife – Zona Oeste. Uma das regiões que têm números alarmantes de Mortes Violentas Intencionais (MVIs). Só no último mês, pelo menos três pessoas foram baleadas dentro de um hospital, sendo que uma chegou a óbito. Todas eram negras.
Dados do Instituto Fogo Cruzado faz um relevante mapeamento de disparos de arma de fogo na RMR:
SÉRIE HISTÓRICA (total de cada ano):
2018 – 5 crianças feridas
2019 – 8 feridas, 2 mortas
2020 – 9 feridas 2 mortas
2021 – 7 feridas, 1 morta
2022 – 10 feridas, 3 mortas
2023 – 7 feridas, 2 mortas
2024 – 3 feridas, 2 mortas
OS 5 PRIMEIROS MESES DE CADA ANO PARA FINS COMPARATIVOS DO ANO ATUAL COM OS ANTERIORES (de janeiro a maio de cada ano):
2019 – 5 feridas
2020 – 3 feridas, 1 morta
2021 – 3 feridas
2022 – 4 feridas, 1 morta
2023 – 2 feridas
2024 – 3 feridas, 2 mortas
Nós estamos no 5º mês do ano com 5 crianças baleadas, uma média de 1 por mês. Isso já é muito para os números acostumados a serem registrados. Seguindo neste mesmo ritmo estatístico, há probabilidade de finalizar o ano com 12 vítimas.
Durante os 5 primeiros meses dos anos de 2019, 2022, e agora em 2024, houve um total de 5 crianças baleadas (soma entre vítimas mortas e feridas).
Acumulado do ano
Em 2024, entre janeiro e abril, houve 739 tiroteios/disparos de arma de fogo na região metropolitana do Recife, segundo relatório mensal do Instituto Fogo Cruzado. Ao todo, 834 pessoas foram baleadas neste período: 571 morreram e 263 ficaram feridas. Em comparação com o mesmo período de 2023, que concentrou 606 tiroteios e 684 baleados, sendo 504 mortos e 180 feridos, os quatro primeiros meses de 2024 tiveram aumento de 22% nos tiroteios, aumento de 13% nos mortos e aumento de 46% de feridos.
Violência contra adolescentes triplica em abril na RMR
Em quatro meses, 50 foram baleados, abril teve o maior número de vítimas do ano, aponta o Instituto Fogo Cruzado.
O relatório mensal do Instituto Fogo Cruzado mostra que em abril a região metropolitana do Recife viu o número de adolescentes vítimas da violência armada triplicar. Ao todo, 15 jovens entre 12 e 17 anos foram baleados no mês: 10 morreram e cinco ficaram feridos. Em 2023, nesse mesmo período, cinco adolescentes foram baleados e morreram. Em média, foi como se a cada dois dias um adolescente tivesse sido baleado no Grande Recife no último mês.
O número de adolescentes baleados em abril também é superior ao registrado nos meses anteriores. Em janeiro deste ano, 11 adolescentes foram baleados; em fevereiro, 13; e em março, 11. Ao todo, já são 50 adolescentes baleados nos primeiros quatro meses do ano.
Infelizmente, a violência armada impacta inúmeras comunidades ao redor do mundo de forma trágica, sendo ainda mais devastadora quando atinge as crianças. No caso de Recife, é crucial notar o impacto que esses eventos têm na sociedade, em vez apenas nas famílias e nas vítimas. As crianças baleadas em suas próprias comunidades é o extremo fracasso coletivo na proteção dos mais vulneráveis.
Estes incidentes trazem à luz problemas graves de segurança pública, acesso a armas de fogo, desigualdade social e falta de oportunidades para os jovens que vivem em áreas dos incidentes. Além disso, surgem questões relativas ao papel do Estado em garantir políticas públicas que garantam direitos e fomentar uma cultura de paz e de respeito pelos direitos humanos.
Cabe lembrar, que o Governo do Estado lançou no dia 27 de novembro de 2023, com atraso de três meses, o plano “Juntos Pela Segurança”. A nova gestão marcou o fim do “Pacto pela Vida”, política de segurança pública lançada em 2007 que teve papel estratégico voltado para redução de crimes violentos intencionais (CVLI’s) entre 2007 e 2013, mas que também é alvo de críticas no sentido de ter priorizado as estratégias repressivas em detrimento de medidas prevenção. O encarceramento em massa foi intensificado nesse período, aprofundando as violações de direitos dentro das unidades prisionais do estado, fato que ocasionou inclusive condenação internacional do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão da situação do Complexo Prisional do Curado, Recife/PE.
O “Juntos Pela Segurança” surge no novo contexto de aumento dos índices de violência do estado, somando a um aumento da pressão política exercida pelas forças de segurança, base importante do eleitorado de Raquel Lyra. O Plano indica como meta a redução em 30% o número de Mortes Violentas Intencionais (MVIs) até 2026. A meta também é prevista para os índices de Crimes Violentos Contra o Patrimônio (CVP), que consistem em roubos e furtos, e crimes violentos contra a Mulher. Para garantir o seu custeio, o Governo de Pernambuco anunciou o investimento de mais de R$ 3 bilhões para a segurança pública.
Diversas críticas foram feitas ao Governo do Estado pela ausência de diálogo com a sociedade civil para a construção deste último Plano. Além disso, apesar das metas ousadas e otimistas para 2026, o plano não apresenta nenhum detalhamento sobre o modo de monitoramento ano a ano, dificultando o controle social. O plano segue apostando em medidas de repressão, sem inovações no sentido da prevenção e de articulação intersetorial com demais políticas sociais.
Ainda denunciando o racismo institucional e a ineficiência do Estado de Pernambuco na segurança pública, vale a pena ressaltar que, no recente estudo desenvolvido pela Rede de Observatórios de Segurança, apenas pessoas negras foram mortas em ações policiais no Grande Recife em 2022. A informação é da pesquisa “Pele Alvo: a bala não erra o negro”, desenvolvida pela a Rede de Observatórios de Segurança, projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), ou seja, a pesquisa registra que todas as pessoas mortas pelas mãos da polícia em Recife no ano de 2022 eram negras.
As ações fracassadas do Estado de Pernambuco vitimizam pessoas negras, elegendo sempre os mesmos corpos “matáveis”. A negligência desse modelo posto de segurança pública que insiste em vulnerabilizar os corpos negros não é um acidente, é um projeto genocida encabeçado pelo poder público.
Fontes:
https://fogocruzado.org.br/dados/relatorios/grande-recife-abril-2024
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