Niterói é terra indígena: abrindo caminhos para um debate sobre a memória do colonialismo

Niterói é terra indígena: abrindo caminhos para um debate sobre a memória do colonialismo

Por: O Poder Popular ·

Por Maria Francisca Theberge, estudante de História (UFF) e militante da UJC-RJ

Niterói, cidade no estado do Rio de Janeiro em que foi fundado o Partido Comunista Brasileiro, ainda que profundamente marcada pelas relações desenvolvidas na região durante o período da colonização, é promovida como um território que teria de certa maneira “resolvido” muitas dessas contradições. A incorporação e institucionalização da história dos povos indígenas para a narrativa oficial da história da cidade foi feita de forma a mistificar muitos aspectos dessa relação, mascarada no título de “a única cidade do Brasil fundada por um índio” (CULTURA NITERÓI, 2013).

O genocídio colonial é cruel porque ele apenas inicia na aniquilação dos corpos, é através dela que as narrativas de direito de autodeterminação são sequestradas e minadas. É a morte do povo que mata a cultura, que permite o colonizador se apropriar do Outro e reformular uma memória coletiva que reforce a coesão e a dominação. Como se os povos indígenas “não são (fossem) capazes de representar a si mesmos, necessitando, portanto, ser representados.” (MARX, 2011, p.143). O momento da “conquista” é o “do apetite e da força, com a maléfica sombra projetada por trás por uma forma de civilização que em um momento de sua história se sente obrigada, endogenamente, a estender a concorrência de suas economias antagônicas à escala mundial” (CESAIRE, 2010 , p.13).

Ainda que Niterói até hoje enquanto prefeitura e administração sustente a fundação indígena de Niterói, o faz de forma a escolher um lugar específico aos indígenas: à História e ao passado. Não existe espaço hoje na cidade de Niterói para os povos indígenas, somente as palavras tupi que utilizamos para identificar bairros, ruas e regiões.

Existe Itaipu, mas nela as regiões tradicionalmente ocupadas por famílias indígenas foram dissolvidas, a especulação imobiliária os empurrou para longe. De igual maneira, existe Camboinhas, mas as famílias da elite que ali residem expulsaram as famílias indígenas da aldeia Tekoa Mbo'yty que residiam na região da praia do bairro.

Como ilustram os zapatistas, “Querem nos tirar a história, para que a nossa palavra morra no esquecimento. Não nos querem índios. Nos querem mortos.” (QUARTA DECLARAÇÃO DA SELVA LACANDONA, 1996).

A memória construída em Niterói acerca dos povo originários é extremamente centrada na figura de Araribóia (“cobra feroz” em tupi), ou Martim Afonso de Souza, posteriormente batizado e condecorado pelo império português de “Cavalheiro da Ordem de Christo”. Araribóia foi bonificado com uma sesmaria no século XVI, após o acordo firmado entre os tamoios com os portugueses, para expulsão dos franceses e tupinambás da ilha de Paranapuã (atualmente referida como Ilha do Governador). Essa bonificação marcou a data do dia 22 de novembro de 1573, consagrada como a fundação da Aldeia de São Lourenço dos Índios, data essa posteriormente adotada como a de fundação da cidade de Niterói. Existem historiadores que apontam que depois da Cerimônia de Posse da sesmaria, Araribóia jamais teria saído de Niterói novamente, porém esta constatação está emaranhada com outro grande debate acerca da figura de Arariboia do qual não será possível nos ater com o fôlego necessário: o quanto o líder temiminó teria tensionado com as lideranças portuguesas.

A partir desses eventos, existem verdadeiras disputas da memória de Araribóia e da relação dos povos indígenas com a fundação e desenvolvimento da região onde hoje é Niterói. Essa discussão é travada não somente dentro na academia - diria até que principalmente fora das universidades, graças ao papel de enraizamento que essa memória desenvolveu no imaginário dos moradores da cidade de Niterói e região, assim como apropriado pela prefeitura da cidade e demais instituições, como até mesmo a Polícia Militar. Diversas histórias sobre episódios vividos por Araribóia são circuladas em veículos da imprensa fluminense das quais não temos qualquer comprovação científica, algumas mostrando Araribóia como um grande irreverente e “autêntico” líder e outras como um grande entusiasta da ocupação colonial.

A colonização é um processo de coisificação, o passado, o “pré-colonial”, supostamente incompatível com um novo modelo de progresso e civilização, é colocado de joelhos, encurralado, violentado, desumanizado e escondido. Posteriormente, quando pareceu interessante à narrativa de dominação, convém converter essas dores em estatuetas e pinturas que anunciam Araribóia como um representante de todo um povo, alguém que trabalhou com “a gente” (os colonizadores).

A colonização é um processo que resulta em "sociedades esvaziadas delas mesmas, de culturas pisoteadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas”, enfim, “de extraordinárias possibilidades suprimidas” (CESAIRE, 2010, p.28).

É interessante observarmos uma movimentação que nasceu no início do século XX de resgatar a memória de Araribóia como mito fundador da cidade, acompanhada da retomada da cidade como capital do Estado da  Guanabara. Essa movimentação teve como um dos principais vetores a Comissão Glorificadora a Martim Afonso de Souza Araribóia que foi dissolvida em 1915 após intensa disputa política.

A partir desse movimento foram encomendadas uma série de pinturas e estátuas para ocupar a cidade de Niterói com seu passado "glorioso", com a inauguração da Praça Araribóia no centro de Niterói - que posteriormente foi movida para o bairro de São Lourenço dos Índios e substituída pela estátua de corpo inteiro de Araribóia que até hoje permanece na praça.

Porém, a partir do período que se finda com a destituição de Niterói como capital do Rio de Janeiro, e Niterói ancorada no status de cidade dormitório e suburbana, o grupo político que passa a liderar o governo da cidade irá se preocupar em construir uma nova visão da cidade - uma cidade desvinculada do passado e atrelada à ideia de cidade cultural e moderna, passando a ocupar a imagem de Araribóia com um novo símbolo da municipalidade da cidade: o Museu de Arte Contemporânea. É dessa maneira que o colonialismo, o capitalismo e suas forças de dominação garantem sua manutenção, através do reordenamento da vida social e urbana, através da reconstrução, dando vazão para as tensões sociais em seus territórios.

Ainda que hoje as distintas administrações da cidade de Niterói tentem de alguma forma escapar de seu passado, ele nos assombra. Estátuas e ilustrações de Araribóia - cada uma com uma representação radicalmente distinta - figuram nos principais bairros da cidade. Em cada grande avenida, um Almirante da Marinha ou interventor é homenageado. Palavras em tupi nomeiam muitos de nossos bairros: Icaraí, Itaipu, Piratininga, Cafubá, Itacoatiara. Logomarcas e nomes de farmácia, festivais de música, marcas de cerveja e até mesmo brasões do batalhão da Polícia Militar carregam símbolos e menções à Araribóia e aos tupinambás. Vemos a institucionalização e o embalsamar da memória indígena de Nitcheroy em toda a cidade, mas onde estão eles?

Não é possível discutirmos a cidade de Niterói, assim como o conjunto das cidades brasileiras, sem nos debruçarmos acerca da conservação da memória do colonialismo e as condições de vida dos povos em que nelas foram historicamente oprimidos. Niterói é uma cidade que, como muitas, sofre por ter como única política habitacional a investida da especulação imobiliária permitida pelo governo estadual e a prefeitura, empurrando estas populações às mais indignas formas de existência.

Nós, comunistas, temos o dever de construir junto à essas populações um projeto autêntico, originário e anticolonial de preservação da memória indígena e negra no país, buscando o rompimento com o passado colonial mas jamais o esquecimento deste, pois não é possível. Devemos lembrá-lo, para que jamais se repita!

Neste próximo período nós historiadores, arquivistas, trabalhadores e trabalhadoras de todo o país, temos a tarefa histórica de reconstrução do nosso passado.

Niterói e Brasil são terra indígena!

Referências bibliográficas:
ALDEIA em praia de Niterói opõe índios a donos de casas de luxo. G1, Rio de Janeiro, 7 mai 2008. Disponível em: https://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL456844-5606,00-ALDEIA+EM+PRAIA+DE+NITEROI+OPOE+INDIOS+A+DONOS+DE+CASAS+DE+LUXO.html. Acesso em: 8 dez. 2022.
BASTOS, Lia Vieira Ramalho. 'Niterói, terra de índio': apagamentos, silenciamentos e reapropriações em torno da figura de araribóia. 2015. 167 f. Dissertação
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o Colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.
CULTURA NITERÓI. Cultura Niterói, 2013. História de Niterói. Disponível em: https://www.culturaniteroi.com.br/blog/nictheroy/430.  Acesso em: 8 dez. 2022.
DUARTE, Marcello Felipe. De Arariboia a Martim Afonso: a metamorfose indígena pela guerra nas águas da Guanabara. Revista Navigator, v.7, n.14, 2011. pp.87-103.
KNAUSS, Paulo. Herói da cidade: imagem indígena e mitologia política. In: KNAUSS, Paulo (org.). Sorriso da cidade; imagens urbanas e história política de Niterói. Niterói: Niterói Livros, 2003.
MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo. 2011.
MORADORES, lutam contra especulação imobiliária na Lagoa de Itaipu, em Niterói. Brasil de Fato, Rio de Janeiro, data 2017. Geral. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2017/10/25/moradores-lutam-contra-especulacao-imobiliaria-na-lagoa-de-itaipu-em-niteroi. Acesso em: 8 dez. 2022.
SALGUEIRO, Valéria. “ARARIBÓIA” - UMA HISTÓRIA E UMA ALEGORIA DA HISTÓRIA. XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2003. (Encontro)
QUARTA DECLARAÇÃO DA SELVA LACANDONA, 1996. <Disponível em comunicados/1996/1996_01_01_a.htm>. Acesso em: 11 dez. de 2022.

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