Por Márcio Pinheiro, petroleiro da Unidade Classista e do PCB
Entre as forças beligerantes, essa máxima pode soar verdadeira e normalmente esta é a visão retratada pelas grandes corporações midiáticas. De fato, se compararmos apenas os exércitos rivais, uns perdem mais, outros perdem menos, mas todos perdem.
Mas guerras não se fazem apenas com exércitos. Utilizando a nomenclatura liberal difundida na sociedade, podemos dizer que as guerras possuem diversos stakeholders: a população civil que sempre leva a pior, os países limítrofes que precisam (ou pelo menos deveriam) receber em seus territórios legiões de refugiados, os espertalhões que tentam se aproveitar da fragilidade desses refugiados, a natureza destruída pelas bombas, os fornecedores de armas e munições que veem seus lucros se multiplicarem nessas horas e as empresas que vão reconstruir o país arrasado se apropriando de seus recursos naturais e da mão de obra barata de uma população civil desesperada para sobreviver.
Portanto, não é todo mundo que se dá mal em uma guerra. Apenas quem é mais fraco se dá mal. Mesmo nas forças militares, quem vai para o front são os soldados, geralmente trabalhadores, filhos e netos de trabalhadores. Já dizia Rosa Luxemburgo: “Numa guerra, só morrem trabalhadores”. De fato, os generais e comandantes ficam bem protegidos e só morrem depois de matarem os soldados. Mas, e quando os trabalhadores morrem sem declaração de guerra? É aí que falha essa ideia simplista de deixar os demais stakeholders de fora.
Para compreender esse evento que está acontecendo na Ucrânia, alguns chamam de operação militar, outros de invasão e outros de guerra, é preciso saber o pano de fundo desde a queda da URSS, ou mesmo bem antes disso, bem como conhecer outros conflitos que estão em andamento nesse momento, até mais sangrentos e cruéis, e praticamente ninguém toca no assunto.
A Rússia surge com o estabelecimento de tribos eslavas ao longo do Rio Dniepre (aportuguesado: Rio Danápris), onde foi fundada Kiev (aportuguesado: Quieve) por volta do século V d.C. Com a invasão de tribos turcomanas, os eslavos fogem para regiões mais protegidas, reconquistando Kiev no século IX, mas depois sendo novamente invadida por turcomanos, mongóis e lituanos. No século XVII, no já estabelecido Império Russo, o Tsar Pedro I era chamado de “O Imperador de Todas as Rússias”. E o que se chamava de “rússias”, no plural, eram a Grande Rússia (atual Federação Russa), a Pequena Rússia (atual Ucrânia) e a Rússia Branca (atual Bielorrússia ou Belarus).
Com a Revolução Russa de 1917 e a deposição do Tsar, foi criada a URSS em 1922, inicialmente contando com “todas as Rússias”: Rússia, Ucrânia e Bielorrússia, além da República Transcaucasiana, que deu origem às atuais Geórgia, Armênia e Azerbaijão (e também ao conflito no Artsaque após a queda da URSS). Somente após o fim da URSS é que a Ucrânia foi ter um governo próprio; durante praticamente toda sua existência a Ucrânia foi ligada umbilicalmente à Rússia. Lembremos que a URSS transformou uma Rússia miserável e feudal numa das maiores superpotências mundiais e foi extinta a contragosto da população, que votou maciçamente pela preservação da federação em referendo.
Para combater o avanço da influência da URSS na Europa Oriental, que ameaçava os interesses da burguesia ocidental, os EUA, Canadá e países da Europa Ocidental, muitos deles dominados por ditadores fascistas como Salazar (Portugal), formaram um pacto militar chamado Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN ou NATO, em 1949. Em 1955, em contrapartida, a URSS forma, junto com os países de sua área de influência, o Pacto de Varsóvia.
Com o fim da URSS, na década de 1990, foi feito um acordo com a OTAN de que esta não avançaria pelos países do Pacto de Varsóvia, o que foi sumariamente desrespeitado pelos ocidentais, em um momento em que pouco se podia fazer para impedir, uma vez que os países surgidos da dissolução da URSS estavam em uma situação econômica muito difícil, com os oligarcas portando-se como abutres ao repartir entre si o espólio estatal e com a população a sofrer com fome e desemprego. Esse avanço da OTAN é um dos pilares da atual crise na Ucrânia.
A partir dos anos 2000 começam a eclodir em diversos países do mundo as chamadas “Revoluções Coloridas”, patrocinadas pelas burguesias locais aliadas aos interesses geopolíticos ocidentais (que também são suspeitos de patrocinar esses movimentos e infiltrar agentes, e que, apesar de negarem, é uma negação pouco crível não só pelo seu histórico, mas como pelas evidências existentes). Essas “revoluções coloridas” (“”revoluções”” com muitas aspas...) ocorreram coincidentemente (ou não) apenas em países em que os EUA tinham interesse geopolítico, para obter acesso a recursos (caso da Bolívia), estancar o desenvolvimento de países concorrentes (caso do Brasil) ou mesmo para colocar contra a parede seus opositores (caso da Rússia, usando a Ucrânia).
Em 2014, ocorreu na Ucrânia o Euromaidan, que foi uma espécie de “revolução colorida”, pela qual foi derrubado o presidente Viktor Yanukovich (que defendia uma aproximação com a União Europeia, mas também com a União Econômica Eurasiática) e foi empossado em seu lugar Petro Poroshenko (pró-União Europeia, pró-EUA e um dos oligarcas mais ricos da Ucrânia). O Euromaidan já é resultado da “Revolução Laranja” ocorrida em 2004, que permitiu o desenvolvimento de células neonazistas e neofascistas em toda a Ucrânia (apoiadas pelo ocidente) e a formação de milícias armadas que começaram a atacar sindicatos, organizações de esquerda e comunidades ucranianas russófonas (principalmente no leste do país, na região do Donbass) e assassinar essas pessoas. O comunismo foi criminalizado, o Partido Comunista Ucraniano foi ilegalizado e seus membros foram caçados, torturados e mortos. Sedes de sindicatos foram incendiadas causando a morte de centenas de trabalhadores, com o beneplácito do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, um comediante de extrema-direita suportado pelas células nazifascistas. Diante dos ataques, os oblasts de Lugansk e de Donetsk proclamaram-se repúblicas independentes e pediram apoio russo para seu reconhecimento. O ataque à população russófona no leste ucraniano é o segundo pilar da operação russa.
No Brasil, alguns grupos nazifascistas evocavam a seguinte frase: “Vamos “ucranizar” o Brasil”. “Ucranizar” era justamente isso: fortalecer as células nazifascistas e perseguir, torturar e matar opositores, e, de quebra, permitir que seus membros e apoiadores criem um partido nazista e abusem de mulheres, principalmente fragilizadas por conflitos ou pela exploração capitalista.
Parafraseando o Prof. Sílvio Almeida, “Rússia não é URSS, Biden não é Roosevelt e Putin não é Lênin” (embora Zelensky e Bolsonaro devam ser praticamente a mesma coisa...), então esta não é uma disputa maniqueísta entre Comunismo e Capitalismo. Biden é representante dos interesses capitalistas mais sórdidos e Putin também tem uma posição mais liberal e de repressão a minorias (O PCFR é oposição a Putin, mas apoia a ofensiva), mas posiciona-se pela defesa da soberania russa, diferente de certo presidente sul-americano.
A OTAN, aproveitando-se de ter seu fantoche no comando da Ucrânia, propõe incorporá-la na aliança, o que é aceito por Zelensky. Isso permitiria à OTAN instalar mísseis na fronteira da Rússia, podendo dizimar a Rússia em poucos minutos. Como sabemos o modus operandi e a covardia das ações militares da OTAN, não deve sobrar muita coisa, haja vista o conflito no Iêmen que não aparece na TV e nos jornais. A OTAN tem planos de retalhar a Rússia em várias republiquetas, minar sua força e, provavelmente, esse seja o principal pilar da ofensiva russa.
Há vencedores nessa guerra? Sim. Além dos fornecedores de armas, esse conflito pode ser crucial para a manutenção da existência da Rússia, no ponto de vista das oligarquias que a governam. Ou da imposição da unipolaridade estadunidense no mundo (com suporte a nazifascistas perseguindo, torturando e matando qualquer um de nós em qualquer lugar do mundo).
Se há algo para protestar, devemos fazê-lo pela dissolução da OTAN, para preservar a paz.
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