O arcabouço ou a vida
Por Gilberto Maringoni e David Deccache - Blog da Boitempo
A tragédio do Rio Grande do Sul não é tragédia localizada. É tragédia sistêmica de um país submetido por mais de três décadas a políticas de desmonte do Estado, de privatizações de empresas estratégicas, de disseminação da falácia de que o desenvolvimento pode ser conduzido pelo mercado, de que regras ambientais restringem o agronegócio, de que códigos reguladores são travas à modernização, de que a infraestrutura e decisões de investimento podem ficar nas mãos de oligopólios cujas sedes estão fora do país e de que a política atrapalha decisões que deveriam ser tomadas com base em critérios puramente técnicos.
Com mais de 90% de seus 497 municípios impactados pela fúria natural impulsionada pela ação humana, o Rio Grande viveu caos semelhante há poucos meses e viverá novos, pois as condições objetivas de devastação ambiental e alucinação privatista não mudaram. Qual a segurança para a indústria, para o comércio e para a realização de investimentos numa região que, a qualquer momento, pode enfrentar novamente uma hecatombe como a atual? Quanto custará, em termos materiais e humanos, reconstruir um estado com 11 milhões de habitantes, quarto maior PIB da Federação, larga história e definidor da vida nacional nos últimos dois séculos? Até aqui não existe a menor ideia do que deverá ser feito para reorganizar política, econômica e socialmente a região.
Os arautos do “mercado acima de tudo, iniciativa privada acima de todos” estão subitamente mudos, talvez à espera que as águas e as atenções baixem. Uma reconstrução com a liderança do mercado resultará em exacerbação de desequilíbrios regionais e sociais e visará inflar as arcas de especuladores.
Não nos esqueçamos que a assim chamada reconstrução do Iraque, após a invasão estadunidense de 2003, resultou em gordos ganhos por parte de empreiteiras e petroleiras que privatizaram quase tudo no país.
Mais uma vez, nas horas de crise, é o poder público o agente essencial da retomada. Durante a pandemia, vimos em todo o mundo que foram os Estados que socorreram empresas, bancos e famílias, destruindo o mito da inexistência de dinheiro e mobilizando plenamente os recursos disponíveis. Naquele momento, foram aplicadas as velhas lições de Keynes, mostrando que, em tempos de crise, a intervenção estatal é indispensável para se evitar o colapso econômico.
Em um Estado monetariamente soberano, os verdadeiros limites para os gastos são dados pela plena utilização da capacidade produtiva doméstica. Restrições fiscais que deixam ociosos recursos que deveriam ser mobilizados para a reconstrução, para a prevenção de novos desastres e para a mitigação de mazelas sociais e ambientais são, além de autoimpostas, humanamente e ambientalmente inaceitáveis.
Planos ousados de investimentos por parte do poder público são incompatíveis com medidas do arcabouço fiscal, tão ao gosto da Faria Lima. Não é à toa que, ao mesmo tempo em que se anunciam verbas extraordinárias para o Sul, vozes do financismo multiplicam-se em editoriais, entrevistas e lobbies, alardeando o pior dos mundos caso a “gastança” não seja contida.
O pior dos mundos é o aqui e o agora, caso se bloqueiem grandiosos e contínuos investimentos públicos para socorrer a região e buscar uma transformação no modelo de desenvolvimento que traga melhores horizontes ao Brasil. Precisamos de um novo pacto nacional, um New Deal à brasileira. Ao contrário do que proclamava Margaret Thatcher, há duas alternativas aqui: o arcabouço ou a vida.
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