
O descaso do governo de SP com a cultura da periferia
Por Leticia - núcleo José Montenegro de Lima da UJC
Na terça-feira do dia 19 de agosto de 2025, o Teatro de Contêiner Mungunzá e o Coletivo Tem Sentimento foram alvo de ação truculenta dos guardas que invadiram o espaço e usaram spray de pimenta. Alvos de ordem de despejo, os coletivos ocupam um terreno localizado entre as ruas General Couto Magalhães, dos Gusmões e dos Protestantes, onde ficava o "fluxo" da Cracolândia, na região central de São Paulo. A União da Juventude Comunista compareceu ao evento de protesto a desocupação do espaço e da manutenção da cultura, entrevistando um de seus membros a fim de ter uma visão de dentro do que estava acontecendo.
UJC: Primeiro eu ia perguntar o seu nome, a sua idade e o que você faz, assim, só para um contexto.
Teatro de Contêiner: Meu nome é Lucas Beda, eu sou artista, tenho trinta e nove anos, sou integrante da Cia Mungunzá Teatro, e estou como diretor e gestor aqui do Teatro de Contêiner.
UJC: Você falou da sua relação, né? Então, como você definiria o trabalho do Teatro de Contêiner?
Teatro de Contêiner: Enfim, aqui é um espaço que sempre veio para agregar conjuntamente com a comunidade. É um espaço de cultura, mas que também sempre recebeu grupos, artistas, ativistas, que também se relacionam com assistência social, direitos humanos, arquitetura e urbanismo. E redução de danos, né? A gente está no centro da cidade de São Paulo, bem na região que era conhecida como Cracolândia, então a redução de danos, a cultura como redução de danos, um lugar transversal, onde todas as pessoas que tivessem interesse pudessem entrar, sentir confortável, sair a hora que quisessem… Esse é um espaço cultural, um polo cultural que se tornou, com essas linguagens transversais que eu falei, sabe? Esses rolês de música também estão muito presentes, inclusive hoje (21/08) estamos montando um show, e enfim, mas também há uma cultura periférica. Nós estamos na periferia do centro, sempre tivemos uma identificação como um espaço das periferias também. Nas margens de espaço de encontro também, quando a galera via, e então o teatro se tornou pulsante. O espaço de cultura, arte e celebração também, sabe? A vida, a vida.
UJC: O que você acha que promove, essa ação de desfazer, quase como se fosse um desprezo mesmo, ao espaço, ao trabalho de vocês, a tudo que acontece aqui há muito tempo já? Esse espaço vivo, cultural e tão importante.
Teatro de Contêiner: Enfim, acho que tem uma linha de raciocínio vindo pelo Governo do Estado e o Governo Municipal de São Paulo, que é realmente uma limpeza étnica e a gente está incluído nisso, porque a gente representa o povo. É uma higienização, pessoas que não são dignas talvez de pisar nesse terreno deles, por não terem dinheiro. É bem simples: me parece que eles odeiam o pobre, e a gente está dentro desse percurso que eles estão traçando no governo da cidade, e no governo estadual para higienizar cada vez mais. E a cultura é muito pujante com relação às reflexões, e mostrar o que realmente está acontecendo na história, o que está se passando no tempo. A gente acaba sendo também afetado, perseguido para ser silenciado e não representar nenhuma voz mais dessas pessoas marginalizadas por eles no centro da cidade de São Paulo.
UJC: Já que você também está falando do governo, teve na Semana de Rock a censura da Sofia Chablau e de vários e várias pessoas que tentaram protestar a favor da Palestina. Então, esse movimento do Ricardo Nunes e os seus votantes, que acham que arte é uma coisa de “esquerdalha”, que é uma coisa que não interessa, que não tem valor, se você pudesse falar para essas pessoas, dar alguma mensagem, o que você diria?
Teatro de Contêiner: Bom, o Nunes a gente já sabe... Essa política, necropolítica que está rolando, mas é muito importante ressaltar que nós temos um secretário de cultura que chama Totó Parente e que com certeza, todo esse aspecto que a gente está vivendo hoje de repressão, a liberdade de sermos artistas na cidade de São Paulo com tanta pungência, com tanta reflexão, com tanta arte sendo produzida, alguém vem e por causa de uma expressão a favor da Palestina e contra o genocídio que lá acontece, pode ser censurado. Isso para mim demonstra que o secretário de cultura, que seria aquele que deveria estar dando espaço para essas pessoas, para múltiplas vozes dentro do meio cultural, coloca um sistema e um meio de trabalho onde dá a possibilidade de qualquer pessoa censurar outra dentro de um show, dentro de um da FLIPEI (Festa Literária Pirata de Livros Independentes), que está mais relacionada à esquerda, também caiu dentro da programação que estava vinculada à cultura. Isso é a representação mais tosca, grotesca e violenta de um secretário de Cultura, que é um alinhamento, quem deveria estar nos protegendo, modulando um pensamento tão bizarro como está vindo do próprio governo e do prefeito, barrar isso, porque a cultura de São Paulo não é isso, pelo contrário. A cultura de São Paulo agrega todas as culturas do país, de certa forma. Sempre a gente traz esse contexto para a cidade, porque tem pessoas de todo o país que vêm para cá, e a cultura se estabelece nesse sentido. E agora, vem dessas pessoas dizerem o que querem num palco, num show, ou na vida, porque é isso que eles fazem aqui. Se você faz uma crítica nesse território, você vai ser perseguido, isso é terrível.
UJC: A minha última pergunta seria – você acha que os paulistanos, as pessoas que moram em São Paulo, principalmente as pessoas que moram aqui no centro, elas acabam não prestando atenção na própria cidade?
Teatro de Contêiner: Existe muita gente que nem sabe que esses espaços existem, e quando acontece esse tipo de coisa, não dá devido a atenção, o devido valor, à luta para manter esses espaços vivos. Isso é uma demonstração de que a cidade realmente enaltece mais shoppings do que teatros, mais shoppings do que espaços culturais. Isso é um reflexo da cultura constante que a gente está vivendo. As pessoas em São Paulo não podem dizer que não têm acesso à cultura. Isso também parte de uma escolha, e essa escolha muitas vezes são de pessoas com capacidade financeira muito maior, porque elas vão ao teatro, acredito, mas em teatros que se paga quatrocentos reais, quinhentos reais em um ingresso. Nós estamos falando e defendendo que existe cultura aqui, mas a cultura que nós estamos falando, é uma cultura popular, uma cultura democrática. Essas pessoas fazem da cidade um monstro, porque o que mais tem e pulsa na cidade é espaço de cultura, o desconhecimento disso é a irresponsabilidade da pessoa e o foco político para outro lugar, não realmente para aquilo que é efetivo na construção de direitos dentro de uma cidade.
A relação entre a censura – a tal desaprovação e consequente remoção da circulação pública de uma certa informação ou manifestação, visando à proteção dos interesses de um estado – e o teatro brasileiro, sempre foi marcada por tensões constantes, especialmente no século XX. Mesmo antes da ditadura militar de 1964, já haviam mecanismos de controle, geralmente voltados a questões de “moralidade”, religião e bons costumes, o que fazia com que peças que abordassem sexualidade ou críticas sociais (ou qualquer assunto que fosse referente ao pensamento crítico e a essência humana) fossem cortadas ou proibidas. No entanto, foi durante o regime militar que a censura ganhou força institucional, especificamente, com a criação de órgãos específicos que exigiam a submissão prévia de textos teatrais à Polícia Federal. Nesse contexto, o teatro passou a ser visto como um espaço de resistência e, justamente por isso, tornou-se alvo de vigilância intensa. Autores como Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Plínio Marcos e Augusto Boal tiveram obras vetadas, interditadas ou profundamente alteradas pelos censores, e para driblar esse controle, muitos dramaturgos recorreram a metáforas, alegorias e linguagens simbólicas, construindo um diálogo indireto com o público, que aprendia a “ler nas entrelinhas.” Assim, embora a censura tenha limitado a liberdade criativa, paradoxalmente também estimulou a invenção de novas formas expressivas e consolidou o teatro como um espaço de denúncia, resistência e reflexão no Brasil, assim como estimula hoje, o crescimento da desaprovação dos jovens e pessoas que estão nesse meio artístico a toda uma administração de governo.
A atriz Fernanda Montenegro, dama do teatro brasileiro, assim como outros artistas, se manifestou emitindo uma carta pedindo que o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB) reveja o despejo: “(...) Trata-se de uma companhia de teatro altamente criativa. São 17 anos de atividade. Mais de 400 projetos realizados, tendo como base esta sendo neste bairro. É uma companhia teatral fundamental em São Paulo e no Brasil. O “Teatro de Contêiner Mungunzá”, permanecendo nesse endereço na cidade de São Paulo, é um sinal de renascimento desse bairro. Um espaço de comunhão humana.” Em vídeo publicado nas redes sociais, Marieta Severo classificou a ação dos guardas como lamentável: "me remeteu aos piores tempos de uma ditadura, que eu vivi, onde os teatros eram invadidos, onde os atores eram ameaçados.”
“Quero deixar aqui a minha tristeza profunda por esse momento, e a minha vontade, a minha esperança de que isso não aconteça mais no Brasil. Não há mais espaço para isso. Nós vivemos uma democracia plena, precisamos dela, gostamos dela, queremos viver nela. E esse tipo de cena não compactua, não pode acontecer na democracia, na liberdade que a gente precisa, principalmente nas nossas artes, na nossa cultura”, disse a atriz.
Foi concedido à companhia apenas 180 dias para evacuar o espaço e deixar todo seu legado para trás, assim como uma história de resistência, acolhimento e proliferação da arte como um direito para pessoas que muitas vezes não têm o básico para viver. Seria a arte considerada algo básico para viver? Nossos políticos, principalmente os de São Paulo, acham que não, mas quando não se tem nada, a arte alimenta, veste e muitas vezes, incontáveis, ampara. O Teatro de Contêiner fica.
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