O espírito elitista de Churchill
POR JOHN NEWSINGER - é professor aposentado de história e autor de vários livros, incluindo o mais recente, “Chosen by God: Donald Trump, the Christian Right e American Capitalism” [“Escolhido por Deus: Donald Trump, A Direita Cristã e o Capitalismo Americano”].
TRADUÇÃO LAIRA VIEIRA
O militar e ex-primeiro ministro do Reino Unido, Winston Churchill, faleceu neste dia em 1965. O mito liberal em torno do seu nome ignora o registro histórico: o homem lembrado como "herói" da Segunda Guerra Mundial era um imperialista, racista e, acima de tudo, comprometido com a manutenção da hierarquia de classes.
Resenha do livro Winston Churchill: His Times, His Crimes, de Tariq Ali (Verso, 2022).
Existem centenas de biografias e livros sobre Winston Churchill. Eles ainda aparecem com uma regularidade incessante. Até mesmo o ex-primeiro ministro, Boris Johnson, escreveu uma biografia comemorativa do grande homem chamada The Churchill Factor: How One Man Made History [O fator Churchill: como um homem fez história], um volume que é, como seria de esperar, verdadeiramente terrível. É um dos piores relatos já escritos – e há muita concorrência.
Esse grande número de livros reflete e ajuda a sustentar o importante papel que o “mito Churchill” desempenha na construção do anglicismo e do conservadorismo contemporâneo. Churchill é celebrado como o homem que incorporou o espírito da Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, inspirando o povo britânico a se levantar “sozinho” contra os nazistas em 1940, salvando assim a democracia e o mundo. Envolto em tudo isso está uma celebração do privilégio de classe e das glórias do Império Britânico.
A obsessão contemporânea da direita com Churchill é muito sobre retratar o Partido Conservador como sendo, de alguma forma, um empreendimento de Churchill. Os políticos conservadores de hoje continuam as lutas heróicas que Churchill travou ao longo de sua vida, lutando pelo país e pelo império. De fato, o mito de Churchill tornou-se uma arma extremamente útil na guerra ideológica que a direita está travando e vem travando desde a década de 1980. Churchill, embora morto há quase sessenta anos, ainda está listado como combatente na “guerra cultural” que a direita está determinada a travar.
Desafiar isso é uma tarefa vital – sem dúvida uma tarefa mais importante hoje do que há algum tempo – e Tariq Ali interveio para preencher a lacuna com Winston Churchill: His Times, His Crimes [Winston Churchill: seus tempos, seus crimes]. Seu livro não é uma biografia convencional, mas sim um relato da interação de Churchill com as lutas da classe trabalhadora e a resistência colonial, uma narrativa utilmente informada pelos anos de experiência do autor com a política revolucionária. O resultado é um volume poderoso, combativo e de fácil leitura, que deve ser recebido de coração aberto e esperamos que seja lido por um número crescente de pessoas se preparando para revidar. Isso não quer dizer que o livro não tenha falhas, mas, particularmente no que diz respeito ao Império Britânico, ele confronta o mito de Churchill com grande efeito.
Como Ali insiste, “o imperialismo era a verdadeira religião de Churchill”, e inevitavelmente isso veio com “uma crença e promoção da superioridade racial e civilizacional”. Para Churchill, o império era um “prisma” através do qual ele via “quase tudo em casa e no exterior”. De fato, como Ali o resume, Churchill “era, acima de tudo, um ativista imperial”, alguém que “queria lutar, matar e, se necessário, morrer pelo… Império Britânico.” Desnecessário dizer que as realidades da guerra colonial eram tais que matar era muito mais provável do que morrer. Embora não se possa duvidar da centralidade da política imperialista de Churchill, nem por um momento, ele também estava muito preocupado com a forma como a glória do império poderia ser usada para glorificar e imortalizar a si mesmo.
Ali confronta isso desnudando as realidades do Império Britânico e celebrando aqueles que resistiram a ele. Um bom exemplo é fornecido por seu relato de protestos pós-Primeira Guerra Mundial por tropas que aguardavam a desmobilização no Egito e na Índia. Em Poona, no outono de 1919, houve um “motim aberto” e Ali comemora o papel que o “suboficial radical, sargento Bowker” desempenhou neste episódio. Um dos grandes pontos fortes de Winston Churchill: His Times, His Crimes é que, em vez de uma celebração implacável de Churchill como herói, Ali olha para aqueles que resistiram ao imperialismo britânico e os incorpora ao registro histórico. Para muitos dos admiradores de Churchill, manchar um relato do grande homem dessa maneira quase equivale a um sacrilégio.
Ali é muito bom ao descrever o papel de Churchill na Guerra da Independência da Irlanda. A parte de Churchill no estabelecimento do “Black and Tans” ( “Negros e Pardos” ) é bem conhecida, mas nos é mostrado o rosto da resistência do motim Listowel, do policial real irlandês (RIC) Jeremiah Mee. Mee saiu em protesto contra um oficial britânico, o tenente-coronel Gerald Smyth, que disse aos recrutas que eles poderiam atirar em quem quisessem. O que ele disse foi: “Quanto mais você atirar, mais eu vou gostar de você, e garanto que nenhum policial terá problemas por atirar em qualquer homem”.
Smyth passou a ordem às tropas, sobre um navio de emigrantes cheio, de Sinn Féiners, que havia deixado o porto recentemente: “Eu garanto a vocês, homens, eles nunca irão desembarcar”. Mee denunciou Smyth como assassino, e Smyth ordenou sua prisão, mas ninguém obedeceu à ordem; na verdade, outros treze policiais se juntaram a Mee na demissão.
Ali continua narrando o motim dos “Connaught Rangers”, que estavam estacionados na Índia em junho de 1920. O cabo Joe Hawes disse ao sargento: “Em protesto contra as atrocidades britânicas na Irlanda, nos recusamos a continuar sendo soldados a serviço do rei.” O “Tricolor irlandês” foi criado no lugar da “Union Jack”. Os envolvidos corriam o risco de serem executados – e, de fato, dezenove dos amotinados foram condenados à morte.
No final, apenas um homem, James Daly, foi executado, e Ali o homenageia devidamente por sua coragem e sacrifício e por seu desafio ao Império Britânico. São pessoas como Daly que merecem ser lembradas, não Winston Churchill.
O capítulo sobre o papel de Churchill na intervenção britânica ao lado do Exército Branco, na Rússia, também é útil. Churchill estava desesperado para comprometer o governo de Lloyd George com a derrubada dos bolcheviques, independentemente do que o primeiro-ministro e seu gabinete pretendiam. No que dizia respeito a David Lloyd George, uma guerra em grande escala na Rússia, corria o risco de provocar um surto revolucionário na Grã-Bretanha, algo que não parece ter preocupado Churchill. Mais uma vez, Ali identifica a oposição ao “aventureirismo” de Churchill, com foco no tenente-coronel John Sherwood-Kelly, um oficial que serviu no norte da Rússia. Sherwood-Kelly deixou clara sua oposição à condução da intervenção e foi enviado de volta à Grã-Bretanha em desgraça, onde ele foi a público, escrevendo à imprensa para condenar o fiasco. Sua denúncia repercutiu nas tropas ainda na Rússia, e Churchill insistiu que ele fosse submetido à corte marcial. Ele recebeu uma reprimenda, que, dadas as circunstâncias, era quase equivalente a um endosso.
Há, no entanto, uma fraqueza no relato de Ali sobre a intervenção britânica. Muito mais deveria ter sido discutido sobre o fracasso de Churchill em acabar com os massacres antissemitas, que estavam sendo realizados pelo Exército Branco do general Anton Denikin. Dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças judias foram brutalmente mortas em uma orgia de estupro e assassinato, por tropas que os britânicos estavam armando, e apoiando de todas as maneiras que podiam.
Churchill induziu o chefe da missão britânica, general H. C. Holman, ele próprio um antissemita cruel, a encorajar Denikin a conter as atrocidades, porque, como ele disse, “os judeus são muito poderosos na Inglaterra”. E um tanto surpreendente é o fracasso de Ali em ter qualquer debate sobre o “Hands Off Russia!” (“Não Encoste Na Rússia”), movimento na Grã-Bretanha, e sem dúvida uma das campanhas socialistas mais importantes deste período, e um ponto alto na política da classe trabalhadora britânica. Quanto ao governo britânico realmente reconhecer os bolcheviques, bem, de acordo com Churchill, “era melhor legalizar a sodomia”.
Ali também fornece um relato poderoso da atitude de Churchill em relação ao fascismo nas décadas de 1920 e 1930. Pelo menos inicialmente, Churchill viu o fascismo como uma arma útil para combater a ameaça comunista. Como Ali coloca, Churchill era “cego (ou seria guiado!?) por preconceitos de classe e imperiais” e, consequentemente, “apoiou totalmente o fascismo europeu contra seus inimigos da esquerda”. De fato, em 1927, Churchill realmente conheceu Benito Mussolini, e o elogiou por seu “comportamento gentil e simples e… seu equilíbrio calmo e desapegado”, e proclamou que o ditador fascista da Itália não pensava em nada “exceto no bem duradouro, como ele o entendia, do povo italiano”.
Ainda mais revelador, em novembro de 1938, Churchill disse à Câmara dos Comuns: “Sempre disse que, se a Grã-Bretanha fosse derrotada na guerra, esperava que encontrássemos um Hitler para nos levar de volta à nossa posição legítima entre as nações.” Sua objeção aos fascistas não era a imposição de regimes policiais brutais e repressivos ao seu povo, mas sim a ameaça à segurança do Império Britânico. Para ser justo, é claro, Churchill não tinha nenhuma objeção ao Estado britânico impor regimes policiais brutais e repressivos nas colônias do país – na verdade, ele era totalmente a favor disso, sempre que o governo imperial era desafiado. Alguma exploração do relacionamento de Churchill com Oswald Mosley e com Edward VIII na década de 1930 teria sido útil aqui.
Como seria de esperar, Ali coloca a terrível fome de Bengala de 1943 no centro do palco em seu capítulo sobre Churchill e a Índia. A morte de cinco milhões de homens, mulheres e crianças por fome, doenças e exposição às intempéries, na Índia governada pelos britânicos, durante a Segunda Guerra Mundial, foi por muitos anos suprimida, encoberta e esquecida.
Na época, foi reconhecido como um dos episódios mais vergonhosos da história imperial britânica, com o vice-rei indiano, Lord Archibald Wavell, por exemplo, criticando amargamente a resposta de Churchill à fome em massa, observando que isso causaria danos incalculáveis à reputação da Grã-Bretanha.
Ele não precisava se preocupar, é claro, porque os membros do Partido Trabalhista do governo de coalizão de Churchill, incluindo o vice-primeiro-ministro Clement Attlee, estavam tão envolvidos no crime quanto os conservadores, e tão interessados em encobri-lo. É claro que gerações de historiadores subsequentemente ignoraram a fome, eliminando-a da folha de balanço do império. A razão para isso é clara: retratar o império como um empreendimento benigno, embora com falhas, não pode ser sustentado se os milhões que morreram em 1943 e 1944 fossem reconhecidos e seus destinos incorporados à história. Consequentemente, livros sobre o Império Britânico, muitos escritos por historiadores respeitáveis, convenientemente o extirparam. Da mesma forma, livro após livro sobre Churchill, não conseguiu sequer mencionar a fome de Bengala, e mesmo hoje, quando está se tornando cada vez mais difícil ignorar o episódio, muitas vezes ele é mencionado apenas de passagem. O relato de Ali sobre Churchill finalmente faz justiça às vítimas da fome. A importância disso não pode ser subestimada, foi grotesca a maneira como essas milhões de mortes terríveis foram removidas com sucesso do registro histórico.
Há muitas outras questões e episódios sobre os quais Ali escreve com muita força, fazendo questão de expor tanto as realidades do império, quanto o papel de Churchill. Ele reflete sobre a intervenção britânica na Grécia, em 1944, derrubando a resistência liderada pelos comunistas com força máxima; sobre a atitude racista de Churchill em relação aos árabes; sobre a Palestina e o sionismo; na derrubada do governo Mohammad Mosaddegh, no Irã em 1953; e sobre os esforços feitos para reprimir a chamada rebelião “Mau Mau” no Quênia, no início da década de 1950.
Durante o último mandato de Churchill, os métodos de assassinatos mais brutais foram usados para esmagar uma insurgência popular e sustentar no poder um regime racista de colonos brancos. Ali insiste que Churchill assuma a responsabilidade.
Mas o livro tem suas fraquezas. Pode-se argumentar que, embora Ali seja notável em seu relato de Churchill e o Império Britânico, ele não é tão bem-sucedido em seu relato de Churchill e a luta da classe trabalhadora na Grã-Bretanha. Ele aborda muito bem o Partido Trabalhista, mas não tão bem, por exemplo, sobre eventos como a “Grande Agitação Trabalhista” antes da Primeira Guerra Mundial.
Uma outra crítica é que, embora ele certamente tenha a medida do fascismo e dos nazistas, Ali não tem o suficiente a dizer sobre a União Soviética, aliada da Grã-Bretanha na Segunda Guerra Mundial. A maneira como o regime de Stalin conduziu o esforço de guerra russo, faz com que os generais britânicos da Primeira Guerra Mundial pareçam humanitários movidos pela preocupação com a vida e o bem-estar de suas tropas.
Os generais russos não mostraram preocupação com a vida de suas tropas, até mesmo limpando campos minados fazendo com que seus soldados avançassem sobre eles. A rendição foi considerada um crime por Josef Stalin, e se acreditassem que um soldado havia se rendido, sua família seria punida.
Acreditava-se erroneamente que soldados até o posto de general, que realmente morreram em combate, tinham se rendido, e seus pais, irmãos, irmãs e esposas foram presos e enviados para campos de trabalho forçado, com seus filhos colocados em orfanatos estatais. Além disso, dezenas de milhares de soldados russos foram executados durante a guerra por “covardia” como desobedecer ordens. O regime de Stalin foi uma ditadura brutal que continuou a oprimir o povo russo ao longo dos anos de guerra e além. Isso também merece ser imortalizado.
Vamos terminar, porém, com uma das passagens mais poderosas de Ali: ele insiste na enormidade do Massacre de Nanjing, realizado pelo exército japonês, entre dezembro de 1937 e janeiro de 1938. Como ele argumenta, “este foi um dos piores crimes da Segunda Guerra Mundial”, embora por muitos anos, em relatos históricos focados na Europa, fosse tratado como nada mais do que uma nota de rodapé.
Isso não é mais sustentável, e nunca deveria ter sido, assim como a percepção amplamente aceita de Winston Churchill ser um herói digno. Sobre este assunto e muitos outros, Tariq Ali acerta as contas com seu novo livro.
Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2023/01/o-espirito-elitista-de-churchill/
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