O ex Gasômetro, o populismo, a demagogia e o autoritarismo de um prefeito performático

Marcelo Chalreo - militante da Célula de Direitos Humanos do Rio de Janeiro

Sabido e consabido que o prefeito Eduardo Paes não é dado exatamente à democracia. Melhor dizendo, sua interpretação ( e prática ) desse modo  de governar e gerir a coisa pública se volta a poucos, isto é, ao círculo restrito de interesses ao qual atende e que dita os rumos das suas administrações. As intervenções urbanísticas que tem promovido ao longo dos seus mandatos à frente da prefeitura, inclusive o atual, são desprovidas de consulta popular, de efetiva participação social, de debates e escuta prévia, informada e elucidativa junto ao povo carioca. Muito menos se socorre da oitiva de órgãos de classe e profissionais com visões outras, não necessariamente opositoras, mas possivelmente críticas e com diversidades de olhares.

Na memória de alguns ainda estão as desastrosas e trágicas intervenções para a Copa do Mundo ( 2014 ) e Olimpíadas ( 2016 ) e Copa do Mundo , que resultaram em milhares de famílias removidas à fórceps de áreas e regiões onde residiam em alguns casos há muitas dezenas de anos, como, por exemplo, na Vila Autódromo e na região do assim chamado Porto Maravilha (sic !  - https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/20/politica/1434753946_363539.html e https://ludopedio.org.br/arquibancada/100-remocoes-no-rio-olimpico-o-que-descobrimos/) em um dos maiores processos de desterritorialização urbana que se tem notícia no Brasil nas últimas décadas. O vocábulo gentrificação (https://www.tudogeo.com.br/2021/05/13/porto-maravilha-a-gentrificacao-na-zona-portuaria-do-rio-de-janeiro/#:~:text=No%20Brasil%2C%20o%20exemplo%20mais,da%20regi%C3%A3o%20'Porto%20Maravilha), até então pouco conhecido de ao menos boa parte do público, passou a fazer parte de intervenções escritas, orais, privadas e públicas, tendo em vista o seu significado excludente, elitista e também por seu caráter racista.

Em seu livro “Guerra dos Lugares”, a urbanista e professora Raquel Rolnik trata desse e de outros fenômenos e de como gestores públicos se valeram – e se valem – de um vasto instrumental político e administrativo para pôr em marcha processos que ao fim e ao cabo beneficiam o capital (empresas de construção civil, mercado imobiliário, parcelas outras da burguesia etc) em detrimento das camadas empobrecidas da população que ocupam de modo precário o tecido urbano.

Nesse mesmo alinhamento, empresas e corporações privadas se apropriam, com a necessária intervenção da administração pública, de espaços urbanos diversos para seus negócios e interesses (a sucessiva privatização, demagogicamente transmudada para concessão, de espaços públicos nas grandes e médias cidades brasileiras são exemplos muitos que não cabem nesse texto), o que só faz reforçar o cabedal privatista das cidades em óbvio detrimento do direito da maioria excluída.

A iniciativa do atual alcaide da cidade do Rio de Janeiro em desapropriar a área onde então existente o gasômetro (complexo de armazenamento de gás então existente no bairro de São Cristóvão) para entregá-la ao Clube de Regatas Flamengo para a construção de um estádio de futebol e outras serventias, é exemplo gritante do completo desvirtuamento de atenção ao público (povo, em termos mais diretos) para benefício de uma organização privada, o que é o aquele e também o são os demais clubes de futebol brasileiro. Com todo o respeito que nos merece o tradicional Clube de Regatas Flamengo e seus milhões de torcedores, e não há nessa escrita nenhum preconceito ou ranço, se trata de uma absurda  investida antissocial e contrária aos melhores balizamentos do interesse público.

Como escreve o professor Carlos Vainer (UFRJ) em mensagem que me chegou pelo aplicativo WhatsApp: “É mais um passo do Prefeito, e da coalizão que o apoia, para privatizar a cidade. .... Além dos aspectos legais claramente expostos por Sonia Rabelo, há que levar ao debate público os nefastos impactos urbanísticos. Caso concretizado o projeto, teremos mais um grande estádio de futebol na cidade, o quarto, que virá somar-se ao Maracanã, Nilton Santos e São Januário. Este novo estádio será implantado a apenas 4 quilômetros do Maracanã, uma verdadeira insanidade em termos de distribuição de equipamentos públicos no espaço urbano. Tal proximidade implicará, de fato, na inviabilidade de eventos simultâneos nos dois espaços, em virtude de problemas de circulação. Ademais, quando pensamos no uso efetivo de um estádio, nos damos conta de que estaremos reservando 90.000 m2 no coração da cidade para serem usados, no máximo, 8 horas por semana (na hipótese, pouco provável, de haver dois jogos ou eventos por semana). A isso o Prefeito chama de "revitalização" do centro da cidade. Outros usos, como residências, serviços vários, parques e jardins ofereceriam um uso muito mais intenso e coletivo desta enorme gleba no centro da cidade. Ademais, pela dimensão pretendida, teremos uma verdadeira barreira edificada, implantada no coração da cidade, com dramáticos impactos na mobilidade urbana... a menos que novos e custosos investimentos sejam feitos para reconfigurar a rede viária na região.”

No texto do professor Vainer, há menção explícita a artigo da professora e Sônia Rabello (UERJ, ex procuradora geral do município do Rio de Janeiro), que à falta de espaço não há transcrição íntegra, mas que poderá ser visitado e lido, o que recomendo firmemente, em https://diariodorio.com/flamengo-e-prefeito-do-rio-o-desafio-de-uma-desapropriacao-improvavel/. São acuradas as observações da eminente jurista sobre as muito prováveis ilegalidades e inconstitucionalidades contidas no ato expropriatório, o que meus modestos conhecimentos de Direito Administrativo corroboram a apontar evidente desvio de finalidade, merecendo ser destacada a absurda (e ilegal) apropriação de fundo público (o terreno em questão é ativo da Caixa Econômica Federal), o simulacro de licitação, através da distorção do instituto da hasta pública e a completa (e mais uma vez ilegal) inexistência de “um plano urbanístico público explicito, transparente e aprovado, seja ele de uso (utilidade) pública, seja de interesse social” que sustente legal e legitimamente, sob pena de ilicitude, a ação do chefe do executivo do municipal.

O dinheiro público que deveria ser destinado à regularização fundiária de nossas favelas e ocupações inúmeras, ao saneamento básico, à construção de moradias populares (praticamente zeradas na gestão Eduardo Paes, pois Minha Casa Minha Vida é programa federal), à saúde pública e à educação pública, a creches e outros essenciais equipamentos do sofrido povo do Rio de Janeiro deve, sob a ótica do privatista Eduardo Paes, ser destinado ao privado, pois, como diz Sônia Rabello, é isso, sem meias palavras, que é (como também são os demais), o Clube de Regatas Flamengo.

No afã de se (re)eleger a qualquer custo e de abrir caminho para sua (mais que lançada) candidatura ao governo do estado, o prefeito do Rio não teme afrontar normas legais  e constitucionais, cooptar corações e mentes apropriando-se do sentimento social existente quanto a um dos mais populares clubes de futebol do país, ainda que para isso passe a boiada quanto à privatização da cidade que sob sua ótica deve continuar de fato servindo a poucos, ainda que o marketing da prefeitura venda o contrário, e, fundamentalmente, aos interesses do grande capital nacional e transnacional.

Esse escândalo administrativo e antissocial deve ser evitado a todo custo. A cidade não está à venda, senhor prefeito, o senhor não foi eleito para ser o corretor da Cidade Maravilhosa !!!

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