O Maio Vermelho para as Adelinas, Laudelinas, Luizas, Mauricéas, Mirtes, Marias Carolinas…*

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Por: O Poder Popular ·

Mulheres negras trabalhadoras que maternam, estudam, sustentam, militam e amam apesar do cansaço e sobrecarga

Por Camille Gomes e Gerlane Simões
Militantes do CNMO-PE e do PCB Pernambuco

* O Maio Vermelho faz referência ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) que há mais de um século se associa a todos(as) os(as) trabalhadores(as) do mundo neste mês de Maio, um mês de luta que nos remete às batalhas da classe trabalhadora mundial contra a exploração do trabalho pelo capital ao longo da História. É necessário fazermos neste mês dias de enfrentamento contra a barbárie capitalista, para atuarmos com firmeza no quadro em que nos situamos hoje no Brasil. As mulheres citadas no título são referências de militância pela garantia de Direitos de mulheres negras; também são mencionadas referências pessoais das autoras do texto.

Ser mulher negra. Ser mulher negra e mãe. Ser mãe, negra que trabalha; Ser mãe solo, negra, que trabalha e que milita. Mulher negra que ama, que cuida e quer ser cuidada. Trabalhar, estudar, maternar estando em uma militância, ocupando espaços que não compreendem as complexidades destes marcadores sociais. O tempo, o dinheiro, a disposição, a saúde física, mental. Múltiplos fatores interseccionados que definem a condição de mulheres que cuidam de seus filhos, de seus maridos, de seus netos, dos idosos da família, que olham o filho da vizinha, que cozinham, que botam comida na mesa, que ajudam a “cria” a realizar a tarefa de casa, que durante a pandemia ensinou seus filhos a ler, escrever. Que pagam o aluguel, fazem a feira e bancam a mensalidade escolar dos filhos e netos, que tem a própria saúde negligenciada, abrindo mão do seu tempo para cuidar da saúde dos seus. Que sustentam financeiramente toda a casa, cuidam da logística da família dentro de um sistema perverso patriarcal e imperialista que as silenciam.

Ao mesmo tempo, essas mulheres desafiam o tempo e o sistema dentro e fora de casa. Algumas estão por trás dos balcões, nas cozinhas, no comércio local, são trabalhadoras do SUS, do SUAS, da Educação, estão à frente de projetos sociais, protagonizam papéis importantes em coletivos, atuam politicamente fazendo trabalho de base. Outras estudam, conquistam diplomas, produzem trabalhos artísticos, esticam seu tempo pra sobreviver, muitas vezes em serviços sem direitos trabalhistas, com salários defasados, precisando se dividir entre 2 ou 3 trabalhos para garantir condições básicas aos seus filhos e para sustentar a casa.

Um esforço incansável de mulheres negras; o esforço de nossas mães e avós está diretamente ligado à exploração extrema proveniente do sistema colonialista e capitalista, sobretudo nas favelas. Esse sistema, que prioriza o lucro em detrimento do bem-estar humano, muitas vezes obriga indivíduos a trabalharem em condições desfavoráveis, com remunerações baixas e poucos ou nenhum benefício trabalhista; a exemplo disso temos o sistema dos  microempreendedores individuais os “MEI”, evidenciando a uberização do trabalho que deveria ser formalizado e com todas as garantias de direitos. As diversas tarefas que as mulheres desempenham, equilibrando emprego, afazeres domésticos e cuidados familiares, representam uma tentativa de assegurar o sustento e a qualidade de vida de suas famílias em uma sociedade que as exclui e restringe suas oportunidades.

A exploração intensa do trabalho, especialmente em áreas periféricas, é impulsionada pelo capitalismo que almeja maximizar lucros às custas da dignidade e dos direitos humanos. Esse cenário gera um ciclo de desigualdade e injustiça, obrigando as trabalhadoras a sujeitar-se a condições de exploração para sobreviver. De acordo com a pesquisa da DIEESE (2024), os negros são maioria entre os que têm inserção informal: representam 41,0% das trabalhadoras e 43,2% dos trabalhadores ocupados em situação de informalidade. Entre os não negros, a proporção de mulheres nessa situação é de 30,8% e a de homens, de 32,5%, no 4º trimestre de 2023.

Isto posto, somos impulsionados a questionar: quem cuida dessas mulheres? Quando suas mães, maridos e filhos adoecem, quem segura as pontas? Quando elas adoecem, quem se lança como rede de apoio?

Podemos usar mais dados estatísticos para melhor ilustrar as indagações supracitadas. Segundo a pesquisa conduzida no Hospital Universitário de Brasília em 2015 sobre perfil sociodemográfico de acompanhantes em unidades de internação para adultos e crianças, foi identificado que os dados predominantes eram referentes majoritariamente ao sexo feminino na condição de acompanhantes dos pacientes ali internados.

Porém, uma condição relevante se deu pelo fato de que na pediatria, o maior percentual das   mulheres   foi   representado pela própria mãe das crianças ali hospitalizadas, e na área de adultos houve maior  subdivisão,  distribuindo-se  entre outros papéis familiares –  mães, sogras, avós, noras, filhas, esposas,  eentre  outros.  Nessa pesquisa, a  categoria  “outros” foi organizada com composição proveniente da rede social de apoio  da  pessoa  hospitalizada,  além  da figura da cuidadora remunerada.

A constatação de que as mulheres representam o maior percentual dos acompanhantes comprova que o padrão e os papéis da sociedade não se modificaram no decorrer  dos  últimos anos. A  mulher expandiu  sua  participação  no  contexto social,  assumiu  atividades  fora  do  lar como trabalhadora, acumulando dentro da casa a responsabilidade pelas atividades domésticas,  e  passou  a  ocupar  o  cargo matrifocal, de chefe da família em muitas situações, porém,  não houve alteração em   suas   atribuições sociais.

Os   resultados   deste   estudo denotam  uma  questão  ainda presente de forma bastante frequente na sociedade:  o  fato  de  que  no  cenário  em que   se   insere   o   núcleo   familiar,   a responsabilidade sobre o cuidado de si e dos   outros   está,   ainda,   centrado   na figura da mulher.

A situação se agrava quando falamos da mulher negra. Exemplo disso são os dados de Andreia de Jesus (2022) sobre mães solo. Mais de 11,5 milhões de mulheres no Brasil estão nessa condição; 63% estão abaixo da linha da pobreza; 61% são negras. Claro que as situações e causas desses números variam e, principalmente, giram em torno da irresponsabilidade desses pais ausentes e do quanto nossa sociedade ainda é tolerante com eles.

Mas é impossível não associar essa realidade ao passado colonial, em que as mulheres escravizadas eram estupradas por homens brancos, criando sozinhas os filhos resultados dessa violência. A miscigenação no Brasil é fruto desse processo repleto de crueldade, solidão, abandono e dor.

E, infelizmente, essa lógica se reproduz através de homens que não assumem relacionamento com mulheres negras nem reconhecem seus filhos. A tão falada solidão da mulher preta, que, antes mesmo da expressão ser cunhada, já era sentida na pele em várias dimensões da vida. Mulheres negras sempre ocupando o lugar de cuidadora, inclusive do filho de outros, porém sem ser cuidada por alguém. Mirtes Renata, mãe do Menino Miguel, genocidado, enquanto sua mãe trabalhava como doméstica. Mirtes é uma das provas mais atuais da Colonização vigente no Brasil, é a estruturação atual de Casa Grande e Senzala. A criança morreu ao cair do 9º andar de um edifício de luxo no Recife, após a mãe descer para passear com o cachorro da família e deixar o menino aos cuidados da patroa, Sari Gaspar Corte Real. O trabalho doméstico nos moldes brasileiros é uma forma moderna da escravidão.

Para além de todos esses conflitos raciais, é importante destacar a conquista de direitos para todas as trabalhadoras e trabalhadores domésticos, especialmente através da história de uma mulher negra: Laudelina Campos de Melo. Idealizadora do sindicato das domésticas de Campinas, em 1936, o primeiro do Brasil, ela teve uma trajetória que combinou, de forma singular, a luta pela valorização do emprego doméstico, feminismo e ativismo pela igualdade racial. Laudelina defendia a formação contínua para as trabalhadoras domésticas, no sentido de trazer consciência de classe e raça, e fortalecimento na luta contra a exploração do capital. Denunciava em todas as suas atividades e falas as múltiplas jornadas de trabalho que sobrecaem nos corpos das mulheres e, maioritariamente, nas mulheres negras.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílio (Pnad) de dezembro de 2023, o país tem 6,08 milhões de empregados domésticos (são todos os que prestam serviços em residências como doméstica, jardineiro, motorista, mordomo). Destes, 5.539 milhões são mulheres (91,1%), e homens são apenas 540 mil (8,9%). Os dados da Pnad mostram ainda que a grande maioria são mulheres negras, com média de idade de 49 anos e apenas 1/3 têm carteira assinada, recebendo em média um salário-mínimo.

Em 2023 completaram-se dez anos da PEC das Domésticas. O próprio governo federal afirma que o perfil das trabalhadoras domésticas expõe vulnerabilidade social da categoria à violações de direitos humanos. A situação vai se agravando com os dados que apontam que 92% das pessoas que trabalham em ambiente doméstico são mulheres e 65% são mulheres negras, em sua maioria na informalidade – base de dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Parte delas acabam submetidas ao trabalho análogo à escravidão, afirmando o que trouxemos acima sobre a atualidade de Casa grande e senzala – Gilberto Freyre. Enquanto não houver a superação do capitalismo pelo socialismo, nossos corpos continuarão explorados e escravizados; é preciso liderarmos a luta pela garantia dos direitos trabalhistas conquistados pelas trabalhadoras e trabalhadores, assim como por medidas públicas que assegurem a socialização dessas atividades, como creches, lavanderias e restaurantes públicos para o acesso da classe trabalhadora.

Mulheres negras fortes, estressadas, esgotadas, cansadas, sobrecarregadas. Mulheres fortes, resistentes, que lutam pela própria sobrevivência e pelo bem viver dos seus. Exposição a quadros de ansiedade, depressão, psicossomatizações. A falta de acesso à saúde mental, a solidão e os múltiplos cuidados pelos quais são hiper-responsivas as colocam na rota da dor, chances de interferir em sua capacidade de atuação no trabalho, na escola e em casa. As negras estão mais propensas a desenvolver tristeza, desesperança e desvalorização.

Mulheres negras chegam ao limite da exaustão antes de encontrar ajuda. Quando estão sobrecarregadas, elas demoram muito mais tempo para buscar apoio, e levam sua saúde física e mental até o limite do esgotamento. Por que isso acontece? As mulheres estão esgotadas – e as dificuldades financeiras são a principal fonte de estresse mental. Foi o que concluiu o Laboratório Think Olga desse ano, que abordou a saúde mental das brasileiras no pós-pandemia.

A falta de dinheiro, as dívidas, a baixa remuneração e a sobrecarga no trabalho tem adoecido uma parcela assustadora da população feminina, e as mulheres negras sofrem ainda mais: 54% delas estão insatisfeitas ou extremamente insatisfeitas com a própria situação financeira, contra 39% das mulheres brancas.

As estratégias de uma comunidade feminina, de apoio comunitário, trazido na diáspora, é uma forma de perpetuar a ancestralidade negra de mulheres que se reconhecem e se ajudam. É uma ferramenta de bem viver e enfrentamento político. A coletividade popular e o acolhimento entre mulheres negras é um símbolo de resistência.

Aquilombar nas comunidades, nos coletivos, nos partidos políticos, nas universidades é um exercício valioso para a saúde mental, de quem se doa e de quem recebe dessas redes de afeto e assistência. Quanto aos que estão na militância ombro a ombro conosco, viabilizar acessos, reconhecer e acolher as nossas dores é um ato revolucionário de amor, cuidado, de preservação das nossas multipotências que fortalecem nossa condição  feminina e negra.


Fontes:

Melo MC, Cristo R de C, Guilhem D. Perfil sociodemográfico de acompanhantes de pacientes e suas concepções sobre atenção recebida. Rev. G&S [Internet]. 1º de junho de 2015 [citado 27º de maio de 2024];6(2):Pag. 1550-1564. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rgs/article/view/2965

https://www.otempo.com.br/opiniao/andreia-de-jesus/da-solidao-da-mulher-negra-a-mae-solo-1.2664604

https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2024/Marco/emprego-domestico-no-brasil-e-formado-por-mulheres

https://drive.google.com/file/d/0Bw573moUqIGeS005ZUxkLXRPUVE/view?resourcekey=0-gCKUFlzhYArWJeNeCcqe_g


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