
Thales Emmanuel, militante da Organização Popular - OPA
Quando criança, ela olhava com admiração e entusiasmo o avião que fazia chover gotas coloridas de arco-íris sobre sua casa, numa comunidade de camponeses sem terra no sertão cearense. Hoje, adulta, discursa com orgulho para outros trabalhadores sobre os males provocados pelos agrotóxicos, em especial aqueles lançados do alto, por aviões ou drones.
Ela estava na luta no momento em que aproximadamente cinquenta capangas encapuzados e armados invadiram a comunidade Gregório Bezerra, em Jaguaruana-CE. Eram 2:30 da madrugada. Todos dormiam.
Em meio a xingamentos e ameaças, ela escutou quando um companheiro, percebendo entre os capangas três ou quatro jagunços profissionais, matadores de gente, mas tendo os demais todas as características de seguranças de festa, começou a falar:
“Dá pra ver que vocês são trabalhadores, filhos de trabalhadores. Devem morar na capital, nas periferias de Fortaleza.”
“Sim, somos de lá! E daí?”, retrucou raivosamente um encapuzado.
“Nós também somos trabalhadores. Estamos lutando pela terra, para não precisarmos ir para as cidades, como seus avós foram no passado. Tenho certeza que suas famílias vieram do interior para a capital. Se perguntem de onde são, de onde vieram suas famílias!”
“Cale a boca! Vocês não passam de uns vagabundos que invadem o que é dos out..”
“Deixe ele falar! Deixe ele terminar de falar!”, os jovens recrutados para o trabalho sujo de jagunço entram em divergência.
“Nós temos direito a essa terra! Mas a lei não é cumprida quando é para favorecer os pobres. Vocês talvez não saibam, mas são vocês que estão cometendo um crime. Seu patrão entende muito bem disso e, se der errado, ele se livra e o B.O. cai pra cima de quem? De vocês, é claro! Prestem atenção: seus avós foram expulsos no passado pelos mesmos empresários e fazendeiros que agora pagam vocês para nos expulsar! Os ricos nos usam, jogam a gente uns contra os outros para poderem nos dominar. Vocês precisam do dinheiro deles para sobreviver porque os avós deles expulsaram seus avós lá atrás.”
O tempo passou lentamente, até o dia raiar e a intensidade do conflito se dirimir na medida do possível. A falta de preparação dos seguranças de festa seria a justificativa perfeita para “isentar” o fazendeiro das mortes que, por puro milagre, não aconteceram. Com a situação relativamente estabilizada, os jagunços profissionais sumiram de cena sem deixar rastros.
A fazenda ocupada pelos trabalhadores era a mesma que pulverizava agrotóxico de avião na cabeça das pessoas antigamente. Entre as mulheres trabalhadoras que resistiram à invasão jagunça, muitas corriam atrás da aeronave fazedora da chuva mal cheirosa quando crianças.
Latifúndio não se separa de veneno, que não se separa de violência. O que chamamos de agronegócio se constitui à base da junção de cinco elementos principais: a grande propriedade da terra, a mídia, os bancos, o Estado e a indústria capitalista; esta última, a que produz os agroquímicos e suas aeronaves de lançamento.
O Estado, financiado pelos cofres públicos, isenta essas empresas de impostos, constrói e cede infraestruturas para sua instalação e bom funcionamento (terras, canais, portos, estradas, trabalhadores etc), reembolsa bancos quando o latifúndio não paga suas contas, reprime comunidades ou faz vista grossa quando a repressão parte de um ente privado. O Estado cria leis que favorecem e ampliam o consumo das mercadorias despejadas pela indústria capitalista, ainda que estas adoeçam e matem a população, como a lei que autoriza a pulverização aérea por drones no Ceará ou ainda a “mãe das boiadas”, em tramitação no Congresso Nacional, que elimina a necessidade de licenças ambientais para os projetos capitalistas.
A besta demoníaca de cinco cabeças existe. Ela devora pessoas cotidianamente. O sangue que circula em suas veias não é dela. Pertence aos povos nativos, às senzalas e quilombos, ele é sugado sem anestesia das favelas, da juventude, dos trabalhadores assassinados por protestarem contra suas maldades, é o sangue das mães que amamentam seus bebês com o peito carregado de agrotóxicos, dos mortos por câncer, dos suicidados pela depressão, do filho que nasce doente e perdura pela vida inteira com sequelas.
Cada terra retomada, cada lei maldita derrubada pela pressão popular faz tremer o monstro, que não cai e, via de regra, ressurge mais poderoso a cada baque. Ainda que não o derrotem de imediato e por completo, essas ações nos servem de aprendizado e preparação. As batalhas nos ensinam a afiar a lança, cujo tiro mortal deverá ser desferido sem piedade no meio do peito da criatura.
O líquido que circula na besta é o sangue de uma larguíssima parcela da humanidade que precisa decidir o que fará de si mesma, se sucumbe conformada ou se luta para vencer.
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