O que significam as eleições nos Estados Unidos?

Por Vinícius Souza Pinto, geógrafo e militante do PCB e da UJC Juiz de Fora - MG, e Olavo Souza, estudante de jornalismo e militante da UJC Juiz de Fora - MG

Independente do vencedor, muitas perguntas se abrem: até quando os EUA vão deixar a China se entranhar na América Latina sem uma escalada ainda maior da violência? O que, dentro desse conflito, diz respeito à classe trabalhadora latino-americana e como a mudança na cadeira presidencial determina essa relação? Quais “bandeiras” da burguesia americana avançarão e como avançarão? Veremos mais armas americanas matando nossos jovens negros, mais espiões da embaixada americana atacando nossas estatais e mais subserviência do Exército Brasileiro a seus interesses?


A disputa entre Kamala Harris e Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA causam diferentes reações, mas devemos lembrar que aqueles que lutam por uma outra sociedade não podem se deixar enganar com as aparências dos fenômenos, tampouco podem ignorar tais aparências. Além disso, também não nos é permitido acreditar que aquilo que nos prende às aparências não importa. Vamos por partes.

Superficialmente pode parecer que a disputa é entre um “fascista autoritário” (Trump) e uma “democrata multiculturalista” (Harris). Ouvimos Trump e é fácil identificar o seu caráter reacionário. Por outro lado, é apresentada alguma espécie de “moderação” no discurso de Harris.

No entanto, tal aparência é construída cuidadosamente pelo Estado norte-americano, por sua política cultural e sua mídia, e não resiste ao enfrentamento com os fatos. Por mais que na aparência a disputa possa parecer entre um conservadorismo versus um progressismo, a verdade é que ambos representam a manutenção do sistema capitalista, a continuidade da política imperialista, e para nós, principalmente, a submissão da América Latina. Há quem ache até que Kamala Harris é de esquerda, uma “confusão ideológica” que muitos cometem, inclusive a intelectual abolicionista penal Angela Davis, que apoia Kamala. Mas é ela, a candidata democrata, quem discursa em prol do encarceramento em massa da população negra, que continuará com as políticas de violência estatal contra imigrantes e que, assim como seu partido, fortalece os crimes sionistas.

Falar da relação entre América Latina e os EUA nos obriga a levar em conta uma marca da nossa relação com o país nos marcos do capital monopolista: a Doutrina Monroe [1]. O princípio de "América para os americanos" sempre significou, para o gigante do norte, "América para os estadunidenses", e serviu para consolidar a primazia dos interesses dos Estados Unidos em todo o continente. Kamala e Trump, é sabido, representam o imperialismo estadunidense e a operação desta doutrina que coloca tudo ao sul como seu "quintal” [2].

Mas será só isso que os comunistas têm a observar e a dizer sobre a questão? Se é certo que ambos os candidatos não nos interessa, devemos fechar os olhos aos pormenores e particularidades da conjuntura? Pensemos sobre alguns elementos.

No contexto da explosão da exportação de commodities, dos governos progressistas latino-americanos e da expansão do capital chinês, demonstrou-se uma aproximação clara de Pequim na política econômica no centro e no sul do continente americano. Durante os governos de Evo Morales, com a alta expansão das exportações de lítio, por exemplo, ou a exportação do gado brasileiro, todas essas dinâmicas econômicas tiveram, claramente, um papel fundamental na inserção de um poder que se opõe, de alguma forma, ao poder americano dentro do continente. É neste contexto que devemos voltar à questão das aparências: elas enganam, mas revelam tendências importantes no que diz respeito à postura dos EUA no cenário internacional.

A história da relação dos EUA com a América Latina se caracteriza por uma combinação de uso da força e uso de acordos com as burguesias locais para impor seu domínio, independentemente se o governo for democrata ou republicano.

No entanto, à medida que o crescimento Chinês passou a ameaçar evidentemente o predomínio do imperialismo ianque, o que toma conta é o aspecto cada vez mais explicitamente unilateral na postura dos EUA [3], e Trump é a maior figura disso.

Se os governos democratas por acaso já representaram uma espécie de dominação mais “multipolar” (nos marcos da tutela estadunidense do mundo) estes, na verdade, têm sido cada vez mais unilaterais. Chama a atenção as continuidades entre os governos Trump e Biden [4].

O que mais se destaca é o recurso à coerção: se o histórico de intervenções estadunidenses na América Latina já não encontra equivalentes, o que se pode esperar de qualquer governo dos EUA é a intensificação do seu poder militar e do uso da força [5]. As ações golpistas na última década são provas disso (Brasil, Venezuela, Bolívia e etc.).

No entanto, se a interferência direta dos EUA já foi suficiente para assegurar sua dominação do lado de cá do muro [6], hoje a situação é outra: as estratégias tanto dos democratas como dos republicanos têm sido insuficientes para impedir o avanço da China e de seus acordos com os países latinoamericanos, e, assim, retomar o protagonismo norte-americano [7]. Sinal disso é a aproximação venezuelana aos BRICs, ou o avanço na América Latina da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), de construção de infraestrutura e desenvolvimento a partir de investimento chinês.

Daí que não podemos simplesmente recusar-nos à atenção dos dilemas do governo estadunidense. Se é possível identificar as linhas de força que estarão presentes independente de quem ocupa a cadeira presidencial [8], ao mesmo tempo, não é uma questão menor a forma específicas como as ações do império se darão. Não são questões menores as diferenças entre Harris e Trump.

Um governo Kamala continuará sentenciando a América Latina como quintal e financiando golpes e guerras imperialistas ao redor do mundo, mas com postura mais “politicamente correta” (e mais cínica), e isso se dá com contradições e mediações diferentes de um governo Trump.

Um governo Trump continuará sentenciando a América Latina como quintal e financiando golpes e guerras imperialistas ao redor do mundo, mas com um discurso mais abertamente bélico e unilateral, e isso se dá com contradições e mediações diferentes de um governo Kamala. Ressalta-se, por exemplo, que a vitória de Trump agitaria as bases fascistas e de extrema-direita no mundo todo, mas também que boa parte das lideranças mundiais latino-americanas hoje, com exceção de Milei na Argentina e Bukele em El Salvador, são mais resistentes à conduta do bilionário charlatão.

Independente do vencedor, muitas perguntas se abrem: até quando os EUA vão deixar a China se entranhar na América Latina sem uma escalada ainda maior da violência? O que, dentro desse conflito, diz respeito à classe trabalhadora latino-americana e como a mudança na cadeira presidencial determina essa relação? Quais “bandeiras” da burguesia americana avançarão e como avançarão? Veremos mais armas americanas [9] matando nossos jovens negros, mais espiões da embaixada americana atacando nossas estatais e mais subserviência do Exército Brasileiro a seus interesses?

Além disso, sobre todas as confusões ideológicas que rodeiam os debates acerca da eleição nos EUA, não basta dizermos que são só ideias falsas. Os comunistas devem buscar entender os porquês dos trabalhadores se iludirem (lá e aqui) com a apresentação de marionetes que são as eleições burguesas, assim como suas decorrências. Devem entender os porquês e os resultados das ilusões de parte da esquerda brasileira com o “progressismo democrata” (“Axé, Kamala”?).

Ao mesmo tempo, é necessário que as lutas da classe trabalhadora no centro do capitalismo sejam estudadas, para entendermos seu papel e para que nos inspire [10]. A desafiadora candidatura independente do Party for Socialism and Liberty (PSL) nestas eleições; ou o movimento sindical dos trabalhadores dos portos americanos através da federação sindical ILA que, ao ameaçarem a deflagração de uma greve em 2024, obrigaram os patrões a pedir socorro à Biden nominalmente. Citamos também o Raise Up For the South, movimento sindical independente dos trabalhadores do sul dos EUA; o movimento de resistência palestina que todo dia nos ensina que não devemos deixar os perpetuadores do genocídio no Oriente Médio esquecerem, nem um dia sequer, que eles são assassinos; e até os movimentos de massas como Black Lives Matter (BLM) e o Occupy Wall Street.

Por fim, se não conseguimos responder a pergunta que dá título à matéria, esperamos ter conseguido deixar claro a importância da pergunta. Afinal, não é porque nenhuma das duas opções não carregam nem sequer uma migalha de interesse da classe trabalhadora, nem porque ambas significam a continuidade da mão de ferro estadunidense na política internacional, que isso significa que devemos ver com desdém a política estadunidense. Aqueles que lutam pelo poder popular e pelo socialismo devem conhecer como ninguém as tendências profundas da nossa sociedade se quiserem transformá-la. Não é uma questão menor para o futuro da classe trabalhadora brasileira o papel destinado à América Latina no acirramento da disputa EUA-China, a forma que nosso país se insere nas cadeias globais de produção, os dilemas geopolíticos, dentre outras questões que são suscitadas.

Parafraseando um camarada, a  "luta contra o fascismo, quer dizer, contra o capitalismo, exige de nós tanto a identificação precisa e correta de nosso inimigo, quanto que não nos deixemos pautar por falsas, inócuas e problemáticas polarizações. A burguesia sempre será nossa inimiga, não importa se jovem ou velha, se mentindo ou se falando a verdade."

Notas:
[1] A Doutrina Monroe é o princípio da primazia estadunidense no continente e surge inicialmente com o presidente James Monroe (1823) contra a intervenção espanhola na América. Serviu para afastar a influência de qualquer outra potência e para impedir a soberania dos países americanos.

[2] Onde uma pouca distância já nos mostra um profundo contraste: Enquanto Cuba comprova que o uso intenso de seus modestos recursos na prioridade para elaboração de tecnologias para a vida traz como resultado a primeira vacina contra o câncer de pulmão, os dois guerreiros que medem força na campanha eleitoral dos EUA, gritam para aterrorizar o mundo anunciando continuidade no apoio a Israel e também na continuidade de um unilateralismo neoliberal que investe preferencialmente na indústria bélica, por isso o apoio à guerra da Otan contra a Rússia, e na abertura de nova frente de guerra contra a China. (Beto Almeida, 2024)

[3] Se, por exemplo, o governo Obama (2009-2016) tinha na intervenção econômica multilateral (TPP - Parceria Transpacífica) a sua tática para conter a China (destacadamente no sul e no leste asiático), o governo Trump (2017-2020) foi definitivamente mais beligerante. A Estratégia de Segurança Nacional de Trump (2017) era clara: A China e a Rússia desafiam o poder, a influência e os interesses americanos, tentando corroer a segurança e a prosperidade americanas. Eles estão determinados a tornar as economias menos livres e menos justas, a aumentar suas forças armadas e a controlar informações e dados para reprimir suas sociedades e expandir sua influência.

[4] O governo Joe Biden (2021-2024) segue o de Trump no protecionismo e no militarismo, por exemplo. Pensemos na restrição dos semicondutores à China e no acordo de segurança Japão-Coreia do Sul-EUA (JAKUS), uma espécie de OTAN asiática.

[5] A guerra às drogas tem sido um meio relevante disso. Incluindo o massacre da juventude negra no Brasil a guerra às drogas é um instrumento mascarado de sujeição latino-americana. A atuação do DEA (Agência Antidrogas dos EUA) em países como Bolívia, Colômbia, México e Peru marca uma intervenção disfarçada de combate ao “narcotráfico”.

[6] Referência ao muro anti-imigrantes pobres na fronteira EUA-México. O muro hoje conta com milhares de KM construídos e foi tema relevante nas últimas eleições. O professor mexicano Fernando Buen Abad Dominguez explica: Esse Muro é um ato de provocação inaceitável e desumano. Contém a ameaça de matar e reprimir milhares de pessoas. É um Muro pensado para acentuar a injustiça de que padecem os imigrantes tratados como «ilegais» e é um horror contra todas essas pessoas que, para sobreviver, procuram qualquer espécie de «emprego». A fronteira com os EUA é não só fonte permanente de abusos, exploração e ignominia como o projeto para completar este Muro é uma afronta de tal calibre que temos de estar preparados para as consequências. Quem provoca o desemprego, quem gera a miséria toma agora medidas de «controle» para pôr «ordem» na fronteira. Sem deixar de tirar proveito com as remessas, claro!

[7] Tanto a reação protecionista, como a pressão diplomática, as ingerências golpistas, o discurso de New Deal, a articulação com a direita latinoamericana, nem os embargos e etc foram suficientes para reverter a situação: a classe trabalhadora continua levando o ônus da crise e as classes dominantes dos países latino-americanos continuam e intensificam seus negócios com a China. Na experiência brasileira, o governo Bolsonaro teve seu alinhamento com os EUA e o seu esforço anti-China cabalmente tragados pela exigência do lucro do grande capital local (representado principalmente pelo agronegócio).

[8] Um poeta chileno já entoou: Colocam em prática seus planos / com precisão maliciosa, / sem que nada lhes importe. / O sangue, para eles, são medalhas. / A matança é ato de heroísmo.

[9] E também vindas de Israel, para lembrar do lacaio do EUA no Oriente Médio.

[10] Positivamente ou negativamente, como lições sobre o que fazer ou até sobre o que não fazer.

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