Pelé e o racismo no Brasil

Pelé e o racismo no Brasil

Por: Redação ·

Por G. Lessa - Membro do Comitê Central do PCB

Pelé e o racismo no Brasil

por G. Lessa

No Brasil, antes de Pelé, existiram milhões de negros e negras que demonstraram seus talentos em quase todas as atividades humanas, apesar de a sociedade brasileira ser organizada para destruir as aspirações do povo negro, dos índios, dos camponeses e dos proletários. Machado de Assis e Pixinguinha já tinham fundado a literatura e a música nacionais. O status quo embranqueceu a imagem do primeiro e encarcerou o segundo em um nicho.  Em todas as áreas do conhecimento e profissões, os negros e negras já tinham contribuído decisivamente, lutando contra muralhas de preconceitos e infâmias. Mas seus méritos não eram reconhecidos pelos meios de comunicação hegemônicos, fundados no mais radical racismo, disfarçado com a ideologia da "democracia racial". Este silêncio reafirmava as teses racistas generalizadas no senso comum e nas instituições eruditas.

No Brasil, a partir das primeiras décadas do século XX, o futebol foi recriado pelo povo negro. Nos anos1950, as forças desenvolvimentistas no país lutavam por uma trajetória econômica e política de superação da dependência. A construção do Maracanã e a Copa de 1950 eram iniciativas que juntavam avanços de engenharia e performance esportiva, misturando aspirações democráticas e o mito reacionário da miscigenação pacífica. Os deuses do futebol e a astúcia da história levaram a apoteose desta fórmula para a Copa de 1958, em pleno governo JK, vencida por seleção abrilhantada por Pelé em um país nórdico, para denunciar a infâmia do racismo e a igualdade ontológica de todos os seres humanos.

Mesmo circunscrito a um nicho, o futebol, espaço no qual o racismo brasileiro tinha que aceitar a notoriedade dos negros, como já fizera na música e no carnaval, enquanto reforçava as barreiras na maior parte dos outros, a dimensão de excelência e mesmo artística do futebol de Pelé começou a criar um transbordamento de significados.  O historiador E. J. Hobsbawm disse: "Quem, olhando a seleção brasileira nos seus melhores momentos, poderia negar ao seu futebol o estatuto de arte?" E a arte emanada da criatividade e da motricidade radicalmente harmônica de Pelé comunicou sentimentos, sensações e conceitos para muito além do futebol. Gerou em massa, via satélite ou nos estádios, questionamentos intuitivos sobre os limites e as possibilidades da corporalidade humana. Como é possível um gol de bicicleta? Algum outro ser humano conseguiria não cair ao driblar com tanta velocidade? Quais seriam os limites da relação entre a mente e o corpo?

Foto: Divulgação Instagram Pelé

As respostas, também intuitivas, subjetivas ou práticas, como ocorrem sempre na cultura de massas, foram várias, cada pessoa chegou às suas, mas o sentimento de todos para com o indivíduo que permitiu esta ampliação de perspectiva foi unânime:  agradecimento e amor. O planeta inteiro ficou agradecido a Pelé. Com singularidades em cada país e continente. Os ingleses viram orgulhosos as novas possibilidades do esporte que inventaram (abordagem implícita na citada frase de Hobsbawm). Os africanos perceberam a motricidade africana na base do estilo do número 10. Cada povo teve razões próprias de identificação, unidas ao motivo básico: percepção da grandeza humana presente na performance daquele jogador brasileiro.

Todo este impacto não superou, evidentemente, o racismo no Brasil e no mundo, em qualquer área, e sequer criou consciência política no próprio Edson Arantes do Nascimento, o homem por trás do jogador, mas funcionou com crítica ao preconceito, fustigando a tese da "democracia racial",  e levou à valorização planetária exemplar de um ser humano negro, abrindo trilhas, que foram aproveitadas pelos jogadores e outros profissionais negros.

Como era reacionário empedernido, Nelson Rodrigues chamou Pelé de rei e a alcunha foi sendo repetida até hoje. Mas, de fato, Pelé foi o contrário de um monarca, foi ser humano como qualquer outro, sem sangue azul ou capacidade de curar os doentes.

Um indivíduo de carne e osso que a história escolheu para ser gênio no esporte mais democrático , inventado por operários como crítica à disciplina fabril capitalista. Pelé é produto da história do povo negro, do povo brasileiro, do povo latino-americano e da própria humanidade. Um indivíduo que potenciou a elevação da padrão da motricidade do gênero humano.

Acompanhe todas as mídias do nosso jornal: https://linktr.ee/jornalopoderpopular e contribua pelo Pix jornalopoderpopular@gmail.com

Compartilhe nas redes sociais