Por que ler: poesia

Por que ler: poesia

Por: O Poder Popular ·

Por Guilherme Martins - Educador Popular e coordenador do Cursinho Popular Comunidade FazArte. Militante do PCB em Goiás.

A “ideia” de poesia encontra-se muito difundida socialmente, num movimento que, ao mesmo tempo em que enriquece as construções poéticas ao ampliar seus formatos e alcance, também as fragiliza exatamente por ampliá-las demais, tornando seu significado muito vago e impreciso.

De forma ampla, poderíamos dizer que a poesia – assim como todas as demais expressões artísticas – exprime uma maneira de interpretação e ação sob a realidade. Como nos recorda Leandro Konder: até para descrer, é preciso crer que não se está acreditando1. Assim, toda manifestação artística carrega em si uma determinada leitura e proposta de ação sobre o mundo à nossa volta.

Às vezes o autor ou autora coloca suas concepções de forma mais direta e objetiva, o que pode levar os críticos a dizerem que esse modo de explicitação torna a obra panfletária. Às vezes os juízos aparecem de forma mais velada, menos aparente, necessitando de um afastamento por parte do leitor e, quando essa proposta de construção lírica se radicaliza, os críticos podem apontar o vício do subjetivismo. Seja sobre temas políticos e/ou sociais, seja sobre questões pessoais e/ou íntimas, o que se depreende é que a construção poética é um processo de criação que busca comunicar algo e, portanto, carrega em si a possibilidade de apresentar àqueles e àquelas que entram em contato com a obra a forma de expressão e o conteúdo da consciência desse(a) artista que a produziu.

Ao ter contato com a exposição de ideias do(a) autor(a), conseguimos não apenas nos deparar com novas reflexões sobre a realidade e, consequentemente, com novas formas de sentir seus eventos/problemáticas, como conseguimos também mediar aquilo que interpretamos e sentimos com o que interpreta e sente tal autor(a). Conseguimos ter acesso a novas considerações que eram anteriormente ignoradas ou secundarizadas, rearticulando a cartografia de compreensões, sentimentos e afetos que constituímos em nossa consciência, ampliando-a e diversificando-a, de tal modo a constituir uma compreensão da totalidade de elementos que compõem a realidade. Nesse sentido, assim como todas as demais expressões artísticas, a poesia é uma forma de conhecimento sobre o mundo, seus fenômenos sociais e naturais.

Alguém que reconhece as relações capitalistas de produção, que compreende a exploração do Trabalho e como ela afeta nossa sociedade, não conseguirá deixar de se sensibilizar quando o operário em construção reconhece, sentado à mesa, sua marca em todos os objetos que o circundam2; ou mesmo quando o trajeto do açúcar é apresentado desde a plantação de cana até chegar à mesa em um café da manhã em Ipanema3. Será possível não verter lágrima alguma ao compreender o quão brutal e violenta é a exploração econômica e social vista pelos olhos de uma ingênua criança?4 Algum(a) lutador(a) social que já tenha vivenciado os altos e baixos da atividade política não poderia deixar de se emocionar com a verificação de que, em que pesem todas as derrotas que possamos ter sofrido, ao nos levantarmos, temos a capacidade de derrubar nossos inimigos5. Da mesma forma, quem luta por uma outra sociedade sempre se comoverá ao imaginar a filósofa-faxineira declarando vaga a presidência, depois que os trabalhadores perderem a paciência7.

Em uma perspectiva mais intimista, será difícil encontrar quem não se reconhece no “ter amado” intenso e desavergonhado de quem ama como se respirasse o outro, sendo por ele inundado8. Assim como será fácil encontrar quem compartilha da nostalgia de rememorar momentos da infância nos quais o mundo se restringia ao mais imediato: casa e família9. Quem nunca refletiu sobre a construção de suas relações sociais cotidianas, sentindo-se como um desajustado elefante, precariamente construído, a perambular pelas ruas e desfazer-se todos os dias ao chegar em casa?10 Quem nunca se arrependeu da, por vezes, desnecessária discórdia que tivemos com alguém especial em dado momento, mas que não teremos mais a possibilidade de resolver, visto que o tempo acabou por exercer seu implacável efeito irreversível sobre nossas vidas?

Talvez a originalidade do conhecimento gerado pela poesia seja constituir um saber que não reside necessariamente na informação, que não tem caráter “noticioso”. Por isso mesmo, o conteúdo poético orienta-se pela necessidade de expressão, que eventualmente ultrapassa a capacidade racionalizante e frequentemente adentra o campo dos sentimentos, da emoção e da memória. Em nossa sociedade, na qual a forma mercadoria domina tudo, precifica a todas e todos, na qual a racionalidade imediatista e utilitarista termina por rasgar qualquer véu de sentimentalidade, a poesia apresenta-se como elemento de resistência e busca defender outras formas possíveis de relações sociais, que se baseiam em critérios outros àqueles hegemônicos em nossa tempo histórico.

Com isso, não procuramos dizer que toda poesia se orienta na contracorrente às concepções mesquinhas, hegemônicas no capitalismo. Dizer que a racionalidade burguesa destrói a sentimentalidade não significa que essa mesma racionalidade não defenda e propague um sentimentalismo burguês, cínico, que ignora tudo e todos ao atomizar a consciência individual no egocentrismo, no romantismo, na penúria e no martírio cristãos etc. A forma de conhecimento poético – importante reafirmar – não está imune à ideologia. O senso comum, mantenedor do status quo, defende que o conhecimento é um adorno a ser utilizado socialmente para demonstrar “cultura” adquirida, numa espécie de valoração que busca promover a diferenciação de classe, reforçando opressão e dominação. Assim também o faz com a poesia, tida como uma forma de expressão de “alto nível intelectual”. Popularmente, a forma poética é ventilada até mesmo como uma via de flerte, demonstrando as variadas formas de rebaixamento político que enfrenta a reflexão poética.

Apesar de reconhecermos sua existência, não aceitaremos aqui a polissemia em relação ao que é poesia. Poderíamos dizer que, para nós, a poesia deve ser um instrumento de edificação daquilo que nos torna eminentemente humanos. A possibilidade humana de realizar Trabalho transforma não apenas a realidade exterior como a própria consciência do ser humano que o realiza. O Trabalho, socialmente realizado, enriquece as relações sociais e constitui cultura, desenvolvendo nossos sentimentos e afetos. Aqui reside o eminentemente humano. Já há muito tempo o ser humano vem buscando desvincular-se das limitações que lhe são impostas pelas relações sociais ou naturais que o circundam, procura essa que encontrou uma potente metodologia de reflexão e ação, desenvolvida a partir da segunda metade do século XIX por Marx e Engels.

Assim, não apenas o Trabalho, mas a luta pela possibilidade de vida independente e autônoma, livre da exploração, dominação e opressão, tornaram-se os elementos mais grandiosos da reflexão artística, na medida em que expressam o processo de humanização de nossas relações sociais – processo esse negado, aturdido e interditado pela burguesia – e que se relacionam não apenas por meio de reflexões eminentemente políticas, mas também mediante a edificação ético-moral de novo tipo, capaz de sobressaltar e mobilizar o espírito das camadas proletárias e proletarizadas em prol dos mais fundamentais sentimentos e afetos de humanidade.

Ao buscar compreender um texto poético, absorvê-lo, colocar-se na posição do(a) autor(a), o indivíduo transforma também sua própria consciência, complexificando-a, ampliando aquilo que pode sentir e, consequentemente, o que pode entender e, dessa forma, melhorando qualitativamente sua ação sobre a realidade. “A poesia é uma arma carregada de futuro“, dizia o poeta espanhol Gabriel Celaya, o que significaria dizer que ela tem caráter pedagógico, sendo também uma ferramenta para aprender e ensinar, capaz de tornar-se multiplicadora de vetores éticos político-organizativos, vinculados à vida coletiva ou mesmo à vida pessoal, que devem estimular a independência, a autonomia e a emancipação de classe, gênero e raça, quando inseridos em determinados contextos da ação política e da práxis cotidiana.


* Educador Popular e coordenador do Cursinho Popular Comunidade FazArte. Militante do PCB em Goiás.


1 Konder, Leandro. As artes da palavra: elementos para uma poética marxista. Boitempo, 2009. p. 8.

2 Ver Operário em Construção, poema de Vinícius de Moraes.

3 Ver O Açúcar, poema de Ferreira Gullar

4 Ver Eu não gosto de você, Papai Noel, poema de Aldemar Paiva.

5 Ver Aos que desanimam, poema de Golondrina Ferreira

6 Ver Quando os trabalhadores perderem a paciência, de Mauro Iasi.

7 Ver Amavisse, de Hilda Hilst.

8 Ver Uma fotografia aérea, de Ferreira Gullar.

9 Ver O elefante, de Carlos Drummond de Andrade.

10 Ver Reencontro, de Ferreira Gullar.

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