Por que ler: Reencontro (de Ferreira Gullar)
Guilherme Martins - Educador Popular e coordenador do Cursinho Popular Comunidade FazArte. Militante do PCB em Goiás.
Reencontro é um poema de Ferreira Gullar que pertence ao livro Em alguma parte alguma, de 2010. Poderíamos dizer que está inserido na última fase de produção artística do poeta, que radicaliza tendências presentes em fases anteriores como as reflexões sobre a cotidianidade, ao mesmo tempo em que diminui a intensidade de alguns traços antes mais reforçados, como a atitude de vanguarda (a exemplo do livro Luta Corporal, de 1954) e também de engajamento na luta social e reflexão política (a exemplo dos livros Dentro da Noite Veloz, de 1975, e Poema Sujo, de 1976). Em alguma… faz parte do bloco que emerge e se desenvolve nos livros Barulhos, de 1987, e Muitas Vozes, de 1999, nos quais o poeta radicaliza o trato da temática da temporalidade da vida humana e tudo que implica desse traço, propiciando à sua poesia um caráter mais intimista.
Se, por vezes, a poesia dessa fase parece retroceder com relação ao que fora escrito anteriormente – a exemplo do poema Meu Povo, Meu Abismo, no qual o poeta reescreve seu poema Meu Povo, Meu Poema, mas agora tomado de rancor, desprezo e elitismo1 –, esse Ferreira Gullar da última fase também apresenta uma sensibilidade mais apurada no olhar para a realidade.
Não seria exagero dizer que Gullar, em muitas obras – inclusive desse período –, acaba por desvelar, mediante reflexões que buscam captar o vivenciar e o sentir da passagem do tempo, a conexão existente entre a brevidade do momento e o contínuo movimento da História. É assim, por exemplo, no poema O que se foi, que também faz parte do livro Em alguma…, no qual o autor termina por debater o caráter original do movimento histórico e denunciar a aparente repetição enquanto expressão fetichizada pela consciência alienada de quem analisa o movimento. Podemos ver, portanto, que a passagem do tempo para Gullar carrega em si o germe da transformação permanente. A realidade é eterno movimento, e o movimento está em constante transformação, tornando a repetição impossível, a não ser aos olhos daquelas e daqueles que buscam consciente ou inconscientemente encontrá-la.
Contudo, Gullar nos demonstra que reside nessa leitura uma contradição fundamental à condição humana: se o movimento da realidade é eterno, a capacidade de intervenção humana não é. Nosso corpo biológico está fadado a perecer e cessar de existir completamente. Poderíamos ir além, retomando reflexões do próprio poeta quando jovem, e dizer que nossa existência biológica não apenas é finita como ainda está sujeita a determinações relacionadas a condições de classe social, de gênero e de etnia/raça, que limitam e ameaçam as possibilidades de existência da maioria esmagadora da sociedade2.
Ao poeta experiente, a consciência da finitude da vida parece jogar luz sobre as memórias do passado, impondo a realização de uma espécie de balanço acerca de sua própria trajetória. E essa trajetória, enquanto desenrolar historicamente constituído, opera através de uma sucessão de acontecimentos singulares.
No traiçoeiro e seletivo painel da memória, os acontecimentos, avaliados em retrospecto, ganham nova dimensão. Ao buscar analisar e tornar inteligível a si mesmo sua própria trajetória, o poeta exercita a necessidade de avaliar os acontecimentos dos quais fez parte e compreender o papel que exerceu nesses momentos. Assim, a ideia de um passado estático e determinado torna-se passível de questionamento, ao passo que quem o construiu foram as escolhas realizadas pelo próprio poeta. Em Reencontro, a brevidade do instante tem repercussão permanente quando associada à finitude da vida.
Assim, ao reconhecer a limitação temporal da capacidade humana de agir, o poeta também se vê obrigado a aceitar a limitação cognoscente do ser humano em conseguir captar e compreender a realidade. Em Reencontro, nossa condição mortal nos leva indiretamente à necessidade de selecionar os conhecimentos, os sentimentos e as experiências de que precisamos e/ou que gostaríamos de ter e/ou que somos obrigados a desenvolver. À vista disso, o ímpeto que proporciona qualquer tomada de decisão revela-se uma escolha crucial, até mesmo determinante, uma vez que, em uma realidade de possibilidades finitas, fazer escolhas é também assumir o risco pelas renúncias que delas derivam.
Parte do senso comum de uma sociedade selvagemente neoliberal é o imperativo da dissociação entre realidade e possibilidade. Somos cotidianamente estimuladas/os a imaginar que todas as possibilidades existentes estão abertas a nós, como se nosso desejo bastasse para realizar algo, como se a vida fosse um livro em branco aguardando um texto cuja forma e conteúdo dependem apenas de nossa vontade, por mais que as estatísticas nos demonstrem a brutal desigualdade de possibilidades de acordo com critérios de classe, gênero e raça-etnia. Na ideologia neoliberal, somos exercitadas/os a fantasiar com um mundo onde frustrações são de responsabilidade individual e não conjuntural, repercutida em sentenças simplistas como “você não fez por onde”, “você não procurou”, “você não se empenhou”.
Quando falamos sobre o desejo de enriquecer, muitos de nós conseguem compreender as limitações impostas pela realidade capitalista, mas isso se dá quando o assunto são outras pulsões de desejo? É possível que tenhamos toda a atenção, o amor, o carinho, o sexo, as amizades, as praias, os parques, os domingos, as noites e os dias prazerosos que queremos? Nossa sociedade, na qual todos nós somos estimuladas/os a nos tornarmos narcisos à procura de espelhos, impele todas e todos a uma irreflexão sobre a obrigatoriedade de realizar renúncias. Em meio à alta competitividade da vida de espelhos deformados proporcionada pelas redes sociais, a realização de renúncias é sinal de fraqueza, enquanto apenas a livre manifestação de pulsões de desejo torna os perfis atrativos ao consumo dos usuários – invariavelmente frustrados pela impossibilidade de possuir tudo que são orientados a desejar (Livre manifestação de pulsões de desejo que muito interessam também à propaganda comercial).
Ao ignorarmos a necessidade de exercer a renúncia, de nos adaptarmos ao desprazer proporcionado por algumas de nossas escolhas, ao não sermos capazes de extrair das experiências da vida não apenas as características agradáveis, mas também as desagradáveis, constituímos nossa subjetividade de forma alienada e, consequentemente, alienamos também nosso compasso ético-moral. É nesse ponto que Gullar opera, em Reencontro, uma pequena revolução, pois as renúncias do poeta não o impedem de seguir em frente mediante uma síntese entre passado e presente. Dessa forma, ele consegue traçar um caminho capaz de equacionar, ainda que momentaneamente, as contradições entre desejo e possibilidade.
Em Reencontro, a fratura entre a pequena ação cotidiana e a escrita da História, mesmo a história individual, é reconciliada pelo olhar de quem, analisando o passado, descortina a possibilidade de realinhar no presente aquilo que lhe parece impossível de ser alinhado, de modo a transformar o futuro. Ao praguejar contra a “desnecessária discórdia“, o poeta reorienta seu desejo (a conciliação) e também as possibilidades proporcionadas pela realidade posta (expressa mais violentamente na impossibilidade de encontro com quem já não se encontra entre nós). Não apenas enquanto vaticínio sobre o perigo e o preço cobrado pela tomada de decisão com base em uma avaliação precária e muitas vezes pouco generosa com “o outro”, Gullar também se utiliza de seu poema como uma espécie de oração, espaço de diálogo entre o ser, sua memória e o tecido social que os envolve, tornando possível uma repactuação entre as possibilidades impostas pela realidade, as necessidades do autor e as escolhas e as renúncias assumidas por ele próprio no passado.
Em Reencontro, a brevidade temporal e intelectual da condição humana é reconhecida sem que se reforce o cinismo de quem reconhece as próprias limitações e as naturaliza de forma condescendente; assim como o reconhecimento das limitações também não leva a diminuição da credulidade diante da possibilidade de um outro fazer humano nem ao saudosismo da celebração de um passado idealizado que nunca existiu. Superando em muito a expectativa comum da leitora e do leitor, o poeta refina a crítica e a arranca do brutal simplismo do senso comum, vislumbrando uma mediação capaz de equacionar uma contradição insolúvel e desenvolvendo a potencialidade de um saber e um sentir que não terminam em nós mesmos, cujo corpo e consciência são limitados, mas que se expandem pela tessitura social e pela memória coletiva, vinculando em um só momento o passado, o presente e o futuro.
Leia na íntegra:
Reencontro – de Ferreira Gullar
Estou rodeado de mortes.
Defuntos caminham comigo na saída do cinema.
São muitos,
sinto a presença ativa das magnólias
queimando em seu próprio aroma.
Os mortos acomodam-se a meu lado
como numa fotografia.
Ajeitam o paletó, a gola da blusa
e parecem alegres.
São gente amiga
com saudade de mim
(suponho)
e que voltam de momentos intensamente vividos.
Tentam falar e falta-lhes a voz,
tentam abraçar-me
e os braços se diluem no abraço.
Fitam-me nos olhos cheios de afeto.
Ah quanto tempo perdemos,
quanta desnecessária discórdia,
penso pensar.
É isto que me parecem dizer seus esplendentes rostos neste entardecer de janeiro
1 Essa análise se mantém mesmo que aceitemos uma ressalva ao avaliar o período político e social no qual o poema foi escrito.
2 Ver o poema A Bomba Suja, de 1975.
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