Por que no bairro de Moema apenas 5,8% da população é negra?

Por que no bairro de Moema apenas 5,8% da população é negra?

Por: O Poder Popular ·

Camarada Janderson - MC, militante do PCB e Secretário Político da UJC em SP

De acordo com o Mapa das Desigualdades 2023, no distrito de Moema apenas 5,8% da população é negra (preta ou parda). Lá não existem favelas, as ruas são arborizadas, planas e divididas por quadras. Considerando os critérios do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), viver em Moema é comparável com viver na Noruega. Quem vive no distrito morre, em média, com 81 anos — a terceira melhor posição da cidade, perdendo apenas para o Itaim Bibi e Jardim Paulista (ambos 82 anos).

Por outro lado, no Jd. Ângela, distrito periférico da zona sul, 60,1% da população é negra. Esse sempre esteve entre os mais precarizados da cidade. Em média, os moradores do Jd. Ângela morrem aos 62 anos (19 anos de diferença comparado aos habitantes de Moema), ora por serem vítimas constantes de diferentes tipos de violência urbana — já foi considerado o bairro mais violento do mundo — ora pela pobreza e o descaso da saúde pública.

Comparações como Moema e Jd. Ângela poderiam ser feitas com outros distritos da cidade. Os indicadores sociais e a proporção da população negra da Vila Mariana em comparação com a Cidade Tiradentes, por exemplo, constatam números diferentes, mas a tendência é a mesma.

A segregação socioespacial e racial em São Paulo é um dos principais dramas do capitalismo brasileiro e não se explica através de noções individualizantes, meritocráticas e etc. É um fenômeno que só pode ser elucidado se partirmos da história da economia capitalista na cidade. Neste texto me proponho a apresentar alguns caminhos para ajudar a compreensão desse problema.

O início desse processo se deu na transição entre o trabalho escravo e o trabalho assalariado, entre a metade do século 19 e os anos 1930. Enquanto nascia um proletariado e uma burguesia tipicamente urbana no Brasil, a mão-de-obra dos ex-escravizados se encontrava disponível e livre no mercado de trabalho, mas não era suficientemente atrativa para os capitalistas dos centros urbanos e nem poderiam ser rápida e mecanicamente adaptadas a nova ordem social competitiva.

Foi diante dessas condições que os capitalistas do setor cafeeiro, comercial e industrial de São Paulo optaram por contratar prioritariamente a mão-de-obra dos imigrantes europeus. Quando chegavam em São Paulo, esses imigrantes geralmente se inseriam, moravam e trabalharam em situações melhores do que a dos negros (salvo excessões), monopolizando ofícios industriais, comerciais e artesanais e oferecendo vantagens para seus conterrâneos e descendentes em detrimento da mão-de-obra dos trabalhadores negros, que foram “empurrados” para os setores residuais e ficaram à margem do processo de urbanização da cidade; que se via livre das senzalas, mas sem condições de se fixar na cidade e à mercê da concorrência de um mercado de trabalho racista.

As vantagens do imigrante branco sobre o negro no mercado de trabalho paulista no final do século 19 ficam evidentes quando analisamos o Censo de 1893 da Cidade de São Paulo, que mostra que 72% dos empregados do comércio, 79% dos trabalhadores das fábricas, 81% dos trabalhadores do setor de transportes e 86% dos artesãos da cidade eram estrangeiros, sobretudo de origem italiana [2]. Esse fato e o dado citado acima contribui diretamente para a explicação da questão urbana da cidade, uma vez que os imigrantes passaram a habitar as vilas operárias e cortiços regularizados e com fácil acesso às fábricas e comércios onde trabalhavam.

Em uma de suas principais obras primas, “A integração do negro na sociedade de classes”, Florestan Fernandes descreve a condição de trabalho e o trtaento moral para com o nascente proletariado negro da seguinte forma — uma citação chave para compreender a questão abordada no nosso texto:

[Os negros e negras] não só perdiam terreno na competição ocupacional e econômica. Passavam a ser vistos sob um prisma em que o “escravo” desqualificava o “liberto”, como se fossem, de fato, substancialmente “vagabundos”, “irresponsáveis” e “inúteis”. Adquiriam, em suma, uma reputação desabonadora, que iria bani-los do mercado urbano de trabalho ou forçá-los a lutar, arduamente, na orla das ocupações indesejáveis ou insignificantes. [...] [Os negros mais velhos], em sua maioria, não conheciam bem as ocupações e os serviços urbanos, vivendo de trabalhos manuais rudes. Encontravam-se alguns ajudantes de pedreiros; mas a maior parte dos homens faziam biscates, isto é, “os serviços que calhavam”, recebendo por dia ou por empreitada. As mulheres trabalhavam como criadas, havendo ainda quem preferisse a mucama e a cozinheira “de cor”. [3]

Os serviços “manuais rudes”, como ajudantes de pedreiro e “criada” (profissão conhecida hoje como empregada doméstica) na recente sociedade capitalista paulistana, eram tão desprestigiados quanto às moradias desses trabalhadores. Ficar com a sobra dos “serviços que calhavam”, receber “por dia ou por empreitada”, não combinava com rigidez do pagamento de mensalidades, dificultando a compra ou a locação de lotes e terras regulares e obrigando os trabalhadores negros a improvisarem suas moradias.

A mencionada rigidez dos aluguéis, o aumento do preço dos terrenos e do custo de vida nas área planejadas afastava cada vez mais a possibilidade dos negros habitarem as áreas planejadas da cidade. Por outro lado, na região do Brás, Bom Retiro, Água Branca, Lapa, Pompeia, Mooca, Ipiranga, Bela Vista e Bexiga era cada vez mais evidente uma maioria de imigrantes e descendentes de italianos.

Uma outra passagem da mesma obra de Florestan comenta a distribuição demográfico-racial da região do Bexiga (citada por ser um exemplo emblemático, no entanto, o trecho abaixo representa uma tendência amplamente citada pela literatura da época):

os italianos eram donos de todo o Bexiga e seus filhos, quando não doutores, eram guarda-livros, alfaiates, marceneiros, ou tinham pequenas casas de comércio, enquanto os negros ainda viviam em porões e sofriam as mesmas picadas da desigualdade econômica.” [4]

No tocante à área hoje ocupada por Moema, até 1913, tratava-se de propriedade (rural) de Joaquim Pedro Celestino, um dos grandes possuidores de terras de São Paulo e Capitão da Marinha Real Portuguesa. Foi comprada pelo comerciante e presidente da Companhia Territorial Paulista, Fernando Arens Júnior, que loteou (urbanizou) o bairro. Desde então, passou a ser habitada e planejada pela e para as classes médias e famílias abastadas das comunidades inglesas e alemãs, que naquela época também migraram para o Brasil e, em São Paulo, tiveram como destinos principais a região do então antigo município de Santo Amaro (que abarcava quase toda a zona sul) e o centro-sul da capital, onde fica Moema. Logo nos anos 1920, a área recebeu sistema de esgoto e abastecimento de água, trilho de bonde a vapor, plantações de bosques e rearborização. Em 1954, inaugura-se o Parque do Ibirapuera (o principal da cidade) e em 1976, um shopping que levou o nome do parque, supervalorizando a área e tornando-a exclusiva cada vez mais aos setores altos e médios da burguesia paulistana.

No decorrer das décadas de 1930, 1940 e 1950 e em diante, na medida que se industrializava e passava a ser o terreno central do mercado de trabalho capitalista, São Paulo passou a ser alvo principal do fluxo migratório interno do campo para a cidade (o êxodo rural). Enquanto imigrantes estrangeiros se fixaram com relativa facilidade, trabalhadores de várias regiões do Brasil, principalmente do Nordeste, passaram a povoar as “bordas” de São Paulo, habitando e trabalhando em condições desfavoráveis perante o operário branco da cidade. Na década de 1970, enquanto a taxa populacional da capital cresceu 3,6% ao ano, no município de Embu esse número chegou a 18,09%; no distrito do Capão Redondo, 57,25% [5] [6] (Capão e Embu são vizinhos do Jd. Ângela e suas características e histórias, no contexto dessas migrações, se assemelham em vários aspectos). Os três territórios citados compõem a grande periferia da RM-SP e abrigaram, dos períodos citados até hoje, um grande contigente de trabalhadores negros e nordestinos no decorrer do processo de crescimento da metrópole.

Ao consultar os materiais que me ajudaram na elaboração deste texto, pude ver uma reportagem exibida pelo documentário “Capão Redondo - história do bairro de São Paulo”, noticiando a chegada de uma leva de migrantes nacionais (não indica o ano, mas acredito ser dos anos 1950 ou 1960) determinados a trabalhar em São Paulo, desembarcando em condições precárias nas quais “os trastes vendidos mal davam para pagar o caminhão” [7]. A precariedade econômica e trabalhista foi tamanha a ponto de provocar uma expansão também precária dos municípios e bairros periféricos da zona norte, sul, leste e oeste da RM-SP aumentando a distância entre moradia e trabalho e dificultando a qualificação profissional dos migrantes nacionais.

Em suma, é imperativo o seguinte fato: os trabalhadores que povoaram as regiões na periferia da metrópole não gozaram da mesma recepção que os europeus tiveram na cidade nas primeiras décadas do século 20, não desembarcaram em hospedarias, não tiveram facilidades para juntar dinheiro, não tiveram facilidade para se relacionar com pessoas que lhes desumanizavam cotidianamente, não tiveram acesso fácil à sistemas de água e esgoto, hospitais, escolas e etc, nem condições políticas favoráveis para exigi-lo, e o aspecto mais central . Tiveram que “se virar” em uma cidade cultural e economicamente hostil a sua chegada.

Essa forma de crescimento urbano e demográfico forjou um profundo processo de periferização da moradia dos trabalhadores negros — nos bairros bem estruturados e mais integrados ao centro, predominância de pessoas brancas, enquanto no centro velho, nos bairros periféricos e favelizados, predomina a multirracialidade com maioria negra. E o motivo de tamanha segregação socioespacial e racial, o fato do bairro de Moema ser praticamente exclusivo para população branca, se explica através da forma como o capitalismo e o racismo, juntos, forjaram a configuração urbana de São Paulo. Por terem vivido, nas palavras de Florestan, “anos de espera” e “desengano” no primeiro quartel do século 20, a esmagadora maioria dos trabalhadores não-brancos tiveram e ainda possuem mais dificuldades para se estabelecerem nas áreas confortáveis da cidade.

Referências:

Mapa das Desigualdades 2023: https://institutocidadessustentaveis.shinyapps.io/mapadesigualdadesaopaulo/

ANDREWS, George R. Negros e Brancos em São Paulo. São Paulo: Edusc,

1998. p. 123

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes vol. 1,

São Paulo: USP, 2008. p. 117

Ibid., p. 91

VALIM, Ana. Migrações - da perda da terra à exclusão social. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 17

LIA; Giovanna. SILVESTRE; Jayme Estudo. RODRIGUES, Joana; Estudo Físico Urbanístico - Distrito do Capão Redondo.

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5447797/mod_resource/content/1/Grupo%2 05.pdf

Capão Redondo - História do bairro de São Paulo / SP https://www.youtube.com/watch?v=PnbC-VStcr4&t=1096s

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