Projeto de lei da PM sucateia órgão de denúncias contra ações de policiais
Catarina Duarte para a Ponte Jornalismo
Se aprovado o PL, Ouvidoria passaria a ser subordinada ao comando-geral da PM; especialistas temem falta de independência do órgão
Avança no Senado o projeto de lei 3.045/2022 (que na Câmara dos Deputados tinha o número 4.363/2001), legislação que trata da criação de uma lei orgânica unificada para as Polícias Militares. Apresentando durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ele voltou aos holofotes e avançou entre os deputados na gestão Jair Bolsonaro (PL) e pode ser Luiz Inácio Lula da Silva (PT) o responsável por chancelá-lo.
O texto até aqui discutido amplia a musculatura dos militares ao permitir, por exemplo, que eles atuem em áreas fora da alçada atual, dizem especialistas consultados pela Ponte. Um dos pontos é que o PL determina que a Ouvidoria, órgão que, entre outras funções, recebe denúncias sobre a atuação das forças de segurança, passe a ser subordinada ao comando-geral da PM de cada estado. O temor é que a ação enfraqueça a atuação desse canal.
O PL 4.363 foi apresentado aos deputados federais em 2001 pelo governo Fernando Henrique. O projeto original tinha sete capítulos — que falavam da organização, efetivos, material bélico e garantias. Naquela época, a lei seria o primeiro dispositivo federal a tratar com profundidade sobre a atividade policial desde o decreto-lei nº 667 de 1969, editado quando o país vivia a ditadura militar.
O texto da época ditatorial estabeleceu a hierarquia entre Exército e Polícia Militar, onde a primeira é a instância superior e os PMs são força auxiliar. O decreto-lei cita ainda a função dos policiais de atuar em rondas ostensivas planejadas por autoridades competentes e na manutenção da ordem pública. Trechos dessa legislação foram acrescidos, revogados ou alterados ao longo dos anos.
Uma das mudanças ocorreu em 2018, com a promulgação da lei 13.675. Ela disciplinou a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública. Por meio dela foram criadas a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e o Sistema Único de Segurança Pública (Susp).
A Polícia Militar e outras forças de segurança foram incluídas no Susp e consequentemente nas diretorias do PNSPDS, já que a política nacional e o sistema único estão interligados. Isso significa ser dever dos polícias trabalhar pela “proteção dos direitos humanos, respeito aos direitos fundamentais e promoção da cidadania e da dignidade da pessoa humana”, conforme a legislação de 2018.
Nos textos anteriores (decreto-lei e no apresentado pelo governo Fernando Henrique), as normas que reconhecem e protegem a dignidade dos seres humanos não aparecem como obrigação dos militares.
É no governo de Jair Bolsonaro que volta a ganhar força a discussão sobre a lei orgânica da PM, duas décadas depois da proposta inicial. Em março de 2021, o deputado Capitão Augusto (PL-SP) foi designado relator do projeto. O parlamentar atuou na Polícia Militar de São Paulo, onde foi promovido a capitão em 2008. Em seu site pessoal, ele faz questão de dizer que foi o primeiro deputado a usar farda na Câmara dos Deputados.
A partir de dezembro de 2021, o projeto passou a tramitar em regime de urgência — isso quer dizer que o PL não passou por todas as comissões, mas sim por uma representação especial e depois foi para discussão em plenário, conforme prevê o regimento da Câmara dos Deputados. Ele foi colocado na Ordem do Dia por quatro vezes ainda naquele ano, mas foi só em dezembro de 2022 que a lei orgânica voltou a ser deliberada. Neste período em que não foi colocado em debate, ocorreram audiências públicas sobre o tema e ele também foi avaliado por um grupo de trabalho do Ministério da Justiça e do Ministério da Defesa.
Na ocasião, a vitória de Lula contra a campanha de Bolsonaro à reeleição já era sabida e, mesmo neste contexto, o texto passou sem problemas e chegou a ser defendido em plenário por deputados do próprio PT. Rogério Correia (PT-MG), elogiou o relatório do Capitão Augusto.
“Eu havia inscrito, assim como vários deputados da bancada do Partido dos Trabalhadores, para discutir e encaminhar contrariamente ao projeto, porque apontavamos uma série de problemas que eu vou aqui relatar, mas que no relatório do deputado Capitão Augusto nós felizmente conseguimos sanar esses problemas e o relatório agora satisfaz aquilo que nós tínhamos feito como crítica e fica neste sentido uma lei orgânica da Polícia Militar que dá mais segurança jurídica ao papel que as polícias têm nos estados”, disse o parlamentar petista.
Uma das críticas que Correia citou foi o uso da palavra “exclusividade” para dar à PM funções que atualmente são de responsabilidade de Guardas Municipais, por exemplo. Apesar de seguir no texto aprovado, o petista celebrou a retirada do domínio dos policiais sobre as funções.
A matéria foi aprovada sem contagem de votos em ato simbólico, que ocorre quando há consenso sobre o texto.
“Um dia histórico para todos os policiais militares e bombeiros militares do Brasil. Pessoal da ativa, nossos veteranos, nossos pensionistas. Os militares do Brasil estavam aguardando a substituição do decreto 667 desde 1969, há 53 anos nós estávamos aguardando o nosso estatuto e a nossa lei orgânica e hoje após 20 anos de tramitação do PL 4363 conseguimos finalmente aprovar a nossa tão sonhada lei orgânica modernizando as policiais militares e os bombeiros militares dos estados, do Distrito Federal que vão ser regidos de uma forma linear em todo o país”, celebrou o Capitão Augusto no dia da aprovação do PL. A fala de Augusto e de Correia foram extraídas de vídeo publicado no YouTube da Câmara dos Deputados.
O texto final deixou de fora pontos que provocaram polêmica, como o trecho apresentado pelo Capitão Augusto que dava autonomia aos PMs para tomarem decisões sem aval dos governadores. Entre eles estavam restrições quanto à exoneração de oficiais, nomeação de uma lista tríplice elaborada pelos oficiais para a escolha do comandante e um mandato de dois anos para os chefes das PMs. Isso acabou de fora do texto final.
Ouvidoria em risco
A redação do texto até aqui é vista com temor por especialistas ouvidos pela Ponte. Um dos pontos que preocupa é um possível sucateamento das Ouvidorias, canal comumente vinculado às Secretarias de Segurança Públicas, que passaria a responder ao comando-geral das polícias.
Esse ponto é tratado no artigo 10, que discorre sobre a estrutura básica dos órgãos dentro da corporação. Eles são diferenciados entre assessoramento, direção, apoio, execução e correição. Neste último ponto é descrito que a função é a regulamentação de procedimentos internos “para a prevenção, fiscalização e apuração dos desvios de conduta em atos disciplinares e penais militares, a promoção da qualidade e eficiência do serviço de segurança pública e a instrumentalização da Justiça Militar”.
Sem vincular a Ouvidoria a esse órgão, com atuação correlata, o texto apenas subordina a Ouvidoria à Polícia Militar. “A Ouvidoria, subordinada diretamente ao comandante-geral, poderá ser criada, na forma da lei do ente federado”, diz o texto enviado ao Senado.
“A Ouvidoria deveria ser um órgão independente, autônomo para processar denúncias”, diz Fabricio Rosa, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e co-fundador do grupo Policiais Antifascistas. “Me parece que esse modelo de Ouvidoria ser subordinada ao comando-geral tira uma ferramenta principal que é a independência, a autonomia e a liberdade [do órgão]”, critica.
Em nível nacional, a lei 13.460 regula o trabalho das ouvidorias de maneira mais generalista, já que aborda as funções do órgão em diferentes esferas do serviço público. É função da Ouvidoria, por exemplo, receber, analisar e responder manifestações encaminhadas por usuários de serviços públicos e também produzir relatórios anuais apontando falhas e possíveis melhorias.
Essa lei, no entanto, é retroativa à iniciativa implementada pelo governo de São Paulo em 1995, que foi pioneira no Brasil em ter uma Ouvidoria para a área de segurança pública. Segundo o site da própria Ouvidoria das Polícias, ela funciona como uma “espécie de ombudsman da segurança pública no Estado”. Ali são concentrados não só questões relacionadas aos policiais militares, mas também a todos os membros do Sistema Único de Segurança Pública (Susp).
A Ouvidoria não tem poder de apurar, mas faz o acompanhamento de denúncias a fim de garantir agilidade nas conclusões. Em São Paulo, a estrutura deste órgão é comandada por um ouvidor nomeado pelo governador para um mandato de dois anos. O nome chega ao chefe do Estado por meio de lista tríplice elaborada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).
Para Adilson Paes de Souza, mestre em Direitos Humanos, doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e tenente-coronel da reserva da PM paulista, o texto atual do PL como um todo é nocivo à democracia.
“O projeto é extremamente nocivo para a democracia, para as liberdades e garantias individuais. É um projeto autoritário que consegue ser pior que a legislação que tem atualmente”, diz Adilson.
Ela chama de retrocesso a possibilidade de subordinação da Ouvidoria e diz que o texto vai acabar criando um “Frankenstein” legal em casos como o de São Paulo. Isso porque cabe ao órgão no estado receber denúncias de outras forças que não só a PM, o que deixa sem respostas como funcionaria na prática a atuação do ouvidor das polícias.
“É uma situação anacrônica. Ou você tem duas ouvidorias, ou uma Ouvidoria para as duas, ou uma só para a Polícia Militar, ou de repente uma Ouvidoria subordinada à Polícia Militar, mas com abrangência sobre outras polícias. É um aspecto inconstitucional, não tem cabimento. Ficou meio que um pedaço de um Frankenstein”, comenta o pesquisador.
Quem também vê com preocupação essa mudança é Almir Felitte, autor do recém lançado livro História da Polícia no Brasil. Ele diz que os mecanismos de fiscalização do trabalho da PM em vigor não têm uma ampla participação da sociedade civil, papel que faz a Ouvidoria atualmente e que perde força com a subordinação.
“Apesar dela [a Ouvidoria] poder até ser ocupada por um membro da sociedade civil, ela vai acabar entrando na mesma lógica da Corregedoria interna, porque será subordinada aos próprios policiais. É a mesma lógica de policiais tendo que fiscalizar os próprios policiais. Isso subverte completamente esse papel da Ouvidoria, que é de ser um controle externo sobre a atividade policial”, argumenta Almir.
Em 2013, um Projeto de Emenda à Constituição (PEC) 51 tentou ampliar o poder de atuação da Ouvidoria. O texto permitia que o órgão fosse capaz de suspender práticas policiais incompatíveis com a atuação “humanizada e democrática” e poderia aplicar sanções administrativas como suspensão e até a demissão dos agentes. A proposta acabou arquivada em 2018.
PL reforça militarização da PM
As críticas dos especialistas ao PL vão além do ponto da Ouvidoria. O texto é visto como um retrocesso e distante de discussões recentes sobre a segurança pública no país. José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da PM de São Paulo e ex-secretário nacional de Segurança Pública, entende que era necessária uma lei orgânica sobre as polícias, mas o projeto até aqui militariza ainda mais a organização. Outro ponto que ele critica é a existência de uma lei orgânica para cada força policial.
“O que se esperava era uma lei complementar para regular todas as polícias. Polícia Civil, Militar e agora até a Polícia Penal, que é uma displicência que inventaram. Enfim, deveríamos ter uma lei para regular ambas e não uma lei para cada uma”, conta.
José Vicente avalia que com uma lei orgânica haveria vantagens para unificar direitos, deveres e organização de todos os agentes. “Com esse projeto de lei o que acontece é que nós vamos tornar ainda mais difícil o relacionamento entre essas duas instituições. Se tivesse uma única lei, ela estabeleceria normas similares, mesmos direitos e mesmos deveres para ambas as polícias”, completa.
Fabrício Rosa, membro do FBSP, desaprova o trecho da lei que prevê preenchimento de 20% de vagas nos concursos públicos para mulheres. Ele chama a previsão de “cláusula de barreira” e entende essa movimentação como um limitador e não como uma garantia de inclusão.
“Isso é reflexo de um machismo estrutural terrível que é inconcebível em 2023”, diz Fabrício. Ele explica que esse tipo de prática é tentada em concurso policiais, mas que geralmente é barrada por ação do Ministério Público ou da Defensoria. O pesquisador cobra uma atuação do governo federal para que o PL não seja aprovado com esse texto.
“Eu acho um absurdo um governo comprometido com a pauta das mulheres, um governo que tem noção de que uma revolução na Segurança Pública passa por enfrentar o machismo, a misoginia. As reformas que aconteceram na Colômbia, por exemplo, passaram pela ampliação dos quadros femininos, pela discussão de LGBT+ nas polícias, passou a fazer a polícia mais próxima da comunidade policiada. Então a primeira questão que eu vejo gravíssima é essa. Em 2023 nós aceitaremos uma lei que exclui as mulheres dessa forma”, comenta Fabrício.
A falta de abordagem sobre a saúde mental na polícia também motiva críticas. Para Adilson Paes de Souza, esse tema é crucial e faz parte do dia-a-dia das corporações.
“Estudos em saúde psíquica dos trabalhadores, especificamente na polícia, indicam que a maneira como a organização do trabalho se verifica já é considerado um fator de risco para o adoecimento psíquico do policial. Esse projeto, para além de exacerbar a militarização da polícia, poderá contribuir para uma piora do ambiente do trabalho e para um agravamento da saúde dos policiais, podendo contribuir com o aumento de casos de suicídio”, diz Adilson.
Casos recentes ajudam a ilustrar a preocupação de Adilson. Em Salto, no interior paulista, o sargento Claudio Henrique Frare Gouveia matou a tiros de fuzil o comandante da unidade em que atuava, capitão Josias Justi da Conceição Júnior, e o sargento Roberto Aparecido da Silva. A motivação, segundo revelou o advogado de Gouveia ao UOL, foi a escala de trabalho.
A unanimidade entre os especialistas é que o projeto militariza ainda mais a polícia. “Parece que todo debate que a sociedade civil vem fazendo sobre Polícia Militar e sobre segurança pública desde os anos 90 foram completamente ignorados”, fala Almir Felitte, autor de História da Polícia no Brasil.
“Não se fala sobre mecanismo de controle sobre a polícia, desmilitarização, o papel controverso da polícia em ações de inteligência. Na verdade, tudo isso só está mais reforçado ainda nesse projeto de lei”, completa Felitte.
PL avança no Senado
No Senado, o PL já passou pela Comissão de Segurança onde recebeu 22 pedidos de emendas. Nenhuma delas tratava de pontos questionados pelos especialistas ouvidos pela Ponte. O parecer favorável ao texto foi de autoria do deputado Fabiano Contarato (PT/ES).que classificou o projeto como “conveniente e oportuno”.
A reportagem entrou em contato com a assessoria do deputado para conversar sobre o tema. Também houve pedido de entrevista ao Capitão Augusto. Ambos não retornaram.
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