Quem fica é sempre uma Adília

Quem fica é sempre uma Adília

Por: O Poder Popular ·

Por Jeferson Garcia, secretário político do Coletivo Negro Minervino de Oliveira e militante do PCB Maringá.


O som da queda silenciou os boleiros do asfalto, tal como faz com a gente um poema de Adília Lopes, a poeta que pouco sabemos quem é. Um homem bêbado, cambaleando em uma bicicleta, atropelou o golzinho de ferro que tínhamos para jogar bola na rua de casa. Ainda há quem sente saudades do tempo da rua Manaus, de ouvir racionais ou só para contrariar enquanto jogávamos truco na esquina da casa dos meus avós. Rap e Pagode, uma Coca-Cola com chips de frango.  
Há poucos dias havíamos ganhado aquele gol de ferro de um vizinho, que fazia portões e trabalhava com ferro e aço, tal como os poetas fazem com palavras e versos. Ele fez com que aposentássemos os antigos chinelos, que faziam o papel das traves. O bêbado desviou do primeiro gol e começou a nos xingar, olhando para trás. Esqueceu que são dois gols e trombou com o outro, caindo no chão e deixando parte da pele de seu rosto no asfalto. Levantou-se e nos agrediu com xingamentos. Tentou nos atacar fisicamente, tal como um péssimo dançarino tenta se aproximar de um bolero. Possivelmente, ele nunca leu um poema de Adília, mas se movimentava como quem queria apanhar um peixe com as mãos. Éramos todos moleques, doze ou trezes anos. Canelas cinzas, cuecas furadas, dedo do pé sem tampão.  Já o Bêbado era um poema de Fernando Pessoa ao avesso, que como todo cachaceiro, não andava em linha reta. Até aquele dia, no nosso campo de piche, havíamos sido campeões em tudo.

Havia entre nós, quem demorava para tomar banho, quem aos sábados ia à missa só para usar a roupa nova, quem mentia, quem não gostava de futebol. Mas todos nós, na hora do ataque daquele bêbado, nos afastamos para fora da possibilidade do soco. Hoje eu sei que também éramos um poema de Fernando Pessoa ao avesso. Não tínhamos dinheiro, a polícia nos olhava estranho e a nossa única beleza era com os pés, manuseando uma bola de futebol. Lembro que eu, Juba, Juninho e Jota estávamos lá. Tínhamos em comum, além da cor de pele, que nenhum de nós tinha pai. Corriqueiro isso, os pais sabem desviar dos filhos.
Detestávamos quando alguém dizia que ia contar algo para os nossos pais.

Pode contar — dizíamos ironicamente. Fingíamos tranquilidade. Toda vez que eu ia preencher algum formulário eu me lembrava que não tinha pai. Não sabia ainda, mas me lembraria por toda a vida.

Em 2024, até julho, foram registradas mais de 91 mil crianças sem o nome do pai no Brasil. Em 2023 havia sido 172 mil. Em 2013 o total de crianças sem o nome do pai no registro era de 5,5 milhões. No Dia dos Pais nos jogávamos bola na rua. No dia do bêbado, como batizamos aquela tarde em que o futebol perdeu para a bebida, ficamos tristes e conversamos na hora que se tivesse algum homem adulto, um pai, o bêbado não faria o escarcéu que fez. Até a poesia portuguesa tinha pai, mas nós não. Pensávamos que seria diferente. O machismo tinha efeito em todos os cantos, até nas quinas da nossa consciência. Estávamos profundamente errados.
Nossas mães apontaram lá embaixo, na rua. A poesia, dizia a poeta portuguesa, é noite escura. Eu diria que talvez a poesia seja, também, a reunião de mulheres negras. Eram pontinhos negros, três mães pretas sem marido. As mulheres apertaram o passo.
Vaza daqui, seu bosta! — Ainda me lembro das palavras.
O bendito do bêbado foi expulso da rua e quase levou uns tapas das costureiras do fim do mundo. No Brasil as mães não têm direito ao abandono. Elas, as mães que poucos sabem quem são, costuram a vida com os remendos que possuem. Como em todo lugar os Fernandos Pessoas são importantes, mas quem fica é sempre uma Adília.

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